Introdução
Certa vez ouvi um certo conto de um cristão que dissera ter tido um sonho no qual ele andava na praia com o Senhor, enquanto passava todas as cenas de sua vida diante dele. Contava que a cada cena era deixado dois pares de pegadas na areia. O cristão entendeu que uma era dele e a outra de Jesus. Todavia, observou que nas horas mais amargas de sua vida, nas dificuldades mais hercúleas, havia apenas uma pegada na areia. Ficou triste e cabisbaixo e queixou-se de que Jesus o abandonara nas tribulações. Contudo, com olhar meigo e voz melíflua, Jesus lhe disse:
O conto fala de duas pegadas, do crente e do Senhor, todavia, pretendo falar de apenas uma pegada, a de Jesus e o que isso significa para o discipulado. Propomos uma leitura teológica do verbo “andar” e de sua relação com os termos “caminho” e “passo” nas perspectivas da Teologia Bíblica e do discipulado cristão, de acordo com o seguimento de Jesus Cristo.
No hebraico o termo ‘āshar é usado em sentido literal (Gn 3.14; Êx 14.24; 15.22) e figurado (Gn 5.22, 24; 6.9; Dt 5.33; Pv 9.6). Literalmente, ‘āshar significa “ir reto pelo caminho” ou tão somente “andar”. Um dos traços mais curiosos do verbo talvez seja o fato de que ‘āshar dá origem ao substantivo ‘āshār, que significa “felicidade” ou “bênção”. Provavelmente o sentido metafórico positivo de “andai pelo caminho do entendimento” em Provérbios 9.6 (ARC), pressuponha algum artifício de linguagem na qual a exortação indique uma assonância com a bênção que acompanha aqueles que “andam” pelo caminho justo. A aliteração estaria presente no discurso ou pronúncia do verbo ‘āshar com a indicação de que se quer dizer ‘āshār, felicidade ou bênção. Observe, por exemplo, que o hebreu preferia o verbo bārak para “abençoar”, “bendito”, “bênção”, no entanto, ‘āshar é o mais indicado para relacionar o conceito do verbo com a ideia da bem-aventurança: a felicidade acompanha os que andam no caminho do entendimento”. Não é sem razão que a Septuaginta traduz bārak por eulogētos (bendito) e ‘āshar por makarios (bem-aventurado).
A ideia de andar consequentemente liga-se ao conceito pictórico hebreu de “caminho”. No hebraico ‘ōrach quer dizer “caminho” ou “vereda” e seu emprego mais acentuado está na literatura poética, sempre com sentido figurado no qual se pretende afirmar tanto o “caminho da vida” como o “caminho da morte” (ver Pv 2.13). “Caminho”, seja qual for os termos hebraicos usados, ‘ōrach ou derek, emprega-se tanto com significado literal como também figurado; até mesmo quando cita esses dois vocábulos mais comuns: “Ensina-me, Senhor, o teu caminho (derek) e guia-me por tua vereda (‘ōrach)” (Cf. Pv 2.8; 4. 14; 12.28).
Do conceito é que se pode compreender satisfatoriamente a relação com a vida ética e justa diante de Deus e dos homens. Afirmam as Escrituras que “E andou Enoque com Deus” e “Noé andava com Deus”, dando a entender que ambos viviam de forma justa e reta numa geração perversa (Gn 6.11). Enoque é arrebatado e Noé salvo do dilúvio porque “andaram” com Deus, isto é, viveram retamente perante o Senhor. A um Deus “toma para si”, a outro conserva a vida (Gn 6.19) pelo testemunho de retidão que sustentaram diante de Deus e dos homens. O vocábulo “tomou” é obscuro, mas o uso em Salmos 49.15 e 73.24 sugere um “arrebatamento”, como traduz a NVI o verbo “tomar”.
