DÁ INSTRUÇÃO AO SÁBIO, E ELE SE FARÁ MAIS SÁBIO AINDA; ENSINA AO JUSTO, E ELE CRESCERÁ EM PRUDÊNCIA. NÃO REPREENDAS O ESCARNECEDOR, PARA QUE TE NÃO ABORREÇA; REPREENDE O SÁBIO, E ELE TE AMARÁ. (Pv 9.8,9)

sábado, 3 de agosto de 2013

Gaudium et Spes: Alegria e Esperança


Gaudium et spes é considerada pelos intérpretes o documento mais importante do Concílio Vaticano II. E.  Borgman, por exemplo, o chama “de um documento revolucionário”[1].  G. Alberigo acentua que após o período-conciliar não houve nenhuma controvérsia eclesial que não estivesse ligada às afirmações da GS[2]. 

Todavia, J. Comblin lê a constituição pastoral mais em seu âmbito sociológico do que teológico-pastoral, apesar de reconhecer este último. Afirma que o documento corresponde ao “olhar dos líderes do episcopado ‘progressista’ da Europa ocidental”, e que o “sinal dos tempos” refere-se exatamente à perda de poder das Igrejas pela sua inadaptação à modernidade[3]. Outra crítica pertinente, mas ignorada por esses e outros literatos, foi descrita por Clodovis Boff: o dualismo discursivo – caracterizado por uma pluralidade de gêneros que impedem um discurso homogênio. Para Boff essa diversidade discursiva da GS não satisfaz em termos teológicos (eclesiologia) e sociológico (análise do mundo), configurando assim, em um “discurso misto, médio e até medíocre sobre a ‘igreja’ (teologia) no mundo de hoje (sociologia)” [4].

A querela em torno da hermenêutica da GS reflete o debate em torno da recepção do corpus conciliar. P. Hünermann demonstrou que não há consenso unívoco acerca da interpretação dos textos do concílio. Em síntese, afirma que alguns os interpretam como documentos de “compromisso”, outros como eivados de ambiguidades, e ainda aqueles que unem as duas concepções e acrescentam o conceito de pluralismo contraditório [5].

Especificamente, a GS insere-se ainda mais no contexto das controvérsias em torno da elaboração e recepção dos textos conciliares. Não somos escusados frisar que na 9ª. sessão solene do dia 7 de dezembro de 1965 fora encerrado os trabalhos do Concílio, aprovando-se a GS com 2309 placet; 75 non placet; 10 nulos [6], entretanto, a elaboração  do texto iniciara em 1963, sendo retomado no segundo semestre de 1964 e concluído cerca de um ano depois [7]. A GS sofreu várias emendas e redações, críticas dos biblistas quanto à definição da expressão “sinais dos tempos” (ST) – que de início foi rejeitada e mais tarde reassumida na GS (4,1), com o acréscimo de “interpretá-los à luz do Evangelho”.
Apesar de tantos pareceres concernentes à GS, a presente análise debruça sobre a hermenêutica dos ST a partir do próprio documento, que se define como teológico e pastoral. Para lograr-se o êxito necessário, será feito uma breve incursão em alguns textos eclesiásticos que lançam luz à expressão, e, a seguir, veremos o significado conforme a estrutura da GS.

Antecedentes da expressão "sinais dos tempos"

Originalmente, a expressão “sinal dos tempos”, extraída de Mt 16, 3, fora empregada por Jesus para referir-se ao contexto escatológico e messiânico do Reino de Deus já inaugurado por ele. Esse conceito recebeu diversas interpretações durante o seu longo percurso exegético na história da Igreja. Contudo, o significado moderno mais premente deve-se ao papa João XXIII que, no Natal de 1961, convoca assim o Concílio Vaticano II:
Fazendo nossa recomendação de Jesus de saber distinguir os Sinais dos Tempos (Mt 16,4), cremos descobrir, no meio de tantas trevas, numerosos índices que nos infundem esperança sobre os destinos da Igreja e da humanidade [8].

Todavia, os mesmos problemas de nosso tempo chamados pelo papa de ST, já eram conhecidos dele por outras expressões: em 1959 ao abrir a “era conciliar” assinala a necessidade de se adaptar a Igreja à nova época; em 1960 dirigindo-se à comissão preparatória, fala em “vida cívica, econômica e social”; no discurso de 11 de outubro de 1962 (Encíclica Mater et Magistra) trata dos “desvios, às exigências e às oportunidades da idade moderna”, ou faz forte invictiva contra aqueles que “não enxergam nestes tempos modernos senão prevaricações e ruínas” [9]. Portanto, o conceito e a interpretação que o Doutor dos ST[10] emprega à controversa expressão já se encontravam muito bem assentados, aguardando apenas uma máxima que pudesse incorporar as variegadas sentenças anteriores.

