
É fato atestado pelos biblicistas do Novo Testamento que o título “Atos dos Apóstolos” atribuído à obra do evangelista Lucas, surgiu provavelmente no final da segunda metade do século II da era cristã, e no século IV já se encontrava no Codex Sinaiticus e Vaticanus.
Praksis
O termo grego Praksis ou Atos, não é usado apenas em sentido próprio (atividade, função, atos), mas literário. Na época em que a epígrafe foi posta no rol das obras sacras, Praksis também era empregado para designar o gênero literário que se ocupava em descrever as ações, os feitos, ou as realizações das grandes cidades e povos. Se assim o for, o título Atos dos Apóstolos não cumpre satisfatoriamente os objetivos do gênero, uma vez que apenas dois apóstolos, Pedro e Paulo, são proeminentes: Pedro nos doze primeiros capítulos e Paulo nos doze últimos, mesmo assim, afirma Cullmann, há “lacunas e deformações” [1] no relato das ações desses apóstolos.
Estrutura Literária
Porém, a estrutura literária parece indicar que um dos objetivos do hagiógrafo é descrever o nascimento e desenvolvimento da Igreja cristã através dos “atos do Espírito Santo” no mundo de então. Conforme asseverou o teólogo franco-alemão, “não são os ‘atos’ desses apóstolos que achamos neste livro, mas antes a história da difusão do Evangelho, de Jerusalém até Roma, pela ação do Espírito Santo”.[2]
O sumário do progresso do Evangelho nas diversas regiões do império estão registrados nas seguintes perícopes: (a) Atos 6.7 – nascimento e fortalecimento da igreja em Jerusalém; (b) 9.31 – a expansão da igreja na Palestina; (c) 16.5 – progresso da igreja na Ásia Menor; (d) 19.20 – a igreja vitoriosa na Europa; e, por fim, (e) 28.31 – expansão e progresso da igreja até o centro do império. Considerando que o livro de Atos dos Apóstolos é obra de autoria do evangelista Lucas, torna-se relevante a constatação de que o vocábulo ekklēsia não é mencionado no evangelho lucano, embora várias vezes em Atos.[3]
Lucas-Atos e a Igreja
Detendo-se no desenvolvimento da narrativa do Evangelho que se propõe, “depois de acurada investigação de tudo desde a sua origem” a dar “uma exposição em ordem” (Lc 1.3 – ARA), chegamos a verossímil afirmação de que Lucas não entrevê, ainda que nas sublinhas da história que se propôs a descrever, qualquer manifestação da Igreja antes do Pentecostes.
Diferente de Mateus em 16.13-20, Lucas, ao que tudo indica, segue a narrativa marcana (8.27-30) e omite o diálogo entre Jesus e Pedro concernente à posição primus interpares do apóstolo, e, consequentemente, o termo ekklēsia (9.18-21).
O Evangelho (24.45) encerra com Jesus abrindo, diēnoiksen,[4] “a mente” (ton noun) dos discípulos para “entenderem as Escrituras” (tou synienai tas graphas), ordenando-lhes que, em seu nome, pregassem (kēryssō) o “arrependimento” (metanoian)[5] para perdão de pecados “a todas as etnias” (eis panta ta ethnē), começando por Jerusalém. Porém, deveriam pacientemente “assentar”, kathidzo, (permanecer [ARA]; ficar [NVI/ARC]) na cidade até que a “promessa do Pai” se cumprisse e todos fossem “revestidos de poder do alto”. (vv.47-49).
Após o comissionamento divino, os discípulos adoram a Jesus e “com grande alegria” (meta kharas megalēs) retornam a Jerusalém (vv.52,53). O Evangelho que fora apresentado a Teófilo com a narração dos eventos que antecederam e sucederam o nascimento de Jesus, adornado por seus ensinos e milagres e dramatizado através da paixão de Cristo, chega ao clímax com a ressurreição e ascensão do Filho de Deus.
Posfácio e Prefácio de Lucas-Atos
Não somos escusados de frisar que o prefácio do livro de Atos dos Apóstolos retoma a via literária que encerra o Evangelho. No prólogo de Atos, o rapsodo sintetiza os propósitos da primeira obra, reafirmando a metodologia empregada em Lucas-Atos (Lc 1.1-4; At 1.1-5), e retoma, após o prefácio, o tema que segue em Atos 1.6,12, e versículos sucessivos.
