DÁ INSTRUÇÃO AO SÁBIO, E ELE SE FARÁ MAIS SÁBIO AINDA; ENSINA AO JUSTO, E ELE CRESCERÁ EM PRUDÊNCIA. NÃO REPREENDAS O ESCARNECEDOR, PARA QUE TE NÃO ABORREÇA; REPREENDE O SÁBIO, E ELE TE AMARÁ. (Pv 9.8,9)

quarta-feira, 28 de maio de 2008

A Hermenêutica de Bultmann

(ALTMANN, Walter (ed.) Rudolfo Bultmann: crer e compreender. São Leopoldo: Editora Sinodal: 1986, Série Teologia Sistemática a-9, pp.223-229.)

"Será possível a exegese livre de premissas?"

Bultmann responde a esta pergunta com duas respostas antagônicas: sim e não. Sim, se “livre de premissas” subentender uma “não pressuposição dos resultados da exegese”, isto é, se o intérprete antes de confrontar-se com o texto estivesse livre de pressuposições sobre o mesmo. Não, que é o seu conceito fundamental, visto que o exegeta aborda o texto guiado pela pré-compreensão do próprio intérprete. Bultmann afirma que por mais objetivo que o hermeneuta pretenda ser ao abordar um tema, ele não pode escapar à compreensão que dele tem:

“Resulta que uma compreensão, uma interpretação, sempre está orientada por um enfoque... Isto, porém, inclui que ela nunca está isenta de premissas, mas precisamente, ela está dirigida por uma compreensão prévia do assunto, consoante a qual ela pergunta ao texto" (O problema da Hermenêutica, 1950, p.206).

I. A Contiguidade de seu conceito fundamental

Bultmann procura provar suas assertivas através de três pilares argumentativos, a saber:

1. A exegese livre de preconceito.

Proposição fundamental: A rejeição do método da alegorese.

Bultmann distingue entre alegoria e alegorese. Alegoria consiste no próprio gênero literário que pergunta pelo sentido tencionado pelo texto; enquanto alegorese é uma forma de eisegese. Cita como exemplo de alegorese a interpretação de Fílon sobre uma idéia estóica, o uso de Dt 25.4 por Paulo em 1 Co 9.9, e o texto de Gn 14.14 em que os 318 servos de Abraão são interpretados como profecia da cruz de Cristo na epístola Barnabé (9.7s) . Isto posto, a interpretação alegórica, segundo Bultmann, só é válida quando é exigida pelo próprio texto. A alegorese, por outro lado,

"é uma forma crassa e infiel de abordar o texto; eisegese...” Está claro nestes casos que "o exegeta não ouve o que o texto diz, e sim fá-lo dizer aquilo que ele, o exegeta, já sabe de antemão.”

2. A exegese dirigida por preconceitos.

Proposição fundamental: Os relatos históricos dos discípulos serem estritamente fiéis por ser basearem na convivência destes com Cristo, e a consciência messiânica de Jesus.

Segundo Bultmann, tanto um quanto o outro, somente pode ser demonstrado pela pesquisa histórica. Bultmann concluiu seu argumento afirmando que:

“Toda exegese que é dirigida por preconceitos dogmáticos não ouve o que o texto está dizendo, mas fá-lo dizer o que ela quer ouvir”.


3. A Exegese pode ser livre de preconceitos, mas jamais será livre de premissas

Proposição fundamental: A premissa imprescindível é o método histórico ao se inquirir os textos.

Para Bultmann, o fato de a exegese não ser livre de premissas não tem caráter fundamental, uma vez que o exegeta “está determinado por sua individualidade, isto é, por suas tendências e hábitos específicos, por seus dons e pontos fracos”.Assim, a investigação do exegeta é ampliada ou ínfima a partir de “seus dons” e “seus pontos fracos”. Neste sentido, o “exegeta elimina sua individualidade para educar um ouvir de interesse puramente objetivo.”

II. Exposição do método histórico-crítico

1. Bultmann perfila que o método histórico deve ser aplicado utilizando a exegese gramatical: “um texto deve ser interpretado segundo as regras da gramática...”, e, segundo o autor, levando os matizes estilísticos dos textos “... à exigência de que a exegese histórica observe o estilo individual do texto”. Estas duas regras desembocam na observação sincrônica e diacrônica da linguagem:

“a observação de que cada texto fala na linguagem de sua época e de sua esfera histórica... o exegeta precisa conhecer o condicionamento histórico da língua daquela época da qual provém o texto a ser explicado.”

