Todo e qualquer conhecimento ou teoria explicativa da realidade, seja no passado, seja no presente, quer seus proponentes estejam cônscios disso ou não, está fincado de um modo ou de outro em algum paradigma. Lembremos que o Cristianismo é uma religião histórica, assim como a fé cristã é uma fé inculturada. Desde sua gênese a fé cristã fincou-se em seu contexto cultural, explicando-lhe sob os fundamentos da revelação e dando vividamente a fé sentido sincrônico, contextualizado e inculturado.
A linguagem da Escritura é humana, teológica e socialmente condicionada às estruturas da língua, do contexto histórico-social, e à hermenêutica de sua época. A inspiração é divina, mas a transmissão da verdade é inculturada. A explicação dos mistérios do Reino de Deus, por exemplo, é feita por meio de elementos culturais (rede, semente, fermento, mostarda) inteligíveis ao mais simples camponês.
A própria comunidade cristã do primeiro século enfrentou o desafio de configurar a fé ao contexto helênico, e de encontrar nas diversas culturas elementos que pudessem ser reinterpretados sob a ótica da fé cristã (At 17. 15s). Os matizes socioculturais do judaísmo, mediante os quais a iniciativa salvífica de Javé foi experimentada e interpretada, foram adaptados, condicionados e até substituídos pelos missionários entre os gentios. A inculturação da fé e o anúncio da ação salvífica de Deus em contextos diferentes do horizonte interpretativo dos primeiros missionários foram desafios sempre presentes no Cristianismo.
A recepção da fé cristã não esteve apenas condicionada aos elementos da cultura daqueles que a anunciaram como também dos que a receberam (At 14. 8s). Assim, ao comunicar a fé no contexto heleno-latino, os cristãos do primeiro século não empregaram tão somente o horizonte histórico do judaísmo, mas as categorias ontológicas dos gregos, trazendo, consequentemente, mudanças na linguagem querigmática ao substituir o primeiro pelo segundo.
Nos primeiros catorze séculos da era cristã, os teólogos cristãos encontravam na teoria geocêntrica de Cláudio Ptolomeu uma justificativa lógica e contemporânea para admitirem a literalidade do relato de Josué 10.12-14. Tempos depois, com a ascensão da teoria heliocêntrica de Nicolau Corpênico (1473-1543), já não era mais possível aceitar o geocentrismo, mas explicar a perícope à luz do novo paradigma que se desenvolvia. Francis Bacon (1561-1626) apesar de abandonar o raciocínio silogístico de Aristóteles e desenvolver o raciocínio indutivo, estava convencido de que o número dos planetas era sete. Quão distintas são as concepções científicas copernicanas e baconianas das admitidas hoje pela física e astronomia! Isto lembra-nos da urgência de reconsiderarmos, à medida que a sociedade avança, os fundamentos epistemológicos sob os quais baseamos as teorias, quer científicas, quer teológicas.
Em especial, dois pensadores cristãos desafiam os teólogos contemporâneos a repensarem a linguagem teológica contemporânea. O primeiro deles, A. T. Queiruga propõe à Teologia de nosso tempo uma releitura global da Tradição e da Bíblia, recuperando a riqueza de sua experiência e de sua capacidade de suscitação maiêutica. Preocupado com os novos paradigmas das ciências modernas e com as respostas obsoletas da teologia, o teólogo sugere mais do que uma renovação e atualização do vocabulário teológico, deixando assim intactos os esquemas de fundo.
Para Queiruga é necessário retraduzir o conjunto da teologia dentro do novo mundo criado a partir da ruptura da Modernidade, uma vez que os pressupostos metodológicos e as grandes categorias da teologia estiveram fincados durante muito tempo na época pré-moderna. As proposições teológicas fundavam-se nas premissas aristotélicas, tomistas, e no dualismo e dúvida cartesianas – apesar deste último reconhecer as mudanças de seu tempo e propor mudanças paradigmáticas. A crise no cristianismo, atesta o teólogo, deve-se fundamentalmente ao desajuste produzido por essa derrocada teórica e sua incapacidade de responder dialogicamente aos problemas elencados pela nova situação. A fé tornou-se inadequada e antiquada ao novo contexto que a circundava. Torna-se, portanto, necessário alocar a teologia na nova situação criada pela entrada na Modernidade. A crise da teologia contemporânea, segundo o autor, consiste exatamente em reconhecer e responder aos novos reclamos que a Modernidade impõe. Isto posto, é ingente necessário que os teólogos reflitam que:
- a relação com o objeto da teologia mudou;
- a consciência dessa relação mudou;
- é necessário construir uma nova relação, e elaborar conscientemente a teologia no seio de um novo paradigma.
