A igreja mística, una e universal (Heilsgemeinde), é também, em seu aspecto local, antropológica e multicultural (lokale Begrenzung), de acordo com as manifestações de cada povo ou raça. Lembremos que um dos primeiros problemas da “comunidade das origens”, para usar uma expressão de Joachim Jeremias [1], não foi doutrinário, mas principalmente multicultural e antropológico, manifestado na disputa entre judeus e gentios em virtude dos costumes correspondentes a cada raça (At 2.8-13; 6.1,2; 10; 11;15).
Surge, portanto, uma igreja na Palestina com acento judaico, e outra, helenista-cristã, na Ásia Menor, com uma identidade gentílica, sem os entraves da religião judaica: “... e isto lhes agradeço, não somente eu, mas também todas as igrejas dos gentios” (Rm 16.4).
Por conseguinte, a igreja é mística, espiritual, mas também humana, antropológica. Sua presença e natureza são tanto divina como terrena. Ela é Corpo de Cristo e, de acordo com Tomás de Aquino, “a congregação dos fiéis a caminho para a glória” [2], todavia composta de pecadores remidos pelo sangue de nosso Senhor Jesus Cristo. Embora os membros sejam imagem divina em processo de transformação escatológica (2 Co 3.18; 1 Jo 3.1-3), todos, são igualmente humanos e falíveis.
Ela é espiritual e humana; mística e natural. Enquanto a natureza divina da ekklēsía promana da unidade com Cristo, seja como corpo seja como ramo (Jo 15; Ef 1.22,23), a identidade humana dimana não apenas do relacionamento mútuo de seus membros, mas de sua natureza como povo redimido (Gl 3.13). Cabe perfeitamente nesta assertiva o conceito antropológico do teólogo e pensador reformado Francis A. Schaeffer. Este concebe a ekklēsía como “humanidade que fora convocada para sair de uma humanidade perdida”. [ 3]
A igreja é constituída de pecadores redimidos por Cristo que, à semelhança de Isaías, está diante do Trono, contudo, tremendo em sua humanidade impura. A igreja deve reconhecer sua grandeza – ela é Corpo de Cristo – mas jamais pode se esquecer de suas limitações e fraquezas – o pecado ainda é uma realidade latente, não obstante sua transformação à semelhança de Cristo (Ef 4.13).
Pascal afirmara que a verdadeira religião é aquela que permite que conheçamos nossa mais íntima natureza, sua grandeza, insignificância e a razão para ambas. De acordo com o cientista e teólogo francês, a fé cristã é a única que tem esse conhecimento.[4]
É na relação celíflua com o Λόγος que os membros da ekklēsía conhecem o verdadeiro propósito de sua criação, redenção e glorificação. Nesse inaudito e glorioso convívio a índole carnal sede para “o novo homem” que “segundo Deus” foi criado em verdadeira justiça e santidade de vida (Ef 4.24). Em Cristo, a ekklēsía vive e reflete a verdadeira humanidade, “o novo homem segundo Deus”; o poema que foi criado em Cristo (Ef 2.10). Ao “ter sido feito semelhante aos homens”, Jesus tornará os redimidos semelhantes a Ele (Hb 2.17; 1 Jo 3.2; Fp 3.21).
Nenhuma instituição humana cumpre essa função, somente a ministração salvífica da Santíssima Trindade é capaz de transformar pecadores redimidos à semelhança do Filho de Deus, e convertê-los em Corpo de Cristo! Não são os programas litúrgicos, as inúmeras festividades, o estatuto, as tradições, os bons costumes e as convenções sociais da igreja que transformam pecadores à imagem de Cristo, mas o relacionamento entre o homem e Deus através do sacrifício vicário de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio da ação noutética do Santo Espírito.
Ainda que esta seja a natureza transformacional da ekklēsía – organismo espiritual, santo e universal – a igreja também vive suas limitações locais como corpo e membro uns dos outros. A natureza una, espiritual e santa do Corpo de Cristo opõe-se à realidade social, cultural e humana da igreja visível.
Notas
[1] JEREMIAS, Joachim. A mensagem central do Novo Testamento. São Paulo: Editora Academia Cristã, 2005, p. 55. Jeremias assim chama a “comunidade pré-paulina”.
[2] AQUINO, Tomás. Suma teológica. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 192, Vl. VIII.
[3] SCHAEFFER, F.A. Verdadeira espiritualidade. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p.207.
[4] PASCAL, B. Mente em chamas: fé para o cético e indiferente. Brasília: Editora Palavra, 2007. p. 173.
Notas
[1] JEREMIAS, Joachim. A mensagem central do Novo Testamento. São Paulo: Editora Academia Cristã, 2005, p. 55. Jeremias assim chama a “comunidade pré-paulina”.
[2] AQUINO, Tomás. Suma teológica. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 192, Vl. VIII.
[3] SCHAEFFER, F.A. Verdadeira espiritualidade. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p.207.
[4] PASCAL, B. Mente em chamas: fé para o cético e indiferente. Brasília: Editora Palavra, 2007. p. 173.
16 comentários:
Graça e Paz Pr. Esdras,
Ótimo artigo!
Em Cristo,
Ednaldo.
Shalom!
1. Nobre Pr "Ezra", mais um belo texto de sua destra pena. Já virei seguidor do seu distinto blog. O blog combina profundidade, sem perder a simplicidade.