2. Bultmann, a partir desse raciocínio, problematiza a respeito dos idiomatismos hebraicos e sua influência sobre o grego neotestamentário: “Onde e até que ponto o grego neotestamentário está determinado pela linguagem semítica?” Bultmann pressupõe então, que, o estudo das literaturas apocalípticas, rabínicas, dos textos de Qumran e da historiologia da religião semita são conditio sine qua non para uma compreensão satisfatória. Cita, de modo sintético, uma abordagem diacrônica do termo grego pneuma.

3. O método histórico para Bultmann, implica na premissa de que a história é uma unidade no sentido de uma contextura integrada de efeitos e por isso mesmo “.. a concatenação de curso histórico não pode ser quebrada pela intervenção de poderes sobrenaturais do além, significa portanto, que não pode haver ‘milagres’ nesse sentido”.

4. Bultmann, no afã de conformar as Escrituras aos padrões modernos, entendia que a Bíblia estava sujeita aos mesmos princípios filológicos e históricos aplicados a qualquer outro livro, e por isso mesmo, os milagres e as intervenções de Deus na história deveriam ser demitologizadas, pois “... a ciência histórica não pode constatar uma atuação de Deus, mas apenas constata a fé em Deus e na sua ação”. A partir dessa perspectiva, a ciência não pode constatar esse episódio como fato histórico, porém, deixa a critério do intérprete: “Mas ela própria na qualidade de ciência, não pode constatá-lo nem contar com esta possibilidade, ela somente pode deixar por conta de cada um se ele quer enxergar atuação de Deus num evento histórico...”; continua afirmando que “os textos bíblicos não podem constituir exceção, se é que queremos entendê-los historicamente.”

5. Bultmann considera o exercício de interpretar o texto historicamente como uma necessidade, já que se trata de uma língua estrangeira, costumes anacrônicos e cosmovisão estranha ao exegeta. Traduzir, segundo Bultmann, “significa tornar compreensível, e pressupõe compreensão.” Essa compreensão da história pressupõe a “compreensão das forças atuantes a concatenarem os fenômenos individuais.” Essa força para Bultmann são aspectos “sociolingüísticos” tais como os problemas sociais, necessidades econômicas, paixões, idéias e ideais humanos que transparecem no texto a ser interpretado. Neste sentido, dificilmente, apesar de completo esforço, se chegará a uma visão uniforme pois “no caso de cada historiador individual sempre preponderá determinado enfoque ou perspectiva.” O conceito bultmanniano é que cada exegeta esteja consciente de que seu enfoque é unilateral ao inquirir o fenômeno a partir de determinada perspectiva. Assim, “a compreensão histórica é necessária a compreensão do objeto" (das sachliche Verständnis). Em suma: a compreensão histórica irá pressupor compreensão do objeto em pauta na história e das pessoas que agem na história.

6. Desta forma a exegese sempre pressupõe certa compreensão dos objetos pelo intérprete, que se manifesta direta ou indiretamente nos textos. Isto é o que Bultmann chama de contexto vivencial ou “Lebenszusammenhang” no qual se encontra o intérprete. O quadro histórico só é falsificado, segundo Bultmann, quando o exegeta “considerasse sua compreensão prévia uma compreensão definitiva”, pois o evento histórico (geschichtlich) só poderá ser reconhecido no futuro: “o evento histórico faz parte do futuro.”

7. Concluindo seu argumento, Bultmann formula cinco teses relacionadas às conseqüências da exegese dos textos bíblicos. A quarta tese que trata do princípio existencial, provavelmente foi e será a que mais expressa o método exegético de Bultmann. A quinta mostra o relativismo bultmanniano, de que a compreensão de um texto nunca é definitiva, pois fala para dentro da existência. O papel do exegeta, segundo Bultmann, em sua conclusão, é que o exegeta “ precisa ouvir a palavra da Escritura como palavra falada para dentro de sua situação histórica específica, ele sempre entenderá de forma sempre nova a palavra antiga”, isto é o que Bultmann chama de quadro conceptual ou “Begrifflichkeit”.

Continua...

(Este texto foi apresentado em 30/07/98 ao Dr. Estevan F. Kirschner, no curso de Hermenêutica Avançada, oferecido pelo CETEOL, em São Bento do Sul, Santa Catarina)

9 comentários:

daladier.blogspot.com disse...

Paz do Senhor, pastor Esdras

Excelente a exposição da teologia bultmaniana. Tendo a concordar com ele no que tange à adequação da interpretação ao contexto sócio-histórico, ou seria antropocultural, uma vez que a sociedade está em constante mudança?

