Em horários intercalados, a Catedral de Rouen, um dos mais belos e impressionantes templos góticos já produzidos pelo espírito e engenho humano, foi sucessivamente pintada pelo mestre impressionista Claude Monet. Movido pelo interesse cada vez mais constante de captar as várias mutações que o efeito da luz provocava na fachada gótica, Monet pinta cinquenta telas em horários e dias intercalados para captar todo o efeito óptico da fachada de Rouen.
A Catedral é a mesma, mas o élan que os feixes de luz e sombras provocam no artista dá-lhe a impressão de que cada fachada é nova e distinta. O frontispício imponente permanecia inamovível e imutável, mas ao espírito e olhos de Monet as imagens mudavam radicalmente. A paisagem diante de si apresentava-se nova e diversa, de acordo com a luminosidade natural e a incidência da luz sobre o templo.[1] O assombro que tomou conta de Monet dirigiu-o a pintar mais uma vez a Catedral. A tela, assinada no mesmo ano, 1984, foi chamada Catedral de Rouen vista ao amanhecer. A igreja é a mesma, mas trata-se de obras autônomas e distintas.
A pintura da fachada da Catedral de Rouen ilustra perfeitamente os estudos e discursos modernos concernentes a identidade da Igreja. E o assombro do artista, talvez, seja representado melhor pelo absconditus barthiano: “Estamos perante o mistério de Deus quando nos deparamos com o mistério da Igreja.”[2] Diversos teólogos, missionários, pastores e biblicistas têm apresentado várias nuanças do mesmo frontispício, da mesma igreja, de acordo com sua própria arte e metodologia.
Emil Brunner, por exemplo, afirmava que a essência da igreja do Novo Testamento era a comunhão com Cristo e o amor entre os crentes: Segundo Brunner:
O Corpo de Cristo nada mais é do que uma comunhão de pessoas. É a “comunhão de Jesus Cristo” ou “comunhão do Espírito Santo”, onde comunhão ou koinonia significa uma participação comum, uma “condição de estar juntos [togetherness], uma vida em comunidade. [3]
Para Brunner, a natureza milagrosa e excepcional da Igreja é a união mística com Cristo. A Igreja é o Corpo de Cristo. Não deve, portanto, ser confundida com uma mera organização, e o clero não deve exercer sobre ela o mesmo domínio que um líder tem sobre uma instituição. Nessa perspectiva, o teólogo dialético considera o derramamento do Espírito na festa de Pentecostes como o início da Igreja. A efusão do Espírito Santo é identificado estritamente com o nascedouro da Igreja e ambos são indissociáveis. Segundo o autor “no começo da história da Ecclesia está o mistério do Pentecoste”[sic]. [4]
O envio do Paracleto inaugura um novo começo, entendido como misterioso e comunitário: “onde o Espírito está”, afirma, “existe comunhão cristã”.[5] A Igreja não surge por iniciativa humana, seja por um esforço individual, seja coletivo. Uma vez que a Igreja não é produto do empreendimento humano, o Espírito Santo não cria cargos por meio dos quais o líder governa, mas serviços através dos quais o líder serve. [6] É a presença de Cristo por meio de sua Palavra e de seu Espírito que torna a Igreja o que ela é. O Espírito Santo é o próprio fôlego de vida da Igreja e, portanto, ela não pode ser confundida com uma instituição sagrada, ou como numerus electorum (números dos eleitos), pois trata-se do Corpo de Cristo.[7]
Se a Igreja deixar de ser Corpo de Cristo para se tornar uma instituição, mesmo que sagrada, ela perde sua natureza, essência e identidade para tornar-se “imagem e semelhança de seus líderes”, de seu tempo e cultura. Em síntese, a natureza da Igreja como Corpo místico de Cristo e habitação do Espírito e o amor fraterno entre os crentes são os elementos que determinam a identidade da Igreja. A Igreja é Corpo de Cristo e comunhão dos fiéis, como também afirmará Pannenberg.
