Theología, segundo o étimo helênico, é a ciência que estuda sobre Deus e todos os assuntos pertinentes à fé e à religião. O Theólogo é tanto o que fala a Palavra de Deus quanto aquele a quem Deus fala. A fé, do ponto de vista da theologia, é axioma indispensável à compreensão do Inefável.
A igreja mística, una e universal (Heilsgemeinde), é também, em seu aspecto local, antropológica e multicultural (lokale Begrenzung), de acordo com as manifestações de cada povo ou raça. Lembremos que um dos primeiros problemas da “comunidade das origens”, para usar uma expressão de Joachim Jeremias [1], não foi doutrinário, mas principalmente multicultural e antropológico, manifestado na disputa entre judeus e gentios em virtude dos costumes correspondentes a cada raça (At 2.8-13; 6.1,2; 10; 11;15).
Surge, portanto, uma igreja na Palestina com acento judaico, e outra, helenista-cristã, na Ásia Menor, com uma identidade gentílica, sem os entraves da religião judaica: “... e isto lhes agradeço, não somente eu, mas também todas as igrejas dos gentios” (Rm 16.4).
Por conseguinte, a igreja é mística, espiritual, mas também humana, antropológica. Sua presença e natureza são tanto divina como terrena. Ela é Corpo de Cristo e, de acordo com Tomás de Aquino, “a congregação dos fiéis a caminho para a glória” [2], todavia composta de pecadores remidos pelo sangue de nosso Senhor Jesus Cristo. Embora os membros sejam imagem divina em processo de transformação escatológica (2 Co 3.18; 1 Jo 3.1-3), todos, são igualmente humanos e falíveis.
Ela é espiritual e humana; mística e natural. Enquanto a natureza divina da ekklēsía promana da unidade com Cristo, seja como corpo seja como ramo (Jo 15; Ef 1.22,23), a identidade humana dimana não apenas do relacionamento mútuo de seus membros, mas de sua natureza como povo redimido (Gl 3.13). Cabe perfeitamente nesta assertiva o conceito antropológico do teólogo e pensador reformado Francis A. Schaeffer. Este concebe a ekklēsía como “humanidade que fora convocada para sair de uma humanidade perdida”. [ 3]
A igreja é constituída de pecadores redimidos por Cristo que, à semelhança de Isaías, está diante do Trono, contudo, tremendo em sua humanidade impura. A igreja deve reconhecer sua grandeza – ela é Corpo de Cristo – mas jamais pode se esquecer de suas limitações e fraquezas – o pecado ainda é uma realidade latente, não obstante sua transformação à semelhança de Cristo (Ef 4.13).
Pascal afirmara que a verdadeira religião é aquela que permite que conheçamos nossa mais íntima natureza, sua grandeza, insignificância e a razão para ambas. De acordo com o cientista e teólogo francês, a fé cristã é a única que tem esse conhecimento.[4]
É na relação celíflua com o Λόγος que os membros da ekklēsía conhecem o verdadeiro propósito de sua criação, redenção e glorificação. Nesse inaudito e glorioso convívio a índole carnal sede para “o novo homem” que “segundo Deus” foi criado em verdadeira justiça e santidade de vida (Ef 4.24). Em Cristo, a ekklēsía vive e reflete a verdadeira humanidade, “o novo homem segundo Deus”; o poema que foi criado em Cristo (Ef 2.10). Ao “ter sido feito semelhante aos homens”, Jesus tornará os redimidos semelhantes a Ele (Hb 2.17; 1 Jo 3.2; Fp 3.21).
Nenhuma instituição humana cumpre essa função, somente a ministração salvífica da Santíssima Trindade é capaz de transformar pecadores redimidos à semelhança do Filho de Deus, e convertê-los em Corpo de Cristo! Não são os programas litúrgicos, as inúmeras festividades, o estatuto, as tradições, os bons costumes e as convenções sociais da igreja que transformam pecadores à imagem de Cristo, mas o relacionamento entre o homem e Deus através do sacrifício vicário de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio da ação noutética do Santo Espírito.
Aindaque esta seja a natureza transformacional da ekklēsía – organismo espiritual, santo e universal – a igreja também vive suas limitações locais como corpo e membro uns dos outros. A natureza una, espiritual e santa do Corpo de Cristo opõe-se à realidade social, cultural e humana da igreja visível. Notas [1] JEREMIAS, Joachim. A mensagem central do Novo Testamento. São Paulo: Editora Academia Cristã, 2005, p. 55. Jeremias assim chama a “comunidade pré-paulina”. [2] AQUINO, Tomás. Suma teológica. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 192, Vl. VIII. [3] SCHAEFFER, F.A. Verdadeira espiritualidade. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p.207. [4] PASCAL, B. Mente em chamas: fé para o cético e indiferente. Brasília: Editora Palavra, 2007. p. 173.
A exegese não se ocupa apenas da normatização das regras do texto bíblico, mas também do estudo e da pesquisa dos diversos métodos empregados na análise e interpretação de textos.
A exegese como ciência da metodologia bíblica, investiga o progresso de várias ciências congêneres como o estruturalismo, a semiótica, a lingüística entre outros ramos da gramática, literatura, estilística, poesia, retórica e áreas congêneres. Consequentemente, a ciência exegética está em constante construção pesquisando e adotando o que cada período traz de contribuição à compreensão do texto bíblico.
Logo, a exegese não se limita a uma norma, pois a diversidade do texto bíblico exige o emprego de métodos variegados, conforme a exigência do próprio objeto. O método histórico-crítico, por exemplo, como afirma o exegeta capuchinho Wilhelm Egger, é “um conjunto de métodos” [1] empregados na leitura diacrônica das Escrituras. De acordo com o mesmo literato, a “multiplicidade dos aspectos do texto requer uma pluralidade de métodos”.
Todavia é necessário distinguirmos o método do objeto a ser conhecido. A Bíblia é o objeto a ser pesquisado, a realidade a cujo estudo se dedica o exegeta; o método, por outro lado, corresponde ao conjunto de procedimentos que o hermeneuta emprega na realização da pesquisa e compreensão do objeto.
O conhecimento do sujeito a ser pesquisado, portanto, é a priori ao método. Em razão de ser anterior ao método é muito mais importante e significativo do que a metodologia que, a posteriori, depende do próprio objeto de estudo. A inversão desse princípio pode incorrer em inexatidões e acarretar prejuízos à pesquisa.
Na história, principalmente na época do iluminismo alemão (Aufklärung), muitos exegetas e teólogos elevaram os métodos racionalistas acima da Sagrada Escritura. Eles exaltaram o método e criticaram ácida e intensamente o objeto que se propunham investigar. O método, para alguns deles, era mais superior do que a Bíblia, o objeto a ser investigado. A lógica racionalista dos teólogos, exegetas e filósofos cristãos era a de que a Escritura não passava de um livro humano e, como qualquer outro, passível a todos os tipos de métodos racionais destinados a obras plurisseculares.