No bojo dos novos paradigmas, a Modernidade trouxe duas dimensões da vida humana que é inútil combatê-las, cabendo-nos o compromisso de redirecioná-las: a autonomia e historicidade; uma nova objetividade e subjetividade religiosa. Queiruga propõe assim cinco fundamentos para compreender a proposta da renovação da linguagem teológica:
- Um paradigma não pode ser julgado a partir do outro;
- Não se deve misturar elementos de paradigmas diferentes;
- Atenção para a consequência do discurso;
- Um verdadeiro pensar dentro do novo paradigma;
- Recuperação crítica do muito que permaneceu impensado, pendente ou reprimido na tradição.
O segundo teólogo que destaco é H. Küng. Este teólogo apresenta apropriadamente o paralelismo das mudanças de paradigmas nas ciências e, consequentemente, na teologia. Fundamentado na obra clássica de Thomas S. Khun, A estrutura das Revoluções Científicas, o autor desenvolve a argumentação de que ao se mudar o paradigma explicativo das ciências em determinada época necessariamente altera-se a teologia daquele período específico.
Todavia, assim como nas ciências, o novo é resistido e rechaçado na teologia pelos representantes dos postulados tradicionais, em processo de superação. O autor procura provar que apesar de haver diferenças metodológicas entre as ciências naturais e as ciências do espírito (Geisteswisseschaften), é válida a aproximação epistemológica e a comparação paradigmática entre a teologia e as ciências naturais.
Para provar sua assertiva define os macros, meso e microparadigmas nas ciências e os compara igualmente à teologia. Assim como, ao tratar do surgimento do novo, descreve cinco pistas de reflexão e analogia entre as duas ciências:
- Autoridade da obra e do autor e dos conhecimentos acumulados;
- Crise do modelo anterior;
- Aparecimento de um novo paradigma;
- Resistência e conversão ao novo paradigma;
- Assimilação do novo pelo antigo, substituição ou continuidade paralela do antigo com o novo, especificamente, na teologia.
As dificuldades de a ciência teológica substituir um paradigma hermenêutico por outro está intrinsecamente relacionado às metanarrativas ainda estudadas e empregadas para a explicação da realidade. E, conforme o autor, há diferenças fundamentais entre a mudança de paradigma nas ciências e na teologia. Küng parte da premissa de que o ponto de partida e objeto da teologia diferentemente das ciências naturais são a mensagem cristã, conforme se apresenta na Escritura. Embora científica, a teologia cristã é determinada por um referencial histórico e pela historicidade. A verdade cristã é uma verdade histórica e, por conseguinte, se distingue das teologias míticas dos gregos e supra-histórico-filosófica dos filósofos, pois se trata de uma justificação racional da verdade da fé cristã cujo objeto é a realidade de Jesus, de Deus e do homem.
Outra característica que distingue a ciência teológica das ciências naturais e históricas é o fato de que, enquanto estas estão vinculadas ao passado e ao futuro e apenas à tradição, a teologia cristã está “vinculada à sua origem”. Isto posto, os escritos vetero e neotestamentários não apenas designam a origem histórica da fé cristã como também sua instância última definitiva.
A fim de acentuar ainda mais essas diferenças, o autor retoma as cinco teses para melhor apresentar as distinções:
- os teólogos clássicos tradicionais têm autoridade secundária [tese sobre a ciência norma];
- a crise na teologia não deriva apenas da própria evolução da ciência teológica, mas também por situações históricas concretas [tese sobre a crise como ponto de partida];
- um testemunho original constitui para a teologia testemunho fundamental e definitivo [tese sobre as mudanças de paradigmas];
- existe o perigo de na teologia usar a decisão científica em favor de certos paradigmas teológicos, numa decisão a favor ou contra a fé [tese sobre conversão e os fatores extracientíficos];
- quando a teologia e a Igreja rejeitam um modelo hermenêutico determinado, a rejeição se transforma facilmente em condenação e a discussão é substituída pela excomunhão. Identificam-se Evangelho e teologia, realidade eclesial e sistema eclesiástico, conteúdo da fé e expressão da fé! [tese sobre as três possíveis saídas de um conflito].
Vimos deste modo como dois importantíssimos teólogos modernos estão discutindo os atuais problemas da teologia contemporânea. Nenhuma tradição é obrigada a aceitar tais proposições, mas é sensato considerá-las seriamente, se de fato há algum interesse em dialogar com a pós-modernidade e fazer a fé inteligível no mundo de hoje. Cabe à teologia pentecostal encontrar o seu próprio caminho num mundo que se fechou para ouvir as vozes teológicas fincadas em paradigmas ultrapassados.
Esdras Costa Bentho é pastor, pedagogo, teólogo e mestre em Teologia pela PUC, RJ.
Bibliografia
QUEIRUGA,
A.T. Fim do cristianismo pré-moderno.
São Paulo: Paulus, 2003.
KÜNG,
H. Teologia a caminho: Fundamentação
para o diálogo ecumênico. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 150-184 e 184-190.