(imagem extraída da internet) |
O espelho instrumento místico ou des-velador do Ser
O espelho é um dos mais antigos símbolos religiosos. De
simbolismo elástico na religiosidade popular e contos de fada, seu caráter
misterioso e mítico é conhecido desde a Antiguidade. Na Ásia Menor antiga, a
deusa Hebat, “a rainha dos céus” era representada tendo nas mãos um espelho
como atributo [1]. O espelho ainda aparece aliado à figura do deus menino Dionísio
Zagreu. Este recebera dos titãs um espelho entre outros brinquedos [2]. Daí
resulta que nos mistérios dionisíacos dava-se aos iniciados um espelho que os
acompanhava ao túmulo, esperava-se assim, reconhecer a alma, separada do corpo,
na imagem refletida do espelho e subindo para a imortalidade [3]. Uma vez que no
Egito o disco do sol servia como modelo para a lâmina de bronze que se
utilizava para o fabrico de espelhos, não demorou muito para que os antigos
aliassem o significado solar de verdade que traz tudo a lume ao espelho. O
espelho assim manifesta a verdade [4].
Na Idade Média, o espírito é o speculum (espelho) da
natureza e de Deus [5]. Tornar-se-á postiço acrescentar mais detalhes ao caráter
místico do espelho. Todavia, a visão machadiana em “O Espelho” revela o
conflito entre a “alma externa”, que se liga à identidade social, e a “alma
interior”, a realidade mesma da pessoa. De outro modo, Jacques Lacan, em “O
Estádio do Espelho” acentuará para a criança a importância do outro para a
constituição do “eu”, e de sua identidade [6]. Assim se configura as diversas
hermenêuticas para um objeto misterioso e comum, o espelho.
Em Uma Aprendizagem, o espelho é o que causa espanto e
identifica o sujeito. As relações são ambivalentes. Ao se vestir, Lóri se olha
ao espelho e identifica-se a si mesma: corpo fino e forte; bonita pelo fato de
ser mulher [7]. A narrativa apresenta Lóri diante do espelho, mas não
descreve sua retirada de diante do objeto. O tempo que transcorre não é captado
pela narrativa, apenas os atos que aparentemente desenvolvem-se ante o espelho.
Ela se maquila, se perfuma e perante o espelho, tem “um conhecimento mínimo de
si própria”, pois “enfeitar-se era um ritual que a tornava grave” e perfumar-se “era um ato secreto e quase religioso” [8].
Mais uma vez o tempo decorre, mas não fica claro se a
personagem saiu de fronte ao espelho. Pronta e vestida, “o mais bonita quanto
poderia chegar a sê-lo”, entra mais uma vez em solilóquio. Os termos parecem
descrever um ritual, cujo Eros embala o monólogo: virgem, adivinho, sábio,
desejo, amor, perfeição, verdade, mulher, sentido secreto. Elementos mais
dionisíacos do que apolínios.
Diante do espelho(?) ainda se interroga “quem sou eu?”,
“quem é Ulisses?”, “quem são as pessoas?” Considera em sua introspecção que
Ulisses tem a resposta para tudo [9]. Surge portanto Ulisses como figura apolínea; e o espelho
como a porta do Templo de Delfos, cuja inscrição do frontispício dizia: “Te
advirto, quem quer que sejas! Que desejas sondar os mistérios da natureza. Como
esperas encontrar outras excelências se ignoras as excelências de tua própria
casa? Em ti está oculto o tesouro dos tesouros. Oh homem! Conhece-te a ti
mesmo… e conhecerás o Universo e os deuses”.
Ulisses assim se constitui o espírito da ordem, da
racionalidade e da harmonia intelectual que dá a Lóri o sentimento de proteção
cada vez que ela lhe permite entrar mais e mais em sua vida. A ternura,
afeição, dedicação e apego apolíneo de Ulisses por Lóri demonstra toda força de
Agápe. Mas Lóri, profundamente dionisíaca, quer viver o êxtase e
espontaneamente.
A intrínseca relação do espelho aos cultos dionisíacos
traduz a presença de Eros. A descoberta do corpo ao se olhar ao espelho desvela
a consciência de si e aceitação da corporeidade com todos os contornos
eróticos.
O espelho aguça a curiosidade de se autodescobrir.
Por ter de relance se visto de corpo inteiro ao espelho, pensou que a proteção também seria não ser mais um corpo único: ser um único corpo dava-lhe, como agora, a impressão de que fora cortada de si própria. Ter um corpo único circundado pelo isolamento, tornava tão delimitado esse corpo, sentiu ela, que então se amedrontava de ser uma só, olhou-se avidamente de perto no espelho e se disse deslumbrada: como sou misteriosa, sou tão delicada e forte, e a curva dos lábios manteve a inocência [10].
De acordo com James Hillman, São Bernardo de Clairvaux ao
descrever a disciplina do autoconhecimento em Nosce te Ipsum, afirma que o
primeiro passo na direção errada não é o orgulho, nem a preguiça e muito menos
a luxúria, mas sim a curiositas [11]. Contrariamente, a curiosidade de Lóri
possibilita a descoberta de si e do outro. É mais da existência do que da
essência. Lóri percebe a si mesma ao viver o Eros. Olha-se com avidez
e descobre-se um mistério, uma mulher que traz força e ternura, Agápe e Eros,
luxúria e inocência.
Pareceu-lhe então, meditativa, que não havia homem ou mulher
que por acaso não se tivesse olhado ao espelho e não se surpreendesse consigo
próprio. Por uma fração de segundo a pessoa se via como um objeto a ser olhado,
o que poderia chamar de narcisismo mas, já influenciada por Ulisses, ela
chamaria de: gosto de ser. Encontrar na figura exterior os ecos da figura
interna: ah, então é verdade que eu não imaginei: eu existo [12].
O espelho desvela o eu interior. Difere-se neste caso do
mito Narciso que, paralisado, morre na contemplação de si mesmo. Lóri encontra
na figura exterior os ecos da figura interna. Descobre a mais importante
verdade existencial: EU EXISTO.
Notas
1. LURKER, M. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São
Paulo: Paulus, 1993, p.92.
2. Papiro de Gurob, 27 – 30 apud LOREDO, C. R. Eros e
iniciação: Um estudo sobre as relações entre a paidéia platônica e os antigos
cultos gregos de Mistério a partir do Banquete. Belo Horizonte: Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2009, p.34. Tese de Mestrado. Segundo o mito,
os titãs deram ao deus menino Dionísio um espelho. Logo depois mataram o
menino, o cozinharam e comeram-no. Dessa lenda provêm dois conceitos da origem
do homem: ctônica, porque brota das cinzas dos titãs mortos por Zeus e, divina,
pelo fato de os restos mortais dos titãs conterem elementos divinos de
Dionísio, o deus menino. Daí a origem dualista do orfismo que atribui à alma o
vestígio divino de Dionísio e o corpo a prisão da qual a alma precisa ser
liberta.
3. LURKER, M. Id.Ibid., p.92.
4. Id.Ibid., p.92.
5. RUNES, D. D. “Speculum”. Dicionário de Filosofia. Lisboa:
Editorial Presença, 1990, p.354.
6. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2011, p.97.
7. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.16.
8. Op. Cit., p.18.
9. Op.Cit.,, p.16,17.
10. Op. Cit., p.19.
11. HILLMAN, J. Op.Cit., p.20.
12. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.19.
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