DÁ INSTRUÇÃO AO SÁBIO, E ELE SE FARÁ MAIS SÁBIO AINDA; ENSINA AO JUSTO, E ELE CRESCERÁ EM PRUDÊNCIA. NÃO REPREENDAS O ESCARNECEDOR, PARA QUE TE NÃO ABORREÇA; REPREENDE O SÁBIO, E ELE TE AMARÁ. (Pv 9.8,9)

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Paulo, o Apóstolo dos Gentios (I)

INTRODUÇÃO

Archibald Thomas Robertson afirmou com muita propriedade que, excetuando o próprio Jesus, Paulo é o principal representante de Cristo e o expoente mais hábil da fé cristã.[i] O apóstolo dos gentios desempenhou diversas funções no cristianismo primitivo: missionário, apologista, hagiógrafo, mestre, polemista, entre outras importantes atribuições.

Enquanto em Atos dos Apóstolos Pedro é proeminente nos primeiros doze capítulos, o missionário da incircuncisão ocupa a segunda e maior metade do livro, do capítulo 13 a 28. Além da proeminência que Lucas dispensa ao fundador das igrejas gentílicas em Atos dos Apóstolos, Paulo foi o escritor sacro mais profícuo do Novo Testamento. Dos vinte e sete livros, escreveu treze epístolas, conhecidas como corpus paulinum e, dos duzentos e oitenta e oito capítulos do Novo Testamento, escreveu cento e quinze, restando apenas cento e setenta e três para todos os demais hagiógrafos. De seu cálamo incansável, diz F.F.Bruce, Paulo deixa patente “quão familiarizado era com os ensinos do Senhor”.[ii]

Paulo foi derrubado para ser cegado;
foi cegado para ser mudado;
foi mudado para ser enviado;
foi enviado para que a verdade aparecesse”
(Santo Agostinho)

I. Paulo, o cidadão histórico

A identidade e historicidade de Paulo jamais foram seriamente postas em dúvida. Ernest Renan (o Cético), por exemplo, no segundo volume, Les Apotres (Os Apóstolos), da famosa obra Histoire des Origines du Christianisme (33-45), afirma que Paulo foi a maior conquista da Igreja Primitiva e o “mais ardente dos discípulos de Jesus”.[iii] Se por um lado o Cético atestava a veracidade de Paulo, por outro, Marcião o considerava, em detrimento aos demais, o único apóstolo de nosso Senhor Jesus Cristo.

Já o biblicista Fabris declara que Paulo é o personagem da primeira geração de cristãos que possui as mais comprobatórias evidências de sua pessoa e trabalho.[iv] As fontes tão variadas são que o exegeta classificou-as em:

  • fontes cristãs canônicaso epistolário paulino;
  • fontes cristãs apócrifasAtos de Paulo e Tecla, Apocalipse de Paulo, o Martírio de Paulo [...];
  • fontes profanas de caráter epigráficas, literárias, papirológicas e arqueológicas [...].[v] A essas fontes devemos acrescentar os testemunhos dos sucessores dos primeiros apóstolos: Clemente de Roma, Inárcio, Policarpo e até mesmo as evidências em Marcião, o herege.

Essas evidências textuais, seja canônica, seja profana, literária ou arqueológica, auxiliam no estabelecimento e compreensão do contexto eclesiástico dos primeiros cinco séculos da Igreja Cristã. Sabe-se pelos registros dos cristãos que viveram os quingentésimos anos da Igreja, que os Pais jamais contestaram a historicidade de Paulo, muito embora haja discordância a respeito de suas epístolas. Atualmente, as controvérsias referem-se mais a autoria de algumas epístolas, chamadas deuterocanônicas, do que propriamente a pessoa e obra do apóstolo Paulo. Há, portanto, mais evidências da pessoa, ensinos e obras de Paulo do que qualquer outro grande personagem cristão da igreja nascente.

FONTES HISTÓRICAS DA VIDA DE PAULO

Epistolário Paulino

Cristãs Apócrifas

Profanas

Pais Apostólicos

Gráfico 1: Taxonomia das fontes paulinas.

1. Saulo de Tarso

Paulo era natural da célebre[vi] cidade de Tarso, localizada na Cilícia (At 9.11; 11.25; 21.39; At 22.3; Gl 1.21). Essa rica e culta cidade de língua grega ficava 26 metros acima do mar e distante 16 quilômetros do nível do Mediterrâneo. [vii] Além de ser uma das mais antigas cidades do mundo, no século 1, era a capital e a maior cidade da Cilícia.