A perícope é quase um pós-escrito do primeiro Evangelho. O evangelista emprega estilisticamente no versículo
Uma leitura do texto bíblico, livre de qualquer premissa, assevera o inverso da teoria bultmanniana. O emprego das palavras autoptai – testemunhas oculares –, hypēretai tou logou – ministros da Palavra –, parēkolouthēkoti anōthen – [eu] tenho acompanhado de perto desde o início –, akribōs – exatidão –, katheksēs – seqüência precisa –, contradiz qualquer argumento que atribua um caráter de “colorido lendário” ao livro de Atos.
É inadmissível que Lucas tenha falseado a história da igreja cristã primitiva, ou que os cristãos do primeiro século foram adeptos da historiografia áulica, semelhante à falta de comedimento dos historiadores antigos e palacianos que atribuíam discursos e feitos extraordinários não verdadeiros aos biografados. O historiador Lucas, entretanto, investigou os fatos, entrevistou as testemunhas oculares e acompanhou os muitos episódios que narrou: “Como nos transmitiram desde o começo as testemunhas oculares e aqueles que se tornaram ministros da Palavra, pareceu-me bem, tendo acompanhado de perto todos os acontecimentos com exatidão desde o início, em precisa e ordenada seqüência, escrever a ti, excelentíssimo Teófilo.” (Lc 1. 2, 3; cf. At 16.10-17; 20.5-15; 21.1-8; 27.1; 28.16).
Análise estilística
Adaptação e revisão. Não é apenas plausível como também necessário que se registre o fato de o literato ter revisado, editado e adaptado os discursos e os fatos que se propôs a narrar. O cálamo do autor pulsa semelhante às impressões e ao impacto que a história exerce sobre ele. Lucas não se detêm como os impressionistas, mas análogo aos realistas, evita o exagero, as minudências, as ocorrências dramaticamente irrelevantes a fim de não empobrecer o tonus da ação.
A obra é intensa e densa. Os fatos desenvolvem-se com muita rapidez e as ações do Espírito, através dos apóstolos, assinalam o ritmo e a freqüência com que novos eventos são acrescentados à narrativa. Todavia, a densidade da obra compacta os eventos assinalados e à vagareza com que se costuma ilustrar a história cede espaço à força da linguagem e à síntese dos fatos.
Primeiros quarenta anos. Outro elemento que contribui favoravelmente à nossa proposição é o fato de o historiógrafo pontuar os primeiros quarenta anos do Cristianismo com os nomes e alguns fatos episódicos da história secular. Diferente dos outros três evangelistas, Lucas traça um breve paralelo com o governo de certos imperadores romanos: César Augusto (Lc 2.1), Tibério César (Lc 3.1), Cláudio César (At 11.28; 18.2), e Nero, o César de Atos 16.11,21. Há de se acrescentar em Lucas 1.5 o rei da Judéia, Herodes, o Grande, ainda em 2.2, Cirênio, governador da Síra. Encerro as proposições acima, socorrendo-me nas palavras do erudito F.F.Bruce que, a respeito da verve historiográfica de Lucas afirmou: “O escritor que dessa forma relaciona a própria narrativa com o contexto mais amplo da história secular se expõe a sérias dificuldades, se não é bastante cuidadoso; oferece ao leitor crítico tantas oportunidades para testar-lhe a exatidão. Lucas enfrenta esse risco e sai-se muito bem.”[7]
[1] CULLMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento. 10.ed.rev., São Leopoldo: Editora Sinodal, p.38.
[2] Id.Ibid., p.37.
[3] Até mesmo Ernest Renan em sua obra Lês Apotres confirma a autoria lucana de Lucas-Atos: “Um assunto fora de dúvida é o fato de que os Atos tiveram o mesmo autor do terceiro Evangelho. Não precisamos provar esta proposta, a qual nunca foi seriamente contestada”. Ver Histoire dês origines du Christianisme. Libre Deuxième: Lês Apotrês. Paris: Calmann-Lévy, Éditeurs, [s.d.], p. x.
[4] Literalmente diēnoiksen quer dizer “abrir bem”.
[5] Literalmente “mudança de mente”.
[6] BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004, p.73.
[7] BRUCE, F.F. Merece confiança o Novo Testamento? São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1965, p. 107.
Créditos das iconografias: Luis Tristán : http://pintura.aut.org/BU04?Autnum=11.617&EmpNum=15069
O Espírito Santo retratado como uma pomba no vitral que fica atrás da Cátedra da Basílica de São Pedro, Roma. Fonte: Wikipédia.