Embora pretendessem possibilitar à investigação científica da Bíblia e conciliar a literatura e história bíblicas à razão iluminista, essa premissa hermenêutica rompeu com alguns pressupostos históricos, doutrinários e dogmáticos, entre eles, o de que a Bíblia é a Palavra de Deus – a revelação epistemológica de Deus aos homens.
O método, seguido de premissas extraídas do racionalismo alemão e do deísmo, ignorou o caráter divino da Escritura, sobrepondo a técnica ao objeto a ser pesquisado. Embora a Escritura comporte o exercício das técnicas racionais de investigação, o método não é superior à própria Bíblia.
A passos estugos, devemos acrescentar que, uma vez que o exegeta não é uma tabula rasa, deve, com muito critério, indagar à validade de suas pressuposições e verificar até onde suas premissas interferirão em seu labor. O teólogo liberal Rudolf Bultmann, em seu artigo denominado É possível a exegese livre de premissas? argumenta que o ideal é que o intérprete não presuma o resultado da exegese. Porém, o exegeta é um indivíduo que traz consigo a cultura, a tradição religiosa, preconceitos e conceitos que, por vezes, determinam o resultado da pesquisa, tornando-a questionável.
Infelizmente, diversos exegetas cristãos têm como premissa fundante de seu labor exegético, o naturalismo de Baruque Spinoza, o ceticismo e anti-sobrenaturalismo de David Hume (1711-1776), o evolucionismo de Charles Darwin e, consequentemente, o historicismo progressivo de George Wilhelm Hegel (1770-1831), e o existencialismo de Soren Kierkegarrd (1813-1855).
O desfecho dessas (im) posturas em relação à Bíblia é largamente difundido na história da exegese cristã. Portanto, na exegese bíblica o método não é considerado absoluto e infalível, essas prerrogativas são pressupostos unicamente do objeto a ser pesquisado, a Sagrada Escritura.
Notas [1] EGGER, W. Metodologia do Novo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 1994, Bíblica Loyola 12, p. 16.
Este glorioso capítulo faz uma interseção entre os estados salvífico (vv.1-3) e étnico (vv.11,19) dos efésios com a obra de nosso Senhor Jesus (vv.4-10,13-18). O texto, dividido em duas seções (vv.1-10; 11-22), descreve, assim como o capítulo 1, a “revelação” (ἀποκάλυψιν) de Paulo acerca do “mistério” (μυστήριον) “da dispensação (οἰκοδομίαν) da graça de Deus” (3.1-4). Portanto, essa perícope não se limita aos efésios, mas se estende a todos os que são “morada de Deus no Espírito” (v.22).
I. Da Morte à Vida: O Estado dos Efésios (vv.1-10 [11])
Antes da conversão
1 E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, 2 em que, noutro tempo, andastes, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar, do espírito que, agora, opera nos filhos da desobediência; 3 entre os quais todos nós também, antes, andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os outros também.
Comentário
1-3. E vos vivificou. Esta expressão não consta no texto original [ver 1.1], mas foi extraída provavelmente do contexto do versículo 5. Ainda não consegui identificar a origem dessa glossa. Provavelmente é um caso de elipse ou anacoluto. Deve-se entender que os vv.2,3 são parentéticos, e, que encontramos aqui, um caso comum de digressão. O início do capítulo nas edições gregas é: “Estando vós mortos em ofensas e pecados”, obviamente está unido logicamente ao v. 4: Mas Deus [...]”.
A situação pincelada por Paulo é trágica: mortos espiritualmente em ofensas (παράπτωμα - Mt 6.14, lit. “passo em falso”) e pecados (ἁμαρτίαις - lit. “errar o alvo”). Noutro tempo, refere-se ao estado anterior dos efésios (ver At 19;20). Andastes, o pretérito perfeito concorda com “noutro tempo”. Era uma situação passada. O verbo andar (περιπατέω) era usado em sentido ético pelos judeus [Halakhah – ver Mc 7.5; At 21.21]. Na epístola é repetido em 2.3,10;4.1;5.2,8,15. Os crentes andavam segundo (κατὰ - descreve a norma que rege algo): o curso do mundo, o príncipe das potestades do ar, nos desejos da carne e dos pensamentos. Logo, não eram filhos de Deus, mas “da desobediência e da ira”. Filhos (υἱοῖς) é um hebraísmo para afirmar a natureza, identidade e procedência de alguém.
Depois da conversão
4 Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, 5 estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), 6 e nos ressuscitou juntamente com ele, e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus;
Comentário
4-6. Mas Deus. A conjunção adversativa (δέ) exerce também uma função transicional, pois tanto envolve a mudança de ênfase quanto de estado: da morte para vida, do diabo para Deus, da ira para a graça. Deus é o sujeito das três ações indicadas pelos verbos vivificar, ressuscitar e assentar. No v.5 a morte, ressurreição e ascenso de Cristo são tipos da morte, ressurreição e ascenso do crente. Observe a força dos verbos, aos quais Paulo acrescenta, no grego, o prefixo syn (συν-εξωοποίησεν, ήργειρεν, εκάθισεν). O sujeito é Deus, mas o objeto da ação é dirigido àqueles que estão em Cristo. Lembrar-se que "em" aqui é locativo. Resta-nos apenas adorá-lo por sua ação histórico-redentora. A respeito dos lugares celestiais devemos ler: 1.3; 2.6, 3.10, 6.12.
Propósito da conversão
7 para mostrar nos séculos vindouros as abundantes riquezas da sua graça, pela sua benignidade para conosco em Cristo Jesus.
Comentário
7. Para (ἴνα), “a fim de que”. O propósito de Deus ultrapassa a temporalidade e a compreensão do mistério salvífico pelos salvos: séculos vindouros. As riquezas da graça, a benignidade, a sabedoria e o “mistério desde os séculos, oculto em Deus” (ver. 3.9) são revelados através da ação histórico-salvífico de Deus na Igreja aos incontáveis seres espirituais (3.10) e, por último, no fim-início de todas as coisas.
O meio da conversão
8 Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isso não vem de vós; é dom de Deus. 9 Não vem das obras, para que ninguém se glorie. 10 Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas.
Comentário
8-9. Porque (γὰρ). Esta conjunção explicativa indica uma informação adicional àquilo que já foi dito. Nesta importante perícope temos um dativo de causa: pela graça ou “com base na graça” (τῇ χάριτι). A graça é a causa, “a base de”, ou motivo de nossa salvação. Todavia, através da fé (διὰ πίστεως) expressa o meio pelo qual isso ocorre. A graça de Deus é a base de nossa salvação, e a fé o meio pelo qual a recebemos. A primeira é a base da obra salvífica, mas a segunda, diz respeito à resposta pronta e pessoal do homem ao que Deus preparaou para sua salvação. Uma das dúvidas nesta passagem refere-se à frase: e isso não vem de vós. Refere-se à fé, à graça ou à salvação? O problema está na intrepretação do pronome demonstrativo e isso (τουτο). Neste caso, o pronome (e isso) relaciona-se à salvação, à graça, ou à fé? Sendo o pronome touto neutro no grego e as palavras graça e fé femininas, a melhor aplicação do texto é o “conceito de salvação pela graça mediante a fé”.
