Todo ponto de vista é
a vista sempre a partir de um ponto. Uma resenha crítica de uma obra é sempre
uma “vista sobre algum ponto”, uma vez que a subjetividade do resenhista sempre
destacará nuanças da obra sob o seu singular olhar. A crítica ou resenha não é
mais importante do que a própria obra assim como não é o crítico que conta, mas
o autor que expõe suas ideias e se sujeita a todo tipo de reação dos leitores.
Depois de tantos terem feito uma nota ou resumo da obra do
professor César Moisés Carvalho,
Pentecostalismo e Pós-Modernidade, editado pela CPAD (2017), debruço-me talvez
atrasado sobre essa hercúlea tarefa. Inicialmente minhas ocupações com o
doutoramento não permitiram antecipar qualquer crítica ao livro. Depois, a obra
é densa e extensa, e qualquer julgamento precipitado corre o risco de ser
impreciso e ilegítimo. Como suspeita, tem o fato de eu ser amigo do autor.
Conheço o irmão César e dele posso afirmar que é um homem temente a Deus, fiel
à família e aos amigos, um eletricista eficiente e filho nobre de Goioerê.
Professor e pensador arguto, comprometido com a verdade e que não tem receio de
mudanças. Exímio contador de causos ainda da época de sua atuação como pastor
de uma comunidade pentecostal no Paraná, ao qual abrilhanta com detalhes
pitorescos oriundos de uma memória homérica. Profissional comprometido com
aquilo que faz, une eficiência e paixão a cada trimestre das Lições Bíblicas.
Escritor preocupado em apresentar seus textos dentro das normas técnicas que,
com muito esforço, aprendeu até dominá-las durante a Iniciação Científica do
curso de Pedagogia. Professor admirado pelos alunos da Faecad pela acuidade
técnica e carisma. É uma pessoa preocupada em ser sujeito de sua formação e em
tornar-se cada vez mais humano! Minha admiração pelo autor talvez seja um fator
que desqualifique minha análise da obra Pentecostalismo
e Pós-Modernidade.
Pentecostalismo e
Pós-Modernidade: quando a experiência sobrepõe-se à Teologia (426 p.), foi
publicado em 2017 pela CPAD, editora na qual o autor trabalha. A Apresentação
do livro é da lavra do próprio autor. O professor e pastor pentecostal David
Mesquiati de Oliveira, da Faculdade Unida de Vitória, ES, foi o prefaciador, e
a apresentação da orelha do livro é labor deste resenhista. A obra está
dividida em duas partes: “O que escrevi antes de saber o que era
Pós-Modernidade”, e “O que venho escrevendo depois de aprender o que é
Pós-Modernidade”, antecedido pela Introdução
que, na verdade, poderia ser um capítulo da segunda parte da obra, ou então um intermezzo, entre a primeira e segunda.
Pela própria organização do livro percebe-se que se trata de uma coletânea de
artigos (de 1999 a 2016) que marca a transição teológica do autor de um
pensamento apologético-dogmático para uma reflexão mais madura e crítica; de
uma hermenêutica teológica centrada na tradição reformada para uma hermenêutica
da experiência, à moda Ricoeur.
Na primeira parte nota-se o entusiasmo (no grego o termo
designa “estar possuído por um Deus”) com que defende aspectos teológicos da
tradição pentecostal imersa na teologia reformada. Na segunda (e Introdução), uma prudente moderação (no
gr. phrónesis – exame dialético das opiniões) a fim de evitar os extremos, quer
de sua tradição, quer da qual se desenlaça.
Nas duas partes, dialoga com a tradição de fé na qual foi formado, e
Gadamer pode muito bem explicar a relação entre tradição-pertencimento e,
acrescento, inovação. A inovação, de algum modo, sempre rompe com algum aspecto
da tradição.
Na segunda seção o autor realiza um exercício hermenêutico
de diálogo com o passado a partir de uma perspectiva crítica. Como se sabe a
tradição às vezes freia a criatividade, a subjetividade e individualidade do
pensador, que deve ficar limitado a ela, impedindo a criatividade e o avanço
teórico-teológico. O autor aventurou-se nesse mister talvez para reencontrar e
ressignificar o telos perdido pela
tradição. Ele assume a condição de estar
situado numa tradição da qual aprende e ensina. Isto o diferencia de outras
análises feitas a partir “de fora” do pentecostalismo.
