Gaudium
et spes é considerada pelos intérpretes o documento mais
importante do Concílio Vaticano II. E.
Borgman, por exemplo, o chama “de um documento revolucionário”[1]. G.
Alberigo acentua que após o período-conciliar não houve nenhuma controvérsia
eclesial que não estivesse ligada às afirmações da GS”[2].
Todavia, J. Comblin lê a constituição pastoral
mais em seu âmbito sociológico do que teológico-pastoral, apesar de reconhecer
este último. Afirma que o documento corresponde ao “olhar dos líderes do
episcopado ‘progressista’ da Europa ocidental”, e que o “sinal dos tempos” refere-se
exatamente à perda de poder das Igrejas pela sua inadaptação à modernidade”
[3]. Outra crítica pertinente, mas ignorada por esses e
outros literatos, foi descrita por Clodovis Boff: o dualismo discursivo –
caracterizado por uma pluralidade de gêneros que impedem um discurso homogênio. Para Boff essa diversidade discursiva da GS não satisfaz em termos teológicos
(eclesiologia) e sociológico (análise do mundo), configurando assim, em um
“discurso misto, médio e até medíocre sobre a ‘igreja’ (teologia) no mundo de
hoje (sociologia)” [4].
A querela em torno da hermenêutica
da GS reflete o debate em torno da recepção do corpus conciliar. P. Hünermann demonstrou que não
há consenso unívoco acerca da interpretação dos textos do concílio. Em síntese,
afirma que alguns os interpretam como documentos de “compromisso”, outros como
eivados de ambiguidades, e ainda aqueles que unem as duas concepções e
acrescentam o conceito de pluralismo contraditório [5].
Especificamente, a GS
insere-se ainda mais no contexto das controvérsias em torno da elaboração e
recepção dos textos conciliares. Não somos escusados frisar que na 9ª. sessão
solene do dia 7 de dezembro de 1965 fora encerrado os trabalhos do Concílio,
aprovando-se a GS com 2309 placet; 75 non placet; 10 nulos [6],
entretanto, a elaboração do texto iniciara em 1963, sendo
retomado no segundo semestre de 1964 e concluído cerca de um ano depois [7]. A GS sofreu várias emendas e redações, críticas dos
biblistas quanto à definição da expressão “sinais dos tempos” (ST) – que de
início foi rejeitada e mais tarde reassumida na GS (4,1), com o acréscimo de “interpretá-los
à luz do Evangelho”.
Apesar de tantos pareceres concernentes à GS, a presente análise debruça
sobre a hermenêutica dos ST a partir do próprio documento, que se define como
teológico e pastoral. Para lograr-se o êxito necessário, será feito uma breve
incursão em alguns textos eclesiásticos que lançam luz à expressão, e, a
seguir, veremos o significado conforme a estrutura da GS.
Antecedentes da expressão "sinais dos tempos"
Originalmente, a expressão “sinal dos tempos”, extraída de Mt 16, 3, fora
empregada por Jesus para referir-se ao contexto escatológico e messiânico do
Reino de Deus já inaugurado por ele. Esse conceito recebeu diversas
interpretações durante o seu longo percurso exegético na história da Igreja.
Contudo, o significado moderno mais premente deve-se ao papa João XXIII que, no
Natal de 1961, convoca assim o Concílio Vaticano II:
Fazendo
nossa recomendação de Jesus de saber distinguir os Sinais dos Tempos (Mt 16,4),
cremos descobrir, no meio de tantas trevas, numerosos índices que nos infundem
esperança sobre os destinos da Igreja e da humanidade [8].
Todavia, os mesmos problemas de nosso tempo chamados pelo papa de ST, já
eram conhecidos dele por outras expressões: em 1959 ao abrir a “era conciliar”
assinala a necessidade de se adaptar a Igreja à nova época; em 1960
dirigindo-se à comissão preparatória, fala em “vida cívica, econômica e
social”; no discurso de 11 de outubro de 1962 (Encíclica Mater et Magistra) trata dos “desvios, às exigências e às
oportunidades da idade moderna”, ou faz forte invictiva contra aqueles que “não
enxergam nestes tempos modernos senão prevaricações e ruínas” [9]. Portanto, o conceito e a interpretação que o Doutor dos
ST[10] emprega à controversa expressão já se encontravam muito
bem assentados, aguardando apenas uma máxima que pudesse incorporar as
variegadas sentenças anteriores.
O significado de "sinais dos tempos" na GS
A GS, em termos gerais, é constituída de duas partes. A primeira, A Igreja e a vocação do homem, é a seção
mais teológica (11-45). Trata da antropologia cristã e de sua relação dialógica
com diversas áreas da vida humana, com uma interface cristológica e
escatológica (12-39). A segunda, Alguns
problemas mais urgentes (46-93), aborda assuntos ligados a pastoral:
matrimônio, cultura, economia, política, guerra e paz.