II. Da Separação Étnica à Unidade Espiritual em Cristo (11-22)
A situação étnica e espiritual dos efésios
11 Portanto, lembrai-vos de que vós, noutro tempo, éreis gentios na carne e chamados incircuncisão pelos que, na carne, se chamam circuncisão feita pela mão dos homens; 12 que, naquele tempo, estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel e estranhos aos concertos da promessa, não tendo esperança e sem Deus no mundo.
A obra reconciliadora de Cristo
13 Mas, agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto. 14 Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos os povos fez um; e, derribando a parede de separação que estava no meio, 15 na sua carne, desfez a inimizade, isto é, a lei dos mandamentos, que consistia em ordenanças, para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz, 16 e, pela cruz, reconciliar ambos com Deus em um corpo, matando com ela as inimizades. 17 E, vindo, ele evangelizou a paz a vós que estáveis longe e aos que estavam perto; 18 porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito.
A nova situação em Cristo
19 Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos Santos e da família de Deus; 20 edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus Cristo é a principal pedra da esquina; 21 no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para templo santo no Senhor, 22 no qual também vós juntamente sois edificados para morada de Deus no Espírito.
et-Tell, identificada pela arqueologia bíblica como a antiga cidade de Ai. Crédito da imagem http://www.biblearchaeology.org
Introdução
Nesta lição, estudaremos o capítulo 7 do livro de Josué. Nos cinco capítulos precedentes (1.5-5.15), analisamos a preparação e a entrada do povo em Canaã. Já, dos capítulos seis a oito (6.1-8.35 [9]), o livro ocupa-se da conquista da parte central de Canaã. O capítulo sete, portanto, trata de um grave e incômodo estorvo à conquista de Canaã. O tema principal desta seção é: O Pecado e Castigo de Acã.
Comparação entre o capítulo 7 e 8 de Josué
Os capítulos sete e oito formam uma unidade. O capítulo 8 está relacionado ao sete, não apenas pelo uso do advérbio “então” (ARC), mas pelo paralelismo de eventos e idéias que contrastam com o capítulo sete. Vejamos.
1. No capítulo 7 os israelitas fracassam em função do pecado de Acã: A cidade de Ai triunfa.
No capítulo 8 os judeus triunfam em função da eliminação do pecado: A cidade de Ai é destruída.
2. O capítulo 7 trata das causas do fracasso na conquista.
O capítulo 8 da restauração do ciclo de vitórias do povo.
3. No capítulo 7 o pecado é banido.
No capítulo 8 segue-se à confirmação do mal extirpado.
4. No capítulo 7 a comunidade sofre.
No capítulo 8 a comunidade regozija.
Notas Expositivas da Leitura Bíblica
Josué 7.1,5-7, 11,12.
1 – E prevaricaram os filhos de Israel no anátema; porque Acã, filho de Carmi, filho de Zabdi, filho de Zerá, da tribo de Judá, tomou do anátema, e a ira do Senhor se acendeu contra os filhos de Israel.
a) “Prevaricaram”. O número gramatical do verbo “prevaricar”, expressa o conceito e senso comunitário das tribos de Israel. Toda congregação tornou-se culpada pelo pecado de um só homem, Acã.
Em nossa obra, A Família no Antigo Testamento: história e sociologia, explicamos que o modelo social pelo qual as tribos de Israel viviam chama-se solidariedade mecânica, conforme proposta pelo teórico social Durkheim.
Neste tipo de solidariedade, os indivíduos possuem sua identidade e unidade tribal, mediante a família, a religião, a tradição e costumes vividos pela totalidade das tribos. Todos, igualmente, vivem os mesmos valores, seguindo a tradição ancestral da qual a coletividade procede. Uma “família-tronco” perpetua-se em torno do chefe de família pela instituição de um “herdeiro associado”.
Por conseguinte, o fato de um pecado pessoal transtornar toda uma comunidade deve-se, em grande parte, à estrutura deste tipo de sociedade. As famílias, separadas por clãs patronímicos, mas unidas pela identidade coletiva, normalmente, não agiam sozinhas, masem grupo. Aidentidade de um indivíduo confundia-se com o grupo a que pertencia.
O povo de Israel, portanto, valorizava a integração e a interdependência, entre as tribos e as pessoas, comovaloresquandoumisraelita pecava, todo o povo assumia a responsabilidade pela transgressão cometida. Por isso, todo o Israel foi castigado em conseqüência do pecado de Acã (vv. 11,12).
Israel, a totalidade do povo, era um corpo composto por vários membros (cada uma das tribos). O texto de Números 1.2, apresente adequadamente esse conceito: “Levantai o censo de toda a congregação dos filhos de Israel, segundo as suas famílias, segundo a casa de seus pais, contando todos os homens, nominalmente, cabeça por cabeça” (ARA).
Essa perícope apresenta: “congregação” (‘ēdâ) – todo o povo de Israel; “famílias” (mishpāchâ) – o clã, como principal unidade social; e “casa” (bayît) – a unidade consangüínea menor do que a tribo, onde vivem os indivíduos. [1]
Um pecado praticado por um membro da “casa” (bayît) afetava a totalidade da ‘ēdâ (congregação). Os versículos 13-19 têm como fundamento sociológico estas divisões: “santifica o povo” (v.13); “vossas tribos” (v.14); “segundo as famílias” (v.14); “chegará por casas” (v.14); “chegará homem por homem” (v.14). imprescindíveis à unidade do povo. De acordo com esses princípios, o pecado de um afeta a todos. Esse mesmo princípio afeta também a igreja. Atente, por exemplo, aos textos paulinos em 1 Co 5; 12; 14. Ou ainda Rm 5.12-21, onde encontramos as conseqüências da transgressão de Adão e os efeitos da obediência de Cristo disseminados a toda humanidade.
b) “Anátema”. O termo já foi esclarecido na lição. Trata-se do termo hebraico chērem, [2] literalmente, “maldição”. Esse vocábulo procede de chāram, cujo significado básico é “consagrado”, ou “coisa consagrada”.