2. Recordo-me agora, o texto de Paulo, de Efésios 3.10 - "[...] pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e potesdades nos céus". Deus está formando uma comunidade multiracial e multicultural como uma bela tapeçaria – Este novo povo, formado por judeus e gentios, reconciliados com Deus e uns com os outros revela a multiforme sabedoria de Deus (poikilos) = multicolorido. Essa palavra era usada para descrever flores, coroas, tecidos bordados e tapetes trançados. A igreja como uma comunidade multi-racial e multicultural é como uma bela tapeçaria. Seus membros vêm de uma vasta gama de situações singulares. Nenhuma outra comunidade humana se assemelha a ela. Sua diversidade e harmonia são sem igual. É a nova sociedade de Deus.
um abraço do companheiro,
Pr Marcello de Oliveira
P.s está no blog a resposta sobre a tradução de Ex 3.14
Caro Pr. Esdras Bentho!
Graça e Paz!
Permitindo Deus nos conheceremos pessoalmente em Vitória-ES.
O amado conseguiu expor as duas realidades da Igreja.
Uma não anula a outra.
Como parte itegrante da Igreja, precisamos aprender a conviver com as duas realidades!
É um exercício permanente!
Ao mesmo tempo que espiritualmente a Igreja é santa e imaculada, de outro lado é hospital e oficina para os pecadores que arerependidos lutam pela santificação através da Palavra de Deus.
Parabéns pelo texto
Deus continue a ser glorificado através da sua lavra.
Um grande abraço!
Pr. Carlos Roberto
Um grande abraço
Caro Pastor Esdras :
Seu texto realmente nos faz pensar a igreja de Cristo, é o que estamos fazendo dela.
Acho interessante que a igreja é um corpo mistico, espiritual e antropológica, o grande problema é que muitos só veem o lado espiritual esquecendo-se do lado antropológico, quando mesclamos esses lados e reconhecemos nossa dependêcia em Deus e também daqueles que de nós se acercam, a igreja é sem duvida nenhuma o melhor lugar para se estar.
Disse certa feita que há muitos pregadores e poucos expositores da palavra, que Deus te conserve assim expondo de forma clara e objetiva sua palavra.
Em Cristo, Sola Fide Marcos
HAHAHAHAHAHAHA!!!!
Olá, Esdras.
A paz e a graça do Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Só passando pra dizer que tem selo pra este blog no Páginas Incadernadas - http://paginca.blogspot.com/2009/03/selo.html
Dentre os indicados estão o blog da Norma Braga, o Apologia e o blog O Tempora, O Mores.
Um grande abraço, em Cristo Jesus.
Pr. Esdras,
Excelente exposição sobre a igreja. Também gosto de ler Joachim Jeremias, apreciei muito a citação do seu livro.
Abraço.
Essa foi minha primeira visita, mais aprendi o caminho.
Alan
www.leidosentidocomum.blogspot.com
Shalom!
1. Amado PR "Ezra", estou aguardando sua resposta referente ao texto de Ex 3.14.
2. A resposta de sua pergunta já se encontra lá no blog.
um grande abraço,
Pr Marcello Oliveira
Caro Pr. Esdras, a Paz do Senhor!!
"Nenhuma instituição humana cumpre essa função, somente a ministração salvífica da Santíssima Trindade é capaz de transformar pecadores redimidos à semelhança do Filho de Deus, e convertê-los em Corpo de Cristo! Não são os programas litúrgicos, as inúmeras festividades, o estatuto, as tradições, os bons costumes e as convenções sociais da igreja que transformam pecadores à imagem de Cristo, mas o relacionamento entre o homem e Deus através do sacrifício vicário de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio da ação noutética do Santo Espírito."
Excelente colocação, verdadeiramente a obra é feita por Deus, através do relacionamento com o pecador, é que o transforma, se os líderes da igreja na atualidade entendessem isso, certamente teríamos mais qualidade e talvez quantidade em nossos templos.
Em Cristo,
João Paulo
Muito bom seu blog parabens !
Caro professor Esdras o senhor tem nos abençoado muito c/ artigos bem interessantes vindo da parte de Deus. parabéns!!
www.lerecrer.blogspot.com
Kharis kai eirene
Prezados irmãos, parceiros do Teologia & Graça, desculpe-me pela demora em responder vossos comentários. Desde a última postagem fui transferido do setor de Educação Cristã para o setor de Bíblias e Obras Especiais da CPAD e, além disso, estive revisando e copidescando importantes obras para serem lançadas ainda nesse semestre.
Logo, o calendário de atividades editoriais bem como minhas novas responsabilidades e adaptação ao novo setor exigiram muito de nosso empenho e esforço.
Ainda posso acrescentar meus estágios em Gestão Educacional em Instituições Não-Escolares, que ocupam muito o meu tempo com relatórios, treinamentos entre outras responsabilidades.
Todavia, acompanhei, li e prestei atenção nas intervenções textuais dos caros amigos.
Agradeço aos pastores Ednaldo, Marcello, Marcos, Rouver, Juber, João Paulo, Luccas, Marcelo, Alessandro, Zwínglio e muitos outros que passaram em nosso blog, até mesmo ao “Anônimo” que, sempre que pode, compartilha suas gargalhadas ... [aos poucos, em vez de rirmos com ele estaremos “rindo dele”.]
Obrigado pela participação de cada um de vocês.
Esdras Bentho
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