No Proêmio (1-3) são afirmadas as concepções em torno dos ST. O
reconhecimento das alegrias, esperanças,
tristezas e angústias dos homens de hoje são, por si mesmas, uma interpretação
dos ST mediante os quais a Igreja precisa discernir. Esse discernimento provoca
a ação da Igreja, que se identifica com aqueles que sofrem.
Na
Introdução (4-10), reforça-se o caráter discernente da Igreja em relação aos
ST: “é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e
interpretá-los à luz do Evangelho”. Os ST são apresentados como “mundo em que
vivemos”, “nova fase da história”, “transformações rápidas e profundas”,
“transformação social e cultural”, “incertezas”, “agudos conflitos políticos,
sociais, econômicos, «raciais» e ideológicos”, “evolução e domínio da técnica e da ciência”,
“mudanças na ordem social”, “transformações psicológicas, morais e religiosas”,
entre outras expressões que marcam a modernidade cambaleante. Neste aspecto,
como obsevou Clodovis Boff, os ST é “a análise da atualidade histórica, uma
interpretação do tempo presente” [11], como atesta 11,1:
“... o Povo de Deus esforça-se por discernir nos
acontecimentos, nas exigências e aspirações, em que participa juntamente com os
homens de hoje, quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de
Deus”.
Estrutura
1. Proêmio (1-3)
2. Introdução: A condição do Homem no mundo atual (4-10)
3. Primeira parte: A Igreja e a vocação do Homem (11-45)
1. A dignidade da pessoa humana (12-22)
2. A comunidade humana (23-32)
3. A atividade humana no mundo (33-39)
4. A função da Igreja no mundo atual (40-45)
4. Segunda parte: Alguns problemas mais urgentes (46-93)
1. A promoção da dignidade do matrimônio e da família (47-52)
2. A conveniente promoção do progresso cultural (53-62)
1. Condições da cultura do mundo atual (54-56)
2. Alguns princípios para a conveniente promoção da cultura (57-59)
3. Alguns deveres mais urgentes dos cristãos com relação à cultura (60-62)
3. A vida econômico e social (63-72)
1. O desenvolvimento econômico (64-66)
2. Alguns princípios orientadores de toda a vida econômico e social (67-72)
4. A vida da comunidade política (73-76)
5. A promoção da Paz e a Comunidade Internacional (77-93)
1. Evitar a guerra (79-82)
2. Construção da Comunidade Internacional (83-93)
Notas
[1] Erik Borgman. Gaudium et
spes: o futuro esquecido de um
documento revolucionário, in Melloni,
A.; Théobald, C. (orgs.) Vaticano
II: um futuro esquecido? concilium – Revista Internacional de
Teologia. No 312 – 2005/4. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005,
p. 75-84.
[2] Giuseppe Alberigo. Breve
história do Concícilo Vaticano II (1959-1965). São Paulo: Editora
Santuário, 2006, p. 179.
[3] José Comblin. Os sinais dos
tempos, in Melloni, A.; Théobald, C. Op.cit., p. 104.
[4] Clodovis Boff. Sinais dos
tempos: princípios de leitura. São
Paulo: Edições Loyola, 1979, p. 100.
[5] Peter Hünermann. O “texto” esquecido para a hermenêutica do
concílio Vaticano II,
in Melloni, A.; Théobald, C. Op.cit., p. 151-171.
[6] Giuseppe Alberigo. Op.cit., p.172. Placet, designa o voto positivo; nom placet, o negativo. Havia uma
terceira alternativa: placet iuxta modum,
aprovação condicional. Ver Alberigo, p.
42.
[7] Giuseppe Alberigo. Op.cit., p.81-147. Embora pareça longa, nas p.
81-147 o autor resume a crise de crescimento de 1963 e as dicussões em torno da
“semana negra”, 1964, que refletia a quantidade excessiva de documentos a serem
examinados quanto as disparidades dos assuntos. Nesse longo itinerário nasce a
GS e os debates em torno de seu conteúdo.
[9] Giuseppe Alberigo. Op.cit., p.50; Clodovis Boff, Op.
cit. p. 44-46. Há
muitas outras expressões em diversos discursos que apresentam frases semelhantes.
Para fins de análise, julgamos essas suficientes.
Um comentário:
Foi bom encontrar o seu blo,e poder ver e ler o que está a escrever pois tenho encontrado bons textos, que edificam e ajudam a cada um.
Continue nesta força e na firmeza da Santa Palavra, pois é essa nos trás conforto e segurança.
Sou António Batalha, do Peregrino E Servo.
Deixo-lhe a minha bênção, e que a paz de Jesus encha sempre
seu coração.
Abraço.
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