De acordo com a raiz, hrm (חרם), os tradutores da Septuaginta (LXX) verteram o vocábulo para anathématos (αναθέματος), traduzido em nossas Bíblias por “anátema”. Pesquisas, não muito recentes, afirmam que o “anátema”, como o conhecemos por meio das Escrituras Hebraicas, também era difundido em Mari e nas regiões da Mesopotâmia com o nome de asakkum. Asakkun era como se denominava os bens de uma divindade, de um rei, ou de um comandante militar. [3]
Um caso significativo para entendermos o conceito de chērem, está em Números 21.2,3, quando os israelitas prometem “destruir totalmente” as cidades da região sul de Canaã [4]. Isto quer dizer que essas cidades seriam “consagradas ao Senhor para destruição”, constituindo-se, portanto, em cidades anátemas ou consagradas para a ruína.
Um dos objetivos primários para que o exército de Israel assim procedesse, encontra-se em Deuteronômio 13.12-17. Especificamente, o versículo 16 afirma: “E ajuntarás todo o seu despojo no meio da sua praça e a cidade e todo o seu despojo queimarás totalmente para o Senhor, teu Deus, e será montão perpétuo, nunca mais se edificará”.
Desejava-se com isto, evitar que o povo se corrompesse, espiritual e moralmente, com as riquezas sacrificadas aos demônios-ídolos (Dt 32.16,17; Lv 17.7; 2 Cr 11.15). Jericó estava, portanto, debaixo dessa lei. O versículo 17 confirma: “Também nada se pegará à tua mão do anátema, para que o Senhor se aparte do ardor de sua ira, e te faça misericórdia, e tenha piedade de ti, e te multiplique, como jurou a teus pais”.
Ora, a apódase [5] é condicional. Caso alguém dentre o povo desobedecesse a esta lei irrevogável e inexorável, o oposto à promessa seria o juízo sobre o povo: inclemência e crueldade no lugar da misericórdia; impiedade ou “desumanidade” no lugar de piedade; divisão e extermínio da raça em vez de multiplicação da descendência.
Foi justamente o antônimo desses léxicos beatíficos (misericórdia, piedade e multiplicação) que se deu inicio na conquista de Ai. Os versículos 11 e 12 da Leitura Bíblica confirmam essa assertiva: “Israel pecou, e até transgrediram o meu concerto que lhes tinha ordenado, e até tomaram do anátema, e também, furtaram, e também mentiram, e até debaixo da sua bagagem o puseram. Pelo que os filhos de Israel não puderam subsistir perante os seus inimigos; viraram as costas diante dos seus inimigos, porquanto estão amaldiçoados; não serei mais convosco, se não desarraigardes o anátema do meio de vós.”
Este castigo é a resposta da “ira de Deus” contra o pecado. Naquele fatídico dia, “os homens de Ai feriram deles algunsseis, e seguiram-nos desde a portaaté Sebarim, e feriram-nos na descida; e o coração do povo se derreteu e se tornou como água” (v.5 cf. v.13,15).
Somente a expiação da culpa, isto é, a eliminação do pecador, interromperia o processo iniciado em Ai (vv.24,25-8.1ss). A transgressão de Acã, segue-se imediatamente à identificação da linhagem do “perturbador” de Israel. Interessante é o fato de os ascendentes de Acã possuírem nomes nobres: Carmi, “vinha” e, Zerá, “brilho do sol”, enquanto o nome do personagem principal, Acã, quer dizer “perturbação”, “perturbador”, “turbar”. No versículo 25 a aliteração [6] entre os nomes Acã e Acor é digno de nota. Ambos procedem da mesma raiz e correspondem em significado: “provocar calamidade” ou “perturbação”.
c) “A ira do Senhor”. Esta é uma expressão antropopática [7], isto é, ao Senhor são atribuídos afetos ou sentimentos humanos.
Uma outra forma de os hagiógrafos descreverem a ira de Deus é através do antropomorfismo nariz ou narinas (Êx 15.8; Sl 18.8-16). Neste aspecto há uma estreita relação entre o termo nariz e ira. Nariz, no hebraico, ’ap, uma vez dilatado representa a ira, pois na mentalidade semítica, o furor, a ira e a cólera se expressam por respiração mais veemente, ou exalação nasal mais intensa. No versículo 26, a expressão “ardor da sua ira” é chārôn ’ap, em sentido antropomórfico, “o furor das suas narinas”. Daí os autores usarem a figura do “nariz fumegante do Senhor”, para expressar a ira divina.
A ira do Senhor designa tanto a justiça de Deus que pune os homens maus, como também ao seu descontentamento com aquilo que é malévolo ou injusto. A ira do Senhor é contra o pecado, a fim de extirpá-lo da congregação santa. Assim sendo, encerra o versículo 26: “Assim o Senhor se tornou do ardor da sua ira; pelo que se chamou o nome daquele lugar o vale de Acor”, isto é, o “vale da perturbação”. No profetismo tardio, “vale de Acor", tornar-se-ia “lugar de esperança” (Os 2.14,15).
Lições Práticas
Observe o efeito deletério do pecado e a autoconfiança desprovida da bênção de Deus. A cidade de Ai estava em menor número: “Não suba todo o povo; subam uns dois mil ou três mil homens, a ferir Ai; não fatigueis ali todo povo, porque são poucos os inimigos” (7.3). Consideravam-se vitoriosos pela pequenez do exército de Ai, entretanto, foram derrotados e humilhados.
Neste episódio, Josué ouve os espias e fracassa (7.2,3). Depois ouve a Deus e triunfa (7.7-15). Por que não fez o inverso? Por que não consultou a Deus? Deste fato podemos extrair sete preciosas lições para nossas vidas e também para nossos alunos, quais sejam:
(1) Uma poderosa vitória ontem, não garante uma pequena vitória amanhã;
(2) Apesar de os fatos estarem a nosso favor, é melhor consultar e confiar em Deus. Orar, mesmo por aquilo que parece óbvio, é uma demonstração de submissão irrestrita ao Senhor.
(3) É sempre melhor ouvir a Deus do que os homens, até mesmo quando os fatos e as coisas estão evidentes. Como afirma o Salmo 118.8: "É melhor confiar no Senhor do que confiar no homem".
(4) Depender de Deus significa dar prioridade a Deus em tudo.
(5) A santificação é indispensável à vitória. A santificação de ontem garante a vitória de hoje. Todavia, para vencermos depois de amanhã é necessário continuar o processo iniciado anteontem (7.13).
(6) Muitos cristãos fracassam mesmo quando a batalha é pequena, mesmo quando o inimigo, seja ele qual for, não se apresenta renhido, tudo isso porque prefere confiar na própria força, méritos, inteligência e justiça.
(7) O justo confia e consulta o Senhor e não se aparta Dele! Sabe que, grande ou pequeno o problema, quem o faz triunfar é Cristo.
Notas
[1] Mais detalhes a respeito da estrutura social de Israel o Antigo Testamento, consulte: A Família no Antigo Testamento: história e sociologia. 3.ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2008.
