O artista francês Horace de Vernet (1789-1863) na excelente iconografia Judá e Tamar descreveu o fatídico encontro entre o patriarca Judá e sua nora Tamar. Com riquezas de detalhes, Vernet descreve Tamar com as vestes típicas das prostitutas sagradas. Sentada em uma pedra à margem do caminho, com o rosto coberto, e uma das pernas e seios expostos, Tamar sustenta com uma das mãos o véu sobre o rosto, enquanto estende a outra para receber os bens pessoais que garantiriam o pagamento do comércio sexual que se estabelecia. Seu vestido alvo com um lenço azul a enfeitar-lhe os quadris comunicam candura, pureza e a ingenuidade que se contrasta com a sagacidade da amante. Judá, com garbosas vestes, apóia uma das pernas na rocha em que Tamar se assenta. Consta em suas mãos, a entregar à suposta prostituta, o sinete, o cordão e o cajado — símbolos de seu status quo. A expressão facial de Judá denuncia a luxúria e a desconfiança da sagacidade da mulher. A luminosidade da obra aponta para uma estrada cândida que segue em direção ao objetivo do viajante, enquanto uma penumbra cerca os dois amásios tendo ao fundo o camelo do patriarca e o horizonte iluminado. A pouca luz que circunda os amásios são mais do que um detalhe acidental para destacar a peça: descreve a psicologia individual dos envolvidos, que inconscientemente incorporam e consideram como seus as características e valores do outro. As armas de Tamar são a sua sexualidade, feminilidade e capacidade de seduzir, enquanto a astúcia da mesma é demonstrada no papel que representa e no senso de oportunidade: Judá, o viúvo, retira-se para tosquiar as suas ovelhas — ocasião festiva para o criador (1 Sm 25.4,11,36). Viúvo, longe de casa e alegre, tornou-se uma vitima dócil à sedutora.
Esta cena serve-nos de esteio para descrevermos, a passos estugos, o tema da prostituição no Antigo Testamento. Entre os vários termos hebraicos nas Escrituras que descrevem a prostituição encontramos os vocábulos zānã, lit. “praticar prostituição”, “cometer prostituição”, “prostituta” ou “rameira”, e qādēsh, isto é, “prostituta(o) cultual” ou “hieródulo”. O substantivo qādēsh, segundo o Dicionário Vine (DV), aparece cerca de onze vezes nas Escrituras.
A palavra zānã traz o sentido básico de “relação heterossexual ilícita”, e emprega-se freqüentemente para se referir a uma prostituta. Muito embora Êxodo 34.16 e Números 25.1 usem o termo no gênero masculino — no primeiro, o uso é figurado, enquanto no segundo é coletivo —, o emprego freqüentemente aludi a uma mulher cujo ofício ou ocupação é a prostituição.
Em Deuteronômio 23.18, a prostituição masculina ou o prostituto é chamado de “cão” (ARC) e “sodomita” (ARA). Os dois termos são a tradução do vocábulo keleb, e se referem ao prostituto cultual, designado ipsis litteris por “cão” ou “cachorro”, mas em sentido metafórico por “prostituto”, “impuro”. Em Gênesis 34.31, Tamar é comparada a uma prostituta ou zānã, mas também é chamada de qādēsh, isto é, “prostituta cultual” (ARA) em 38.21,22.
Aspectos Gerais da Prostituição no Antigo Testamento
1. O comércio sexual entre uma prostituta e seu cliente envolvia um valor pecuniário estabelecido entre a mulher e o seu amante (Gn 31.16). O salário de uma prostituta, do hebraico ’etnam, lit. “paga de prostituta”, e do keleb eram abomináveis para Yahweh e, portanto, proibido o recebimento do mesmo na Casa do Senhor (Dt 23.18).
2. A prostituição secular e sagrada em Israel era proibida: “Não haverá rameira dentre as filhas de Israel; nem haverá sodomita dentre os filhos de Israel” (Dt 23.17). O termo traduzido por “rameira” é qādēsh e, como acima foi dito, refere-se à prostituição sagrada. Esta segunda forma de prostituição era muito praticada entre os canaanitas e abominada tanto na esfera religiosa quanto na moral pelos israelitas. Textos proféticos como Jeremias 2, Ezequiel 23 e Oséias 1—3; 14.14 e os historiográficos como Números 25.1s; 1 Reis 14.24; 15.12; 22.47 e 2 Reis 23.7 não apenas condenam essas praticas sexuais ilícitas e repugnantes quanto demonstram a inclinação dos judeus a elas.
3. Os sacerdotes eram proibidos de se casarem com mulheres viúvas, repudiadas e prostitutas: “Não tomarão mulher prostituta ou infame, nem tomarão mulher repudiada de seu marido, pois o sacerdote santo é a seu Deus” ( Lv 21.7 cf. v. 14).
4. Os serviços sexuais das prostitutas seculares eram procurados freqüentemente pelos seus amantes (Jz 16.1).
5. As prostitutas costumavam se expor em lugares públicos (Gn 38.14), trajavam-se e adornavam-se de modo que fossem reconhecidas (Gn 38.14; Pv 7.10) e, segundo o Gênesis 38.15, cobriam os rostos com um véu.