Nesse aspecto, o “caminho em que se deve andar” (Êx 18.20) positiva (Pv 4.11) ou negativamente (Pv 5. 20-23) expressa uma forma de viver; a maneira de se colocar diante do mundo e da vida; as formas de agir; o posicionamento entre a submissão e a desobediência (Cf. Ec 11.9; Sl 119.35; 139.3). Daí a recomendação para que se ande nos juízos e estatutos do Senhor e da Sabedoria (Lv 18.4; Pv 8.20). “Andar”, portanto, aparece em conjunto com os termos temer (ver Ne 5.9), inocência (Sl 26.6), guardar, servir, fazer e dar ouvido à voz do Senhor (Dt 13.4, 16; 26.16, 17; Ne 10.29; Sl 78.10) – todos os vocábulos expressam o caminho de um homem justo e bom. Esse justo é temente a Deus, guarda os mandamentos, serve fielmente, pratica as boas obras e dá ouvido à voz do Senhor em todo tempo. Afirmou Ezequias: “Ah! Senhor! Sê servido de te lembrar de que andei diante de ti em verdade e com o coração perfeito e fiz o que é reto aos teus olhos” (2 Rs 20.3 ver Sl 86.11; 101.2; Pv 4.11; Is 26.7). Eis as características do homem que anda com Deus, porquanto, os justos, por um alto caminho, o Caminho Santo, andarão (Is 35.7-9). Em Isaías, o Senhor guia pelo caminho em se deve andar (48.17). Todavia, o caminho errado na qual o ímpio anda ou o justo se perde também é apresentado como um alerta às gerações seguintes. Assim, fala-se do caminho errado na qual alguém morre “porque sem correção andou” (Pv 5.23; Sl 1.1; Is 42.24).
Por conseguinte, o caminho em que se deve
andar diz respeito a ação ética que se deve praticar (Êx 33.4; Pv 22.6). Andar
com Deus no Antigo Testamento é viver de modo digno, agradando ao Senhor em
tudo (Sl 119.35; 139.3). Na literatura bíblica se afirma que o caminho ético no
qual alguém anda, determina sua vida e o seu fim, para o bem ou para o mal (ver
Sl 81.12; Pv 2.13).
Andar nas Páginas do Novo Testamento
Em o Novo Testamento o termo mais usado é peripatēō,
derivado da preposição grega perí, “através”, e do verbo pateō, “pisar”,
“caminho”. A preposição deriva o seu sentido lato do verbo peiron, que
significa “atravessar”. A ideia por detrás do conceito de “andar” (peripatēō) é
a das marcas ou das pegadas que atravessaram a areia e deixaram rastros. Alguém
andou pelo caminho e as marcas de suas pegadas estão fixadas no chão. Um rastro
foi deixado, portanto, é fácil seguir.
É esse o ensino de Paulo em Romanos 4.12 a
respeito das pisaduras do crente Abraão: “e fosse pai da circuncisão, daqueles
que não somente são da circuncisão, mas que também andam nas pisadas daquela fé de Abraão, nosso pai, que tivera na
incircuncisão” (grifo nosso).
A exortação paulina aqui é muito simples,
contudo, profunda. São herdeiros espirituais da fé de Abraão somente aqueles
que andam em suas pisaduras. Para ser
sucessor espiritual do grande patriarca não é necessária a circuncisão, mas andar nas mesmas pegadas de fé deixada
pelo amigo de Deus. Abraão deixou suas marcas e todos que desejam imitá-lo
devem andar em suas pisaduras, isto é, colocar os pés nas pegadas deixadas por
ele na senda da fé e da esperança em Deus.
Deste modo, Paulo usa o vocábulo andar por
oito vezes na epístola aos Efésios. O sentido é tanto ético quanto doutrinário.
Ele refere-se mais ao uso figurado do que ao literal a fim de expressar a
natureza geral da vida de fé em Cristo.
Embora empregasse o uso metafórico em suas
epístolas, por exemplo, Romanos 4.12; 6.4; Gálatas 5.16, 25; 6.16, o emprego repetitivo
em Efésios é digno de nota. Assim o indivíduo “anda em Espírito”, “em amor” ou
como “filhos da luz”. Os termos sempre aludem ao comportamento ou modus
vivendi da pessoa. Vejamos o uso do termo pelo apóstolo: “quais Deus
preparou para que andássemos
nelas” 2.10; “que noutro tempo andastes,
segundo o curso deste mundo” 2.2; “antes, andávamos nos desejos da nossa carne” 2.3; “que andeis como é digno da vocação”
4.1; “andai em amor.”