O significado de "sinais dos tempos" na GS

A GS, em termos gerais, é constituída de duas partes. A primeira, A Igreja e a vocação do homem, é a seção mais teológica (11-45). Trata da antropologia cristã e de sua relação dialógica com diversas áreas da vida humana, com uma interface cristológica e escatológica (12-39). A segunda, Alguns problemas mais urgentes (46-93), aborda assuntos ligados a pastoral: matrimônio, cultura, economia, política, guerra e paz.

No Proêmio (1-3) são afirmadas as concepções em torno dos ST. O reconhecimento das alegrias, esperanças, tristezas e angústias dos homens de hoje são, por si mesmas, uma interpretação dos ST mediante os quais a Igreja precisa discernir. Esse discernimento provoca a ação da Igreja, que se identifica com aqueles que sofrem.

Na Introdução (4-10), reforça-se o caráter discernente da Igreja em relação aos ST: “é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho”. Os ST são apresentados como “mundo em que vivemos”, “nova fase da história”, “transformações rápidas e profundas”, “transformação social e cultural”, “incertezas”, “agudos conflitos políticos, sociais, econômicos, «raciais» e ideológicos”, “evolução e domínio da técnica e da ciência”, “mudanças na ordem social”, “transformações psicológicas, morais e religiosas”, entre outras expressões que marcam a modernidade cambaleante. Neste aspecto, como obsevou Clodovis Boff, os ST é “a análise da atualidade histórica, uma interpretação do tempo presente” [11], como atesta 11,1: “... o Povo de Deus esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações, em que participa juntamente com os homens de hoje, quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus”.

Estrutura
1.    Proêmio (1-3)
2.    Introdução: A condição do Homem no mundo atual (4-10)
3.    Primeira parte: A Igreja e a vocação do Homem (11-45)
1.   A dignidade da pessoa humana (12-22)
2.   A comunidade humana (23-32)
3.   A atividade humana no mundo (33-39)
4.   A função da Igreja no mundo atual (40-45)
4.    Segunda parte: Alguns problemas mais urgentes (46-93)
1.   A promoção da dignidade do matrimônio e da família (47-52)
2.   A conveniente promoção do progresso cultural (53-62)
1. Condições da cultura do mundo atual (54-56)
2. Alguns princípios para a conveniente promoção da cultura (57-59)
3. Alguns deveres mais urgentes dos cristãos com relação à cultura (60-62)
3.   A vida econômico e social (63-72)
1. O desenvolvimento econômico (64-66)
2. Alguns princípios orientadores de toda a vida econômico e social (67-72)
4.   A vida da comunidade política (73-76)
5.   A promoção da Paz e a Comunidade Internacional (77-93)
1. Evitar a guerra (79-82)
2. Construção da Comunidade Internacional (83-93)






Notas
[1] Erik Borgman. Gaudium et spes: o futuro esquecido de um documento revolucionário, in Melloni, A.; Théobald, C. (orgs.) Vaticano II: um futuro esquecido? concilium – Revista Internacional de Teologia. No 312 – 2005/4. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005, p. 75-84.
[2] Giuseppe Alberigo. Breve história do Concícilo Vaticano II (1959-1965). São Paulo: Editora Santuário, 2006, p. 179.
[3] José Comblin. Os sinais dos tempos, in Melloni, A.; Théobald, C. Op.cit., p. 104.
[4] Clodovis Boff. Sinais dos tempos: princípios de leitura. São Paulo: Edições Loyola, 1979, p. 100.
[5] Peter Hünermann. O “texto” esquecido para a hermenêutica do concílio Vaticano II, in Melloni, A.; Théobald, C. Op.cit., p. 151-171.
[6] Giuseppe Alberigo. Op.cit., p.172. Placet, designa o voto positivo; nom placet, o negativo. Havia uma terceira alternativa: placet iuxta modum, aprovação condicional. Ver Alberigo, p. 42.
[7] Giuseppe Alberigo. Op.cit., p.81-147. Embora pareça longa, nas p. 81-147 o autor resume a crise de crescimento de 1963 e as dicussões em torno da “semana negra”, 1964, que refletia a quantidade excessiva de documentos a serem examinados quanto as disparidades dos assuntos. Nesse longo itinerário nasce a GS e os debates em torno de seu conteúdo.
[8] Constituição Apostólica Humanae Salutis.
[9] Giuseppe Alberigo. Op.cit., p.50; Clodovis Boff, Op. cit. p. 44-46. Há muitas outras expressões em diversos discursos que apresentam frases semelhantes. Para fins de análise, julgamos essas suficientes.
[10] Expressão usada originalmente por Clodovis Boff, Op. cit. p. 43.
[11] Clodovis Boff, Op. cit. p. 79.

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