A população de Tarso jactava-se de sua riqueza agrícola e comercial, bem como de sua universidade, julgada superior às grandes academias de Alexandria e Atenas. O historiador, geógrafo e filósofo grego Estrabão (58 a.C.) descreve o povo de Tarso como “apaixonados pela filosofia” e de “espírito enciclopédico”; e a cidade como aquela que eclipsou todas as outras que foram “terra natal de alguma seita ou escola filosófica”.[viii]

Do vulto de seus intelectuais, a cidade de Tarso orgulhava-se do filósofo estoico Athenodoros, nascido em 74 a.C., preceptor de César e autor profícuo de diversas obras históricas e filosóficas.[ix] Murph-O’Connor, assinala que os habitantes de Tarso eram seriamente entusiasmados com a educação, a ponto de saírem da terra natal em busca de mais conhecimentos.[x]

1.1. A educação do jovem hebreu de Tarso

A influência da cultura e do espírito crítico da cidade de Tarso nota-se na formação heleno-latina de Paulo. Como já citei em nossa obra Hermenêutica Fácil e Descomplicada, em Atos 17.28, por exemplo, o apóstolo cita o poeta e filósofo estoico natural da Cilícia, Arato (315-240 a.C.), e também a poesia Hino a Zeus, do filósofo estoico Cleantos (331-232 a.C.), discípulo de Zenão de Cício (332-269 a.C.), fundador da escola estoica.

Em 1 Coríntios 15.32, Paulo faz também uma referência provável a Isaías 22.13: “Comamos e bebamos, que amanhã morreremos”. Todavia, escavações arqueológicas descobriram em Anquiale, cidade vizinha a Tarso, uma estátua do fundador da “metrópole da Cilícia”, Sardanapalo, com a seguinte inscrição: “Come, bebe, desfruta a vida. O resto nada significa”. É provável que Paulo ao citar positivamente a exortação de Isaías tivesse intenção de criticar essa declaração hedonista.[xi]

Embora empregasse diversos recursos estilísticos e retóricos greco-romanos, e citasse perícopes e versos dos filósofos e poetas, a exegese paulina era fundamentalmente hebraica, condicionada, principalmente, pela sua formação judaica e leitura do Antigo Testamento dos Setenta. Mas o que sabemos concretamente a respeito da formação de Paulo em Tarso?

Entre os especialistas não há muita unidade a respeito da formação universitária de Paulo. Todos concordam que ele era um judeu culto da diáspora e familiarizado com a poesia e filosofia de sua época, porém discordam entre si a respeito da educação formal de Paulo. F. F. Bruce, baseado em Atos dos Apóstolos 22.3, afirma que Paulo embora “nascido em Tarso, foi educado em Jerusalém” e, por essa razão, o erudito não aceita a hipótese de que Paulo tenha frequentado as escolas de Tarso, muito embora vivesse em um centro de cultura grega. [xii]

Outro biblista, Christopher Forbes, ao comparar as epístolas paulinas com os recursos retóricos antigos, se convence de que “Paulo não é, em termos greco-romanos, um ‘homem de letras’ (anēr logios, At 18.24)”.[xiii] Para Forbes, a educação formal de Paulo não atingiu os níveis superiores.

Todavia, Ronald F. Hock afirma que “as cartas de Paulo, a despeito de seus desmentidores, denotam uma pessoa que havia passado pela sequência curricular da educação greco-romana”. [xiv] Para provar sua assertiva, Hock recorre à estrutura da educação formal do primeiro século e sua relação com as citações paulinas dos poetas e filósofos. As citações primárias de filósofos como Eurípedes e Menandro, justificam, para o rapsodo, a passagem de Paulo pela primeira etapa da educação grega ou pelo currículo primário; e o uso de recursos literários e das citações explícitas da Septuaginta, a participação no currículo secundário. Hock está convencido, pela análise da extensão, complexidade e vigor das epístolas paulinas que o seu autor “recebeu um treinamento continuado em composição e retórica” e, por essa razão, cursou o currículo terciário, que preparava os seus aprendentes nessas técnicas.[xv]

Há tantas lacunas cronológicas na biografia de Paulo, que estou convencido de que nenhuma das posições pode ser afirmada com certeza, e a exiguidade desse espaço não permite aprofundar as discussões. Contudo, o fato de o apóstolo ser educado em Jerusalém, não significa necessariamente que ele não completou os estudos formais comuns aos jovens de Tarso. Para retomar de outro modo a generalidade do problema, a dificuldade de se encontrar os elementos retóricos mais sofisticados e apurados nas epístolas, justifica-se por elas não serem tratados retóricos formais, mas escritos desenvolvidos para dirimir dúvida e controvérsias pontuais nas igrejas cristãs citadinas. Paulo as escreve na urgência do trabalho missionário, como justifico em nossa obra Igreja: Identidade e Símbolos.[xvi] É óbvio que os escritos de Paulo testificam da genialidade de seu autor. Dificilmente alguém negaria ao apóstolo o status de pessoa educada e instruída na filosofia, retórica e composição literária. De modo geral, em círculos mais ortodoxos, a cristandade está mais disposta a aceitar a posição de Hock do que a de Bruce e Forber, muito embora alguns especialistas prefiram o contrário.

Controvérsias à parte, independente de Paulo ter cursado ou não uma universidade em Tarso, ele era um teólogo e homem extremamente culto. E as influências culturais de ser criado em uma cidade cosmopolita, que se orgulhava de seu sistema de ensino e de seus filósofos, deixaram marcas indeléveis no jovem judeu de Tarso.