[2] Na lição está grafado hērem, mas por razões instrumentais a consoante hebraica heth ( ח ) não foi grafada conforme à norma culta. A pronúncia equivale aos dois “rr” da palavra “carro” [rrerem].
[5] Ver HESS, Richard. Josué: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 41.
[4] Cf. HARIS, R. L. (et al) Dicionário internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, 2001, p. 534.
[5] A segunda parte de um período gramatical, em relação à primeira.
[6] Repetição de fonemas no início, meio ou fim de vocábulos próximos, ou mesmo distantes (desde que simetricamente dispostos) em uma ou mais frases. Ver Hermenêutica Fácil e Descomplicada. 8.ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2008.
[7] Ver Hermenêutica Fácil e Descomplicada. 8.ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2008, p.237-42.
O artista francês Horace de Vernet (1789-1863) na excelente iconografia Judá e Tamar descreveu o fatídico encontro entre o patriarca Judá e sua nora Tamar. Com riquezas de detalhes, Vernet descreve Tamar com as vestes típicas das prostitutas sagradas. Sentada em uma pedra à margem do caminho, com o rosto coberto, e uma das pernas e seios expostos, Tamar sustenta com uma das mãos o véu sobre o rosto, enquanto estende a outra para receber os bens pessoais que garantiriam o pagamento do comércio sexual que se estabelecia. Seu vestido alvo com um lenço azul a enfeitar-lhe os quadris comunicam candura, pureza e a ingenuidade que se contrasta com a sagacidade da amante. Judá, com garbosas vestes, apóia uma das pernas na rocha em que Tamar se assenta. Consta em suas mãos, a entregar à suposta prostituta, o sinete, o cordão e o cajado — símbolos de seu status quo. A expressão facial de Judá denuncia a luxúria e a desconfiança da sagacidade da mulher. A luminosidade da obra aponta para uma estrada cândida que segue em direção ao objetivo do viajante, enquanto uma penumbra cerca os dois amásios tendo ao fundo o camelo do patriarca e o horizonte iluminado. A pouca luz que circunda os amásios são mais do que um detalhe acidental para destacar a peça: descreve a psicologia individual dos envolvidos, que inconscientemente incorporam e consideram como seus as características e valores do outro. As armas de Tamar são a sua sexualidade, feminilidade e capacidade de seduzir, enquanto a astúcia da mesma é demonstrada no papel que representa e no senso de oportunidade: Judá, o viúvo, retira-se para tosquiar as suas ovelhas — ocasião festiva para o criador (1 Sm 25.4,11,36). Viúvo, longe de casa e alegre, tornou-se uma vitima dócil à sedutora.
A Prostituição no Antigo Testamento
Esta cena serve-nos de esteio para descrevermos, a passos estugos, o tema da prostituição no Antigo Testamento. Entre os vários termos hebraicos nas Escrituras que descrevem a prostituição encontramos os vocábulos zānã, lit. “praticar prostituição”, “cometer prostituição”, “prostituta” ou “rameira”, e qādēsh, isto é, “prostituta(o) cultual” ou “hieródulo”. O substantivo qādēsh, segundo o Dicionário Vine (DV), aparece cerca de onze vezes nas Escrituras.
A palavra zānã traz o sentido básico de “relação heterossexual ilícita”, e emprega-se freqüentemente para se referir a uma prostituta. Muito embora Êxodo 34.16 e Números 25.1 usem o termo no gênero masculino — no primeiro, o uso é figurado, enquanto no segundo é coletivo —, o emprego freqüentemente aludi a uma mulher cujo ofício ou ocupação é a prostituição.
Em Deuteronômio 23.18, a prostituição masculina ou o prostituto é chamado de “cão” (ARC) e “sodomita” (ARA). Os dois termos são a tradução do vocábulo keleb, e se referem ao prostituto cultual, designado ipsis litteris por “cão” ou “cachorro”, mas em sentido metafórico por “prostituto”, “impuro”. Em Gênesis 34.31, Tamar é comparada a uma prostituta ou zānã, mas também é chamada de qādēsh, isto é, “prostituta cultual” (ARA) em 38.21,22.
Aspectos Gerais da Prostituição no Antigo Testamento
1. O comércio sexual entre uma prostituta e seu cliente envolvia um valor pecuniário estabelecido entre a mulher e o seu amante (Gn 31.16). O salário de uma prostituta, do hebraico ’etnam, lit. “paga de prostituta”, e do keleb eram abomináveis para Yahweh e, portanto, proibido o recebimento do mesmo na Casa do Senhor (Dt 23.18).
2. A prostituição secular e sagrada em Israel era proibida: “Não haverá rameira dentre as filhas de Israel; nem haverá sodomita dentre os filhos de Israel” (Dt 23.17). O termo traduzido por “rameira” é qādēsh e, como acima foi dito, refere-se à prostituição sagrada. Esta segunda forma de prostituição era muito praticada entre os canaanitas e abominada tanto na esfera religiosa quanto na moral pelos israelitas. Textos proféticos como Jeremias 2, Ezequiel 23 e Oséias 1—3; 14.14 e os historiográficos como Números 25.1s; 1 Reis 14.24; 15.12; 22.47 e 2 Reis 23.7 não apenas condenam essas praticas sexuais ilícitas e repugnantes quanto demonstram a inclinação dos judeus a elas.
3. Os sacerdotes eram proibidos de se casarem com mulheres viúvas, repudiadas e prostitutas: “Não tomarão mulher prostituta ou infame, nem tomarão mulher repudiada de seu marido, pois o sacerdote santo é a seu Deus” ( Lv 21.7 cf. v. 14).
4. Os serviços sexuais das prostitutas seculares eram procurados freqüentemente pelos seus amantes (Jz 16.1).
5. As prostitutas costumavam se expor em lugares públicos (Gn 38.14), trajavam-se e adornavam-se de modo que fossem reconhecidas (Gn 38.14; Pv 7.10) e, segundo o Gênesis 38.15, cobriam os rostos com um véu.
6. As prostitutas seculares, ao que parece, de acordo com 1 Reis 3.16-28, tinham por hábito morarem juntas, talvez não mais do que duas pessoas em uma casa (v. 17), mas são tantas as variáveis que isso não é conclusivo. Não eram casadas, talvez viúvas, repudiadas ou escravas estrangeiras manumissas. Segundo Provérbios 2.17, é possível relacionar a prostituição às mulheres divorciadas ou viúvas que, para se auto-sustentarem, comercializavam o corpo. Pode ser que se trate também de uma mulher que abandonou o seu marido e se ocupa do comércio sexual. Se uma das duas prostitutas anônimas do texto era divorciada ou viúva, talvez se explique a razão pela qual uma delas ou as duas possuem uma residência. A prostituta mencionada em Provérbios 2.16-19 possui uma casa, mas esta, segundo o sábio hebreu, “se inclina para a morte” (v. 18), pois o favor do Senhor não está mais sobre ela (v. 17).