Wolfhart Pannenberg considera o Corpo de Cristo como o conceito mais profundo da natureza e identidade da Igreja. Para ele, esse corpo se realiza e se configura na celebração da ceia do Senhor. A celebração da ceia do Senhor, afirma, “constitui a igreja como corpo de Cristo e, logo, como comunhão dos fiéis”.[8] Uma vez que a santa ceia do Senhor não é uma criação da Igreja, mas uma instituição de Jesus em que a anamnese e epiclese configuram-na, afirma Pannenberg: “A multidão dos que crêem é igreja somente pela celebração da ceia do Senhor, que os torna corpo de Cristo e assim uma congregação da nova aliança”.[9]
O Senhor presente na ceia é o mesmo que morreu na cruz, entretanto essa presença se dá por meio da memória de Jesus que se encaminha para a morte. Memória, para o autor, é “atualização cultual na forma de celebração” [10] que transita para a prece pela vinda do Senhor (maranatha:1Co 16.22) na comunhão da ceia como antecipação do reino vindouro de Deus.[11] A celebração da santa ceia é vivificada pela presença do Espírito Santo. Cristo está presente no culto de celebração pascal por meio do Espírito (Mt 18.20); não unicamente pelo fato de o Espírito ser invocado (epiclese), mas sim, por ser Ele o que torna a anamnese eficaz como forma de adoração e serviço a Jesus Cristo.
De acordo com Pannenberg, a celebração da ceia do Senhor sempre foi mais do que uma “peça axial” do culto dos primeiros cristãos. Era tanto unidade mística com Cristo e celebração da comunhão cristã, quanto proclamação pública da morte de Cristo perante os que ainda não creem.[12] Essa tríade deveria constituir um sinal da esperança pela consumação da humanidade no reino de Deus, caso não houvesse, como se verifica na história, o convício. Por meio de cisões, pela intolerância e ambição de poder de seu clero, mas também por adaptação excessiva aos modismos cambiantes do mundo de um lado e por formas estreitas e coercitivas de devoção de outro, que permitem notar pouco do hálito libertador do Espírito, a igreja sempre de novo obstruiu a tarefa fundamentada em sua essência.[13]
Todavia, para o autor, esse sinal não deixa de sê-lo pelas inconstâncias e discórdias da Igreja. É a pregação do evangelho que renova aos membros o seu pertencimento a Jesus. A Igreja, Corpo de Cristo, é o verdadeiro povo de Deus, não obstante à perda de sua natureza e identidade nas muitas cisões que a fragmentou. Mas se a comunhão mística com Cristo e a unidade dos cristãos em amor são os elementos que constituem a identidade da Igreja; então podemos dizer que a Igreja perdeu essa identidade há muitos séculos e que já não estamos mais tratando de uma entidade única, mas diversa. Ou se a unidade com Cristo é o que mantém a unidade entre os fiéis que participam da mesma mesa; então, os convícios que marcam a história dessa instituição são um atentado direto à identidade e natureza dela, além de ser um forte testemunho contra a sua unidade mística com Cristo.
Notas
1.
Ver GEIGER, P. (org.) Galeria Delta da
Pintura Universal. Rio de Janeiro: Editora Delta, 1977, p. 132.
2.
BARTH, K. Carta aos Romanos. São
Paulo: Editora Cristã Novo Século, 2003, 1.ª Parte, p. 637.
3.
BRUNNER, E. O equívoco sobre a Igreja.
São Paulo: Editora Cristã Novo Século, 2004, p. 14.
4. Id. Ibid., p. 15.
5. Id. Ibid., p. 15.
6.
BENTHO, E. C. Igreja identidade &
símbolos. Rio de Janeiro: CPAD, 2010, p.15.
7. BRUNNER, E., Id. Ibid.,
p.16.
8.
PANNEMBERG, W. Teologia Sistemática. São
Paulo: Editora Academia Cristã; Paulus, 2009, vl. 3, p. 575.
9. Id. Ibid., p. 415, 449.
10. Id. Ibid.,
p. 419.
11. Id. Ibid.,
p. 434.
12. Id. Ibid.,
p. 449- 453.
13.
Id. Ibid., p. 577.
Um comentário:
É complicado e sujo o jogo de palavras com o termo igreja. Para afirmar que a instituição tem intrínsicamente status divino, a "brincadeira" é feita com a nomenclatura neotestamentária, tudo para justificar uma autoridade, um poder. Muito distante da beleza, que o termo e ajuntamento neotestamentário representava, da comunhão dos que crêem.
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