Dia desses, num debate sobre o ministério feminino, afirmei que Paulo escreveu influenciado por um contexto machista. Fui tratado como herege, por que segundo alguns essa interpretação compremeteria a inspiração plenária das Escrituras, com o que não concordo. Entendo que ressalvas devem ser feitas, para resguardamos nossas premissas mais caras, mas não há como fugir disso.

Estou aguardando pela continuação do artigo.

Abraços,

Victor Leonardo Barbosa disse...

Excelente documentação pastor Esdras, todavia, creio que Bulttman, creio que ele se equivocou ao postular a questão do preconceito com pressuposto, sendo que ele mesmo possuía os seus(claramente materialistas).
É óbvio que temos nossos pressupostos, mas esses são testados pelos próprios textos bíblicos e incrivelmente confrontados, quem deixa que o texto bíblico fale por si(molde seus pensamentos) por certo modificará seu pressuposto errôneo.

Abraços e Paz do Senhor!!!

Esdras Costa Bentho disse...

Kharis kai eirene.

1. Prezado Pr. Daladier, obrigado por sua participação em nosso blog.

2.R. Bultmann, embora liberal em suas análises do Novo Testamento, foi um profícuo teólogo. É lamentável quando alguns seminários e acadêmicos em Teologia, rejeitam os escritos bultmanniano por preconceito. Até mesmo em suas proposições liberais, o rapsodo continua digno de análise e reflexão.

3. Concernente à interpretação sócio-histórica, é importante compreender não apenas o que ela significa, mas também a concepção bultmanniana de história, todas fundamentadas em W. Dilthey. Ao que parece, segundo Bultmann, o texto se interpreta existencialmente.

4. Existe ainda uma leitura pouco crítica e científica a respeito do contexto do Novo Testamento, Daí a razão pela qual sua afirmação a respeito do patriarcalismo paulino causa estranhesa. Porém, é necessário conhecermos adequadamente o contexto histórico das igrejas paulinas, principalmente das compostas por judeus-cristãos (Rm; Gl, e.g); as raízes da teologia paulina e o conceito veterotestamentário da hierarquia Deus/Homem/Mulher conforme.

4. Só uma última palavra: Prossigamos em conhecer a Bíblia e ao nosso Senhor Jesus Cristo.

Um abraço

Esdras Costa Bentho disse...

Kharis kai eirene

1. Prezado irmão Victor, sua participação no Teologia com Graça é uma honra.

2. Sim, presume-se que Bultmann, à semelhança de muitos outros intérpretes, tenha ensinado certas técnicas de interpretação e seguido mais os seus pressupostos e pré-conceitos do que as próprias técnicas desenvolvidas.

3. O método de Bultmann é científico, crítico, mas também preconceituoso e existencialista. Encontrou em M. Heidegger e W. Dilthey a teoria crítica da história, da interpretação e do existencialismo. Submete-se a si mesmo e a própria Bíblia às teorias desses dois gênios modernos, assim como os pós hegelianos e pós-kantianos fizeram em relação a Bíblia.

4. No entanto, o método dialético bultmanniamo continua, e, ao que parece, continuará sendo uma das mais inventivas e produtivas exposições existencialista do Novo Testamento.

5. O fundamentalismo olha com preconceito para os escritos bultmannianos (e não é sem razão e motivo), porém, a verve teológica de Bultmann ainda tem muito a ensinar a nós, ortodoxos e fundamentalistas.

Um abraço

Esdras Costa Bentho disse...

Errata.

"estranheza" - no lugar de "estranhesa".

"em relação à Bíblia" - no lugar de "em relação a Bíblia".


(ninguém mandou escrever enquanto se está no hospital "tirando sangue".

Um abraço a todos!

Unknown disse...

A PAz Pr Esdras
Estou constantemente visitando o seu blog, e está realmente uma maravilha, que Deus continue te abençoando poderosamente para continuar transmitindo a sua palavra. Se quiser fazer uma parceria, vou link seu endereço no meu blog.

Abraços
Geziel

Eduardo Neves disse...

Profissão Pastor!

em Entendes tu o que lês?

Anônimo disse...

Parabens muito bom seu Post!!!!Fik c paz d cristo!!!
Abs!
Faculdade Teológica

Kase Mendes disse...

Boa exposição do pensamento desse notável teólogo.

TEOLOGIA & GRAÇA: TEOLOGANDO COM VOCÊ!



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