7. Possuíam seus bens particulares, talvez como resultado de seu ofício. Raabe, por exemplo, é uma meretriz estrangeira que possui uma casa junto ao muro da cidade (Js 2.15), não tem esposo e demonstra ser protetora de toda a sua família (v. 13). Ela é arguta, inteligente e reconhece a soberania divina (vv. 10-12).
8. Embora as prostitutas sejam socialmente inferiores em comparação às outras mulheres de Israel, eram suportadas e admitidas na sociedade hebraica a ponto de duas delas requisitarem uma audiência com o rei Salomão (1 Rs 3.16-28).
9. Há uma intrigante conexão entre os atos de Tamar, as duas prostitutas anônimas de 1 Reis e Raabe. As três possuem um forte senso de preservação de suas famílias, pois colocam a integridade de sua parentela acima da segurança pessoal. Tamar corre o risco de ser queimada; as duas prostitutas anônimas, de serem punidas pelo rei; e Raabe, de ser castigada ou morta por trair o seu povo.
10. Os sábios hebreus afirmavam que a prostituta tem um astuto coração (Pv 7.10), que ela seduz os seus clientes pelo seu falar suave (Pv 2.16). Ela abandona o seu marido e se esquece da aliança com Deus (Pv 2.17). É contenciosa (Pv 7.11) e anda de lugar a lugar procurando clientes (Pv 7.12). É uma cova profunda (Pv 23.27) e por causa dela alguns homens empobrecem (Pv 5.9,10). Ela é caçadora feroz (Pv 7.12), impudente e atrevida (Pv 7.13), etc.
A Prostituição Sagrada na Mesopotâmia
Como já definimos, a prostituição feminina no mundo bíblico distinguia-se em profana ou secular e sagrada ou cultual. A prostituta sagrada era chamada de qādēsh pelos judeus e hieródula pelos gregos. O termo grego provavelmente esteja relacionado ao lexema hieros, que se traduz por “separado para a deidade”, “sagrado”, procedente da mesma raiz que origina o termo hiereus, isto é, “sacerdote”. O nominativo feminino doulē, que se traduz por “escrava”, forma a parte final do vocábulo hieródula. A hieródula ou qādēsh, portanto, pode ser considerada uma mulher que servia sexualmente aos adoradores de uma determinada divindade. Por estar inteiramente relacionada ao serviço religioso ou templário, era considerada uma prostituta sagrada ou a meretriz separada para o serviço sexual no templo.
As meretrizes sagradas eram sacerdotisas que estavam relacionadas aos cultos da fertilidade e aos deuses e deusas pagãs da procriação, do amor e da fertilidade. Vários achados arqueológicos comprovam a existência de inúmeras divindades femininas que eram adoradas nas festas da fertilidade. Entre tantas se encontra Inana-Ištar, deusa do amor e do comportamento sexual de cujos rituais de adoração constavam o transexualismo, o travestismo e o homossexualismo de ambos os sexos. Em um bloco de pedra do período sumério, Inana-Ištar é representada junto a genitais masculinos. Tabuinhas de barro com inscrições cuneiformes, conhecidas como os Cilindros de Gudea, descrevem histórias mitológicas da deusa, denominando-a como “Rainha do Céu e da Terra”, “Estrela da Manhã”. Um dos poemas dedicados à deusa entoa:
Nobre Rainha, quando entras na estrebaria Inana, a estrebaria rejubila contigo Hieródula, quando entras no aprisco A estrebaria rejubila-se contigo.[1]
Continua...
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Para saber mais:
BENTHO, Esdras C. A família no Antigo Testamento: história e sociologia. 3.ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2008.
Notas
[1] Kramer, Sacred Marriage Rite, p. 101, apud QUALLS-CORBERTT, Nancy. A Prostituta Sagrada: A Face Eterna do Feminino. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, Coleção Amor e Psique, p. 40.
Exórdio No capítulo 3 da Epístola aos Gálatas, Paulo prossegue com os argumentos favoráveis ao genuíno (1) evangelho de Cristo, e ao seu apostolado. Todavia, nos capítulos 1 e 2, os defendera com argumentos históricos e autobiográficos, agora com argumentos doutrinários e teológicos. Nos capítulos antecedentes, o testemunho e a experiência de Paulo no evangelho provam à origem divina e a veracidade de sua pregação e apostolado. Neste capítulo, Paulo desdobrará a proposição dos versículos 18-21 do capítulo 2, a fim de provar teologicamente a veracidade e autenticidade do evangelho e da fé salvífica em Cristo.
Tema
A defesa essencial da doutrina paulina neste capítulo é:a fé em Cristo constitui a única via histórica capaz de conduzir o homem à salvação (vv.6-29).Nestas perícopes Paulo prova a doutrina da justificação pela fé com base nos seguintes argumentos:
a) No exemplo da justificação de Abraão (vv.6-14);
b) Na natureza e características da Lei (vv. 15-22);
c) No testemunho do próprio Antigo Testamento (vv.23-25);
d) Na estabilidade do pacto abraâmico (vv.26-29).
Fontes da Argumentação
Na Argumentação Teológica desta seção, Paulo recorre à autoridade histórica e doutrinária das Escrituras Sagradas do Antigo Testamento. Sua apologia demonstra que alguns desses textos estavam no ardor da exegese e polemia entre os gálatas, são eles: v. 6 – Gn 15.6; vv. 7,8, 16 – Gn 12.2,3,7; v.10 – Dt 27.26 (cf. os vv.12,13,16; 4.22,23,27,30). Enquanto os gálatas interpretavam a Cristo a partir do Antigo Testamento; Paulo interpretava o Antigo Testamento a partir de Cristo (interpretação cristológica – cf. Lc 24.44-46).
Estrutura
1. Primeira Prova:A experiência pentecostal dos gálatas (vv.1-5);
2. Segunda Prova:A experiência fidedigna de Abrão (vv.6-14);
3. Terceira Prova:A irrevogabilidade pactual da Lei (vv.15-22);
4. Quarta Prova:O caráter didático e condutor da Lei (vv.23-29).
Conteúdo Doutrinário
Na exposição do capítulo, Paulo destaca sete doutrinas basilares da fé cristã, a saber: 1) A justificação pela fé (vv.3,6,8,11,21,24); 2) A bênção divina pela fé (vv.8,9,14); 3) A irrevogável e gratuita herança do crente (vv.18,29); 4) A filiação divina (v.26,27); 5) O dom do Espírito (vv.2,3,5,14); 6) A vida pela fé (vv.11,12,21); 7) A queda da barreira étnica, social, histórica e religiosa em Cristo (v.28).