6. As prostitutas seculares, ao que parece, de acordo com 1 Reis 3.16-28, tinham por hábito morarem juntas, talvez não mais do que duas pessoas em uma casa (v. 17), mas são tantas as variáveis que isso não é conclusivo. Não eram casadas, talvez viúvas, repudiadas ou escravas estrangeiras manumissas. Segundo Provérbios 2.17, é possível relacionar a prostituição às mulheres divorciadas ou viúvas que, para se auto-sustentarem, comercializavam o corpo. Pode ser que se trate também de uma mulher que abandonou o seu marido e se ocupa do comércio sexual. Se uma das duas prostitutas anônimas do texto era divorciada ou viúva, talvez se explique a razão pela qual uma delas ou as duas possuem uma residência. A prostituta mencionada em Provérbios 2.16-19 possui uma casa, mas esta, segundo o sábio hebreu, “se inclina para a morte” (v. 18), pois o favor do Senhor não está mais sobre ela (v. 17).
7. Possuíam seus bens particulares, talvez como resultado de seu ofício. Raabe, por exemplo, é uma meretriz estrangeira que possui uma casa junto ao muro da cidade (Js 2.15), não tem esposo e demonstra ser protetora de toda a sua família (v. 13). Ela é arguta, inteligente e reconhece a soberania divina (vv. 10-12).
8. Embora as prostitutas sejam socialmente inferiores em comparação às outras mulheres de Israel, eram suportadas e admitidas na sociedade hebraica a ponto de duas delas requisitarem uma audiência com o rei Salomão (1 Rs 3.16-28).
9. Há uma intrigante conexão entre os atos de Tamar, as duas prostitutas anônimas de 1 Reis e Raabe. As três possuem um forte senso de preservação de suas famílias, pois colocam a integridade de sua parentela acima da segurança pessoal. Tamar corre o risco de ser queimada; as duas prostitutas anônimas, de serem punidas pelo rei; e Raabe, de ser castigada ou morta por trair o seu povo.
10. Os sábios hebreus afirmavam que a prostituta tem um astuto coração (Pv 7.10), que ela seduz os seus clientes pelo seu falar suave (Pv 2.16). Ela abandona o seu marido e se esquece da aliança com Deus (Pv 2.17). É contenciosa (Pv 7.11) e anda de lugar a lugar procurando clientes (Pv 7.12). É uma cova profunda (Pv 23.27) e por causa dela alguns homens empobrecem (Pv 5.9,10). Ela é caçadora feroz (Pv 7.12), impudente e atrevida (Pv 7.13), etc.
A Prostituição Sagrada na Mesopotâmia
Como já definimos, a prostituição feminina no mundo bíblico distinguia-se em profana ou secular e sagrada ou cultual. A prostituta sagrada era chamada de qādēsh pelos judeus e hieródula pelos gregos. O termo grego provavelmente esteja relacionado ao lexema hieros, que se traduz por “separado para a deidade”, “sagrado”, procedente da mesma raiz que origina o termo hiereus, isto é, “sacerdote”. O nominativo feminino doulē, que se traduz por “escrava”, forma a parte final do vocábulo hieródula. A hieródula ou qādēsh, portanto, pode ser considerada uma mulher que servia sexualmente aos adoradores de uma determinada divindade. Por estar inteiramente relacionada ao serviço religioso ou templário, era considerada uma prostituta sagrada ou a meretriz separada para o serviço sexual no templo.
As meretrizes sagradas eram sacerdotisas que estavam relacionadas aos cultos da fertilidade e aos deuses e deusas pagãs da procriação, do amor e da fertilidade. Vários achados arqueológicos comprovam a existência de inúmeras divindades femininas que eram adoradas nas festas da fertilidade. Entre tantas se encontra Inana-Ištar, deusa do amor e do comportamento sexual de cujos rituais de adoração constavam o transexualismo, o travestismo e o homossexualismo de ambos os sexos. Em um bloco de pedra do período sumério, Inana-Ištar é representada junto a genitais masculinos. Tabuinhas de barro com inscrições cuneiformes, conhecidas como os Cilindros de Gudea, descrevem histórias mitológicas da deusa, denominando-a como “Rainha do Céu e da Terra”, “Estrela da Manhã”. Um dos poemas dedicados à deusa entoa:
Nobre Rainha, quando entras na estrebaria
Inana, a estrebaria rejubila contigo
Hieródula, quando entras no aprisco
A estrebaria rejubila-se contigo.[1]
Continua...
Classifique esse artigo na pesquisa contida neste blog.
Para saber mais:
BENTHO, Esdras C. A família no Antigo Testamento: história e sociologia. 3.ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2008.
Notas
[1] Kramer, Sacred Marriage Rite, p. 101, apud QUALLS-CORBERTT, Nancy. A Prostituta Sagrada: A Face Eterna do Feminino. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, Coleção Amor e Psique, p. 40.