Como amigo do autor, li vários artigos da primeira seção e
participei de conversas a respeito dos da segunda, e da Introdução. De início percebe-se a falta de uma definição ou
discussão a respeito das duas variáveis que compõem o título: pentecostalismo e
pós-modernidade. Há tantas controvérsias a respeito dessas duas expressões que
um rápido e imediato esclarecimento do sentido pretendido pelo autor não
poderia faltar. Nas notas de rodapé da Introdução
é sugerido algum insight da oposição
entre Modernidade e Pós-Modernidade, mas somente leitores maduros extrairiam
dali algum conceito. Acredito que se trata de uma opção do autor, já que no
bojo do capítulo são apresentados autores que discutiram a questão
profusamente, seja negando, seja confirmando-a. Todavia, há alguns artigos da
primeira parte que esclarecem o sentido dos termos do título, mas ainda presos
ao contexto do qual o autor se liberta na segunda parte.
A mudança do pensamento do autor na segunda seção
implicitamente é um convite para que o leitor também se desvencilhe de
conceitos equivocados sobre a pós-modernidade que, não obstante seus limites,
constitui-se uma oportunidade para a teologia pentecostal. O ponto fundamental
da Introdução e da segunda seção é a
valorização da experiência e a crítica ao racionalismo positivista presente na
teologia pentecostal em seu diálogo com a teologia reformada e sua herança
fundamentalista. Fica claro que faltou aos teólogos pentecostais brasileiros
uma dialética madura e inteligente ao traduzir conceitos reformados em teologia
pentecostal – aqui, talvez seja de bom alvitre a leitura do artigo As matrizes teológicas do pentecostalismo
clássico (p.303-333), na qual o autor discute as “raízes reformadas do
pentecostalismo” (p.315-322). Não houve síntese, então uma ruptura torna-se
necessária. É isto que pretende o autor, com grande êxito. Mas somente teólogos
pentecostais preocupados com uma reconfiguração do pentecostalismo clássico
tirarão daqui a epistemologia necessária para uma teologia pentecostal
latino-americana. Para muitos, no entanto, isso não é necessário porquanto não
entendem o caráter epocal e histórico da doutrina. Além disso, somos todos
muito vaidosos para dar a um jovem mestre tanto crédito!
Neste ponto parece-nos de fulcral importância o
esclarecimento de que a obra surge no acirrado debate entre calvinismo e
arminianismo, entre pentecostalismo e cessacionismo presbiteriano, que, ao meu
ver, dão o tônus da crítica e contribuição do autor ao debate, reforçado pela
obra A mecânica da Salvação (CPAD,
2017), do também assembleiano Pr. Silas Daniel. O jovem professor César
forneceu à teologia pentecostal clássica os pressupostos teóricos necessários
para uma reconfiguração da teologia pentecostal nacional. Sua proposta inicial
não foi a de construir sozinho o edifício teológico mas lançar um fundamento
para uma construção em conjunto, em diálogo-dialético com os seminários e
faculdades pentecostais de teologia. Estes serão os responsáveis por
reconstruir ou erigir, a partir da leitura crítica da própria obra, novos
estudos em nível de pós-graduação e, aproveitando o ensejo do CNE/CES 4/2016
para o Bacharelado em Teologia, reestruturar o currículo dentro dos quatros
eixos exigidos pelo Ministério da Educação e Cultura.
Vejo, não em toda obra, mas em muitos capítulos da segunda
seção o estabelecimento de fundamentos históricos-teológicos para a
configuração de um novo paradigma para a teologia pentecostal clássica,
portanto, não percamos essa oportunidade! Neste aspecto destaco os seguintes capítulos:
Introdução (p.23-69), Hermenêutica Pentecostal (209-280), Revelação,
Experiência e Teologia Pentecostal (335-370), A Experiência Religiosa e do
Espírito como Instrumentos de transformação da forma de crer e pensar (371-405).
Noutra ocasião trataremos com mais acuidade esses capítulos,
afinal, uma resenha não deve ser mais extensa do que a obra resenhada.
Por fim, a capa da obra combina perfeitamente com o título. Quem já leu obras sobre a pós-modernidade e sua relação com a arquitetura sabe muito bem da influência da escola Bauhaus, a qual a capa ilustra perfeitamente: Forma e função - aço e vidro.