Exposição
Paulo inicia o primeiro argumento com uma expressão grave: “Ó insensatos gálatas! Quem vos fascinou para não obedecerdes à verdade” (v.1). Esta invectiva interjetiva, mais do que uma expressão retórica, demonstra o quanto Paulo estava admirado de os crentes gálatas terem passado do “evangelho da graça” para um “evangelho de natureza diferente” (1.6). O termo “insensato” (2) literalmente quer dizer “descabeçados”, “desajuizado”. Em sua verve, o apóstolo emprega um termo raro nas páginas do Novo Testamento, “fascinou” (3), isto é, “enfeitiçou” (NVI). Embora “Jesus Cristo crucificado” fosse apresentado poderosamente aos gálatas (v.5), eles estavam sendo dissuadidos tanto da verdade cognitiva do evangelho como da experiência pneumatológica do Espírito (vv.3-5).
Nos versículos 6-29, Paulo apresenta aos crentes gálatas os fundamentos doutrinários de seu argumento principal: a fé em Cristo constitui a única via histórica capaz de conduzir o homem à salvação (vv.6-14). Na seção dos vv.15-22, Paulo responde a verdadeira função da Lei:
a) A Lei foi acrescentada à promessa por causa da transgressão (v.19);
b) A Lei foi dada aos homens para convencê-los da necessidade de um Salvador (vv.19,20);
c) A Lei foi planejada como aio para levar o homem a Cristo (v.24).
1. Contrário ao “outro evangelho” ( heteron euaggelion). Paulo chama também de “evangelho segundo os homens” (euaggelion kata anthropon) – Gl 1.11. 2.No grego, anoētoi é vocativo plural do adjetivo anoētos, isto é, “tolo”. 3. No grego ebaskanen está no 1º.aoristo indicativo ativo de baskaíno.
Exórdio O capítulo 1 está dividido em dois parágrafos principais (vv.1-11; 12-18). Os versículos 10 e 11, que formam um novo parágrafo na ARC, são apenas um intermezzo que introduz o parágrafo segundo. Tratam da ordem de Josué aos príncipes do povo para prepararem o acampamento para atravessar o Jordão. A primeira seção trata da vocação de Josué (vv.1-11), enquanto a segunda, dos preparativos para atravessar o Jordão (vv.12-18).
Comentário
O texto hebraico principia com um advérbio de tempo 'achar, isto é, "posteriormente", "depois". A narração situa a morte de Moisés (Dt 34) à vocação de Josué (Js 1): "depois da morte de Moisés [...] que o Senhor falou a Josué". Esta descrição põe em relevo os dois líderes e protagonistas da história judaica pré-Canaã: Moisés, líder do povo e personagem principal dos livros de Êxodo a Deuteronômio; e, Josué, primeiro líder do povo judaico após a morte do eminente Moisés.
Embora Moisés seja considerado pela tradição judaico-cristã, profeta e líder de Israel, é chamado por Deus tão somente de 'ebed, "escravo" ou "servo": "Moisés, meu 'ebed, é morto" (v.2). Todavia, esse era o título daqueles que alcançaram diante de Deus aprovação pela sua obediência e fidelidade irrestrita ao Senhor. Para a congregação de Israel, o 'ebed Yahweh era o representante teocrático entre eles. Suas palavras são as palavras de Yahweh; Seu governo é o governo de Yahweh.
O preâmbulo evidencia duas particularidades de Josué:
a) Josué servo ou discípulo de Moisés (v.1). Antes servira a Moisés com fidelidade (Êx 24.13; 33.11), agora é o momento de ser elevado à categoria de 'ebed Yahweh. Josué não será mais conhecido como mešārēt Mōsheh, isto é, o “servidor de Moisés”, mas 'ebed Yahweh. Há uma estreita relação entre os termos 'ebed e mešārēt, mas nestes versículos são usados para distinguir o relacionamento de Josué com Moisés e de Moisés com o Senhor Deus.
O susbtantivo 'ebed sobrepõe-se ao termo mešārēt não tanto pelo seu valor semântico, mas pelo sentido lírico que o literato dá ao vocábulo. O relacionamento de Josué para com Moisés não é semelhante ao relacionamento de Moisés com Deus. Somente depois de tornar-se 'ebed Yahweh é que Josué estaria apto para atravessar o rio Jordão com todo o povo de Israel. Primeiro, a comissão, depois a missão. Infelizmente, alguns querem executar a missão sem primeiro serem comissionado por Deus.
b) Josué é o novo profeta de Israel – o Senhor fala a Josué, assim como falava com Moisés. Na condição de "servo de Deus", no lugar de Moisés, Josué também assume a responsabilidade de ouvir a vontade de Deus e transmiti-la ao povo de Israel, na qualidade de servo e na condição de profeta de Deus. Assim, Josué à semelhança de Moisés, recebe do Senhor graça e misericórdia para estar diante do Eterno. Esta nova posição não era apenas natural diante de todo o povo, mas também espiritual, diante do próprio Deus. Se esta é a condição do ‘ebed, imagine a grandeza daqueles que em vez de δούλος (doulos), servos, escravos, são chamados de φίλους (philos), amigos íntimos (Jo 15.15). Josué foi alçado ao nível da intimidade.
Nesta vocação Deus anima a Josué para a árdua tarefa de conduzir o povo à conquista de Canaã, “dispõe-te”, do hebraico qûm, literalmente quer dizer “ergue-te”, “fique em pé”. Embora não esteja explícita a forma como Deus falou com Josué, sabemos que, no mínimo, foi através de uma teofania audível. O imperativo "levanta-te", neste episódio, talvez seja uma sinédoque. É possível que Josué estivesse ouvindo ao Senhor de forma reverente, com o corpo inclinado, como era costume, mas isso não se pode afirmar categoricamente, pois o oposto também é verossímil em outras partes do próprio livro. Todavia, o imperativo categórico pode ser entendido tanto como uma ordem expressa para "levantar" o acampamento rumo à Canaã, como também referir-se à postura física de Josué. Prefiro entender uma relação estreita entre essas duas possibilidades, como um oráculo por ação: levantando-se Josué, o povo "levanta" o acampamento e segue sua marcha triunfante, como ocorre em 3.1: "Levantou-se, pois, Josué de madrugada, e partiram de Sitim". O versículo 2 parece corroborar com nossa interpretação: "passa este Jordão, tu e todo este povo". Talvez Josué estava prostrado no momento em que o Senhor falava com ele. O mesmo vocábulo é usado na forma imperativa em 3.6 “levantai a arca”. Josué recebeu sua vocação e missão no instante em que estava prostrado diante do Senhor. Prostrado diante do Senhor é a melhor posição para marchar e seguir em frente.
É nesta simples, mas significativa posição, que o Senhor faz promessas ao seu ‘ebed: “Todo lugar que pisar a plante do vosso pé, vo-lo tenho dado” (v;4). Expliquei com minúcias o hebraísmo “pé” em nossas duas obras, Hermenêutica e a Família no Antigo Testamento. Aqui, o sentido do hebraísmo, como ocorre em muitas outras passagens, é de posse, de vitória.