5.2; “vede prudentemente como andais”
5.15; “sois luz no Senhor; andai
como filhos da luz” 5.8; “para que não andeis mais como andam os outros gentios” 4.17. O uso reflete
a sabedoria hebraica e a figura do caminho da vida e da morte no qual a pessoa
é instada a se decidir ou escolher entre um caminho e outro (Gl 5.16-25). A
vida no Espírito exige que se ande no Espírito (Gl 6.25). Portanto, existe um
cânon, uma regra na qual todos verdadeiramente sábios em Cristo devem andar (Gl
6.16). Todos esses conceitos traduzem o contexto semítico. Veja por exemplo que
a expressão de 5.8: “sois luz no Senhor; andai como filhos da luz” é uma reminiscência doutrinária do
Masquil de Etã, o ezraíta, que falava da alegria festiva daqueles que andam na
luz da face de Deus (ver Sl 89.15; 116.9).
Fica evidente, que a teologia paulina a respeito
de “andar” reflete adequadamente o contexto da sabedoria, justiça e ética
hebraica do Antigo Testamento, sob a perspectiva de uma nova ordem que se
inaugura: o Reino de Deus. Assim, é no contexto da retidão e da ética de Cristo
que o apóstolo Paulo insiste na repetição do verbo andar.
Andar e o Seguimento de Cristo
O seguimento de Jesus reflete o contexto da vocação cristã. Jesus chamou uma variedade de pessoas para segui-lo, enquanto ia pelo “caminho” (Mc 9.57): Mateus (Mt 8.22); o jovem rico (Mt 19.21); um discípulo (Mt 8.21-22); Filipe (Jo1.43); Pedro (Jo 21.19,22), entre outros.
O fato de Jesus vocacionar enquanto “ia pelo caminho” já ilustra o seu exemplo, suas pisaduras e o tipo de vereda que o seguimento deveria seguir: “E ele, levantando-se, o seguiu” (Mt 9.19); “seguiu-o, e os seus discípulos também”; “E, levantando-se, o seguiu” (Mt 9.13; 20.29; Mc 2.14).
Cada um desses discípulos desejava
colocar os seus pés nos mesmos passos de Jesus, isto é, seguir suas pisaduras,
colocar os pés nas marcas que ele deixou enquanto “ia pelo caminho”. Dos
apóstolos aos líderes religiosos, dos pobres aos ricos, dos homens às mulheres,
Jesus a todos convidou para seguir suas pisaduras.
O seguimento não é provisório e
circunstancial, mas um projeto de identidade plena vivido e seguido dia a dia
apesar das vicissitudes. O discípulo não é vencido pelo peso da cruz, mas pelo
amor que o vence a cada dia e o faz renunciar tudo para seguir nas pisaduras do
Mestre. O Salmo 85.13 afirma:
“A justiça irá adiante dele, e ele nos fará andar no caminho aberto pelos seus
passos”. Quantos estão dispostos a “andar no caminho aberto pelos seus passos”?
A pisar nas pisadas que ele deixou como exemplo de vida e humanidade?
O verdadeiro discípulo é aquele que
pisa onde Jesus pisou, seguindo-o e imitando-o. O chamado para segui-lo é na
maioria das vezes pessoal e cada um deve responder positiva ou negativamente ao
chamamento. Aqueles que respondem de modo afirmativo aderem ao caminho da fé. E
os que respondem de forma contrária escolhem o caminho da incredulidade. O
Cristo chama a todos particularmente e cada um deve responder ao chamamento
divino. Não se trata de um chamamento ao orgulho, mas para a humildade. Não é o
discípulo chamado para ser divino, mas assumir sua humanidade na plena
humanidade vivida por Jesus. O discípulo se humaniza na mesma medida em que o
Cristo é humano.
O caminho do discipulado, pisar nas
pisaduras de Jesus, está na contramão do orgulho, da riqueza, do sucesso e da
glória. É a peregrinação que se dirige do Getsêmane ao Gólgota: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a
si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me” (Mc 8.34). É
necessário ir na direção que Jesus indicou, nas pisaduras de sua peregrinação.
Pode-se escolher o caminho glorioso dos filhos de Zebedeu (Mc 10.37-41), mas o
cálice do Cristo é a única resposta e a vereda mais certa a percorrer.
Andar nos passos de Jesus é
aprender a ser humano na própria humanidade vivida por Jesus. É acolher os
pobres e necessitados, é amar os pecadores, é defender os indefesos, é ser como
Jesus!