Todavia, Paulo mostra-se reticencioso no emprego de sua educação na formação das igrejas cristãs citadinas. Apesar de encontrarmos diversos recursos estilísticos e retóricos no epistolário paulino, o apóstolo recusava-se, como afirmou Ronald F. Hock, a “incorporar a sabedoria mundana na sua pregação apostólica (1 Co 2.1-4).” [xvii]



Notas

[i] ROBERTSON, A.T. Épocas na vida de Paulo: um estudo do desenvolvimento na carreira de Paulo. 2.ed., Rio de Janeiro: JUERP, 1982, p.17.

[ii] BRUCE, F.F.Merece confiança o Novo Testamento? São Paulo: Edições Vida Nova, 1965, p. 102.

[iii] RENAN, Ernest. Histoire des Origines du Christianisme (33-45): Les Apotres. Paris: Calmann-Lévy, Éditeurs [?], p.163.

[iv] FABRIS, Rinaldo. Para ler Paulo. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p.7.

[v] Id.Ibid., p.7-12.

[vi] Em At 21.39, Paulo refere-se a Tarso como “cidade pouco célebre na Cilícia”, provavelmente faz jus a Estrabão que da cidade dissera, “ela pode reivindicar o nome e o prestígio de metrópole da Cilícia”; Geografia XIV, 5.5-15, apud Fabris, Id.Ibid., p.22.

[vii] Ver PFEIFFER, C. F. (et al.) Dicionário bíblico Wycliffe. Rio de Janeiro: CPAD, 1996, p.1884.

[viii] Descrição geográfica e histórica da cidade de Tarso feita por Estrabão, Geografia XIV, 5.5-15, apud Fabris, Id.Ibid., p.22.

[ix] Estrabão afirma que a cidade possuía dois grandes intelectuais de mesmo nome, o citado é Athenodoro Cananita, tutor e conselheiro de Augusto, e o outro é o Estóico, companheiro de Cato, o jovem; Geografia XIV, 5.5-15, apud Fabris, Id.Ibid., p.22.

[x] MURPHY-O’CONNOR, Jerome. Paulo, biografia crítica. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p.50.

[xi] BENTHO, Esdras C. Hermenêutica fácil e descomplicada: como interpretar a Bíblia de maneira prática e eficaz. 9.ed.,Rio de Janeiro: CPAD, 2009, p.196-198; ver ainda CHAMPLIN, R.N. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Candeias, 1995, p.377, vl. III, Atos a Romanos.

[xii] BRUCE, F.F. Paulo nos Atos e nas Cartas. In: HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, R.P.; REID, D.G. (orgs.) Dicionário de Paulo e suas Cartas. São Paulo: Paulus, Vida Nova, Edições Loyola, 2008, p.940.

[xiii] FORBES, Christopher. Paulo e a comparação retórica. In: SAMPLEY, J. P. (org.) Paulo no mundo greco-romano: um compêndio. São Paulo: Paulus, 2008, p.133.

[xiv] HOCK, Ronald F. Paulo e a educação greco-romana. In: SAMPLEY, J. P. (org.) Paulo no mundo greco-romano: um compêndio. São Paulo: Paulus, 2008, p.185.

[xv] HOCK, Ronald F. Id. Ibid, p.186,187.

[xvi] BENTHO, Esdras C. Igreja: Identidade e Símbolos. Rio de Janeiro: CPAD, 2010.

[xvii] HOCK, Ronald F.Id. Ibid, p.171.

4 comentários:

ESTUDANTES DE HISTÓRIA disse...

Shalom

De modo geral, em círculos mais ortodoxos, a cristandade está mais disposta a aceitar a posição de Hock do que a de Bruce e Forber, muito embora alguns especialistas prefiram o contrário.

Meu querido irmão...você não equivocou-se aqui?!
Respeitosamente...

Esdras Costa Bentho disse...

Kharis kai eirene

Prezado Jacob Pereira, obrigado por sua participação no Teologia & Graça.

Caríssimo Jacob, talvez eu tenha equivocado-me, mas não consegui identificar tal erro na conclusão. A ideia que procurei transmitir foi a de que Bruce e Forber não admitem que Paulo tenha frequentado uma universidade em Tarso, enquanto Hock está convencido de que as citações paulinas dos filósofos e da LXX são provas suficientes para testificar a passagem de Paulo pela universidade de Tarso. Daí a conclusão de que a ortodoxia protestante está mais propensa a admitir que Paulo tenha frequentado tais estudos, favorecendo ou apoiando a posição de Hock, do que a teoria que nega a passagem de Paulo pela universidade. Essa posição quase não tem adeptos entre os ortodoxos.

Todavia, se ainda não estiver claro, gostaria que o senhor nos ajudasse nesse particular, explicitando essa possível discrepância.

Um abraço

ESTUDANTES DE HISTÓRIA disse...

תודה

Daniel disse...

tenho uma pergunta ! O apostolo paulo faz citacoes de texto de filosofos na biblia?

TEOLOGIA & GRAÇA: TEOLOGANDO COM VOCÊ!



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