Por esta razão: “Ninguém te poderá resistir” (v.5). No original, “resistir” é yātsab, ou seja, “posicionar-se contra”; “ficar oposto a”, por extensão, “opor-se”, “oprimir”. Em Números 22.22, o termo é usado para descrever o Anjo do Senhor que se “pôs no caminho contra Balaão”, ou como em 1 Samuel 17.16, a atitude soberba e presunçosa de Golias que se colocava contra o exército de Israel. Nenhum inimigo canaanita permaneceria diante de Josué e seu exército.
Aos ouvidos do grande líder, a promessa divina soava como uma sinfonia beethoviana: “Não te deixarei”. Do hebraico rāpâ, o verbo “deixar” é ipsis verbis “afundar”, “deixar cair”, “desanimar”. Enquanto Josué se erguia, o Eterno lhe falava: “Não te deixarei afundar, desanimar, cair”. A Septuaginta (LXX) traduziu a expressão por “Eu não te deixarei em apuros”. “Nem te desampararei”, do hebraico ‘āzab, “desamparar” é “abandonar”, “deixar desolado”.
O verbo hebraico no grau ativo atesta a segurança com a qual o Senhor falava e Josué ouvia. Deus jamais o abandonaria; Josué jamais estaria desolado. Apesar da incompreensão do povo, o Senhor estaria com ele em todas as horas e momentos. Mas a promessa de Deus ao líder também exige força, determinação e vontade: “Sê forte” (v.6). No hebraico, chāzāq além do sentido de “forte” quer dizer “esforçar-se”, como em 23.6, mas também “endurecido”, “severo”. Provavelmente a referência é a “ser forte em combate”, “demonstrar coragem”, enquanto o coração de outros se derretem, portanto, “Sê forte e inflexível”.
“Sê...corajoso”, oriundo da raiz ‘āmēts, quer dizer “ser valente”, “ser duro”, “ser alerta”. A LXX traduz por “Comporta-te como homem”. O termo hebraico 'āmēts, ocorre 117 vezes em todo o Antigo Testamento, sendo repetido 4 vezes por Deus no livro de Josué, referindo-se ao próprio protagonista da história da conquista. Moisés emprega a palavra duas vezes ao seu ajudante (Dt 31.7,23). O termo descreve o quanto a tarefa de conduzir o povo à conquista iria exigir do caráter e das aptidões de guerra do novo líder (v.6). Uma das formas hebraicas deste verbo significa “mostrar força”, “mostrar-se superior a”. Josué precisava, como servo do Altíssimo, inspirar os seus soldados através de seu exemplo de coragem, audácia, individualidade e vitória. A vitória estava garantida, mas era necessário entrar nas chamas da batalha!
"Assim como fui com Moisés, assim serei contigo; não te deixarei, nem te desampararei"; "Sê forte e mui corajoso..." (v.7). Todavia, a perícope não salienta a coragem para a guerra somente, mas "Sê forte e mui corajoso para teres o cuidado de fazer segundo toda a lei que meu servo Moisés de ordenou; dela não te desvies, nem para a direita nem para a esquerda, para que sejas bem-sucedido por onde quer que andares" (v.7). Perceba, ser valoroso não para a contenda, discórdia, guerra contra a "carne e sangue", mas para cumprir os mandamentos divinos!
Uma liderança eficaz precisa estar disposta a cumprir os mandamentos divinos. O compromisso do líder Josué, primeiramente, é com Deus e com a Torah. Ele precisa cumprir, como servo obediente, os mandamentos divinos: “para que sejas bem-sucedido”.
Vejamos se consigo descrever adequadamente o sentido do termo hebraico śākal, traduzido por “bem-sucedido”. Embora seja uma boa tradução do termo hebraico, há um jogo semântico neste vocábulo. Ele tanto pode significar “para que sejas sábio”, como também “para que sejas próspero”, ou ainda “para que ajas sabiamente”. Cabe ao tradutor escolher qual dessas traduções relaciona-se melhor ao contexto literário. A ARC traduz por “para que prudentemente te conduzas”, tradução seguida com ligeira modificação pela Bíblia Hebraica. O sentido mais estrito de śākal é “agir com a inteligência e sabedoria”. Louis Goldberg, no Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento (p.1478), afirma que este “vocábulo designa o processo de pensar como uma disposição complexa de pensamentos que resultam numa abordagem sábia e bastante prática do bom senso. Outra conseqüência é a ênfase no ser bem-sucedido”.
Preparativos para atravessar o Jordão (vv.12-18)
Os preparativos para atravessar o Jordão, embora estejam mais explícitos na segunda seção, fora antecipado na comissão e missão de Josué nos versículos anteriores. Especificamente o versículo 2 ordena: "passa este Jordão, tu e todo este povo". "Passar o Jordão" na época das enchentes era um desafio, uma preocupação. O povo de Israel, acampados próximos ao Jordão, provavelmente aguardava cessar o período das cheias do rio para seguir à marcha. Os povos do outro lado do Jordão estavam despreocupados com esses beduínos, jamais imaginariam que uma trupe de fugitivos, mulheres e crianças, se aventurariam atravessar o rio Jordão nesse tempo.
Os preparativos à travessia do Jordão iniciam com duas ordens diretas de Josué: uma aos príncipes para que ordenem ao povo a tomarem todas as providências necessárias para a travessia do Jordão; e outra aos rubenitas, gaditas e a meia tribo de Manassés, a fim de que auxiliem as outras tribos na conquista dos territórios a elas prometidas. Essas tribos, que ficavam ao leste do Jordão garantiriam aos seus irmãos, por meio de seus guerreiros, a conquista de outros territórios.
Recomendações finais
Estimado professor, leia o primeiro capítulo do livro de Josué até que tenha plena compreensão do seu conteúdo. Perceba as notas geográficas (vv. 2, 4, 11, 14,15), patronímicas (v.12), exortativas (vv.5-9,18), e temporais (v.11). Observe a tensão entre passado (vv. 1,2,5,13-15), presente (v.16), e futuro (vv.17,18). Veja que no primeiro parágrafo (vv.1-9), Deus fala com Josué, mas no segundo (vv.10-18), Josué fala com o povo. Note o pronome na primeira pessoa "teu Deus" (vv. 9,17), em contraste com o possessivo na segunda pessoa "vosso Deus" (vv.10,13,15). Verifique o emprego do nome divino Yahweh nos vv.1,13,15, e depois o mesmo nome composto, Yahweh 'Ĕlōheka, nos vv.9,17 (Dt 16.1). Não se esqueça do contexto histórico e literário descritos nos livros de Nm e Dt e, de fazer uma aplicação devocional deste precioso capítulo. Deus o abençoe.