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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Teoria da Complexidade de Edgar Morin como Possibilidade Maiêutica e Metodológica para a Teologia Hoje.


                                                          Edgar Morin 
                                                       Foto de Bob Souza

A. T. Queiruga propõe à Teologia de nosso tempo uma releitura global da Tradição e da Bíblia, recuperando a riqueza de sua experiência e de sua capacidade de suscitação maiêutica. Preocupado com os novos paradigmas das ciências modernas e com as respostas obsoletas da teologia, o teólogo sugere mais do que uma renovação e atualização do vocabulário teológico, deixando assim intactos os esquemas de fundo. Para Queiruga é necessário retraduzir o conjunto da teologia dentro do novo mundo criado a partir da ruptura da Modernidade. [1]

Reconhecendo a validade do projeto teológico do autor, sugerimos nesse ensaio uma reflexão a respeito da Teoria da Complexidade de Edgar Morin como possibilidade maiêutica e metodológica para a teologia hoje. Contudo, não é possível pensar as reflexões de Morin se ignoramos sua epistemologia complexa. Portanto, faremos inicialmente uma breve incursão no paradigma da Teoria da Complexidade e, logo a seguir, situaremos as propostas morinianas de uma educação planetária que se lança para o futuro no escopo do pensamento complexo. Após os resumos expendidos, procederemos com uma ponderação concernente à questão: Em que sentido as observações de Morin a respeito da educação do futuro podem ser aplicadas à reflexão teológica?

A Teoria da Complexidade

O educador e filósofo francês Edgar Morin é um dos mais importantes representantes da teoria da complexidade, cuja força motriz é a interdisciplinaridade. Esse paradigma medeia entre o simples[2] e o complexo e descreve a totalidade da experiência, ciência e cultura humanas em uma visão interdisciplinar. A corrente moriniana, por conseguinte, se distingue das teorias que privilegiam a hiperespecialização e a simplicidade da realidade – cosmovisão que fragmenta o conhecimento e o põe em container fechado, tornando-o, assim, incapaz de uma abertura dialética com outras áreas do saber. O pensamento complexo possibilitaria uma abertura dialógica entre as disciplinas que, já departamentalizadas pelo positivismo e racionalismo, impedem que a realidade dada seja pensada com profundidade.

A teoria da complexidade possibilita o diálogo com outros saberes e com a realidade, esta sempre em processo de mudança. De acordo com Morin, o pensamento complexo é incompleto, articulante e multidimensional, razão pelo qual não é absoluto.[3] A complexidade carrega em si o sentido de solidariedade e o caráter multidimensional de toda a realidade. Portanto, rompe com a mentalidade cartesiana, a previsibilidade de seus resultados e a simplicidade de suas orientações.

O processo defendido pelo autor não é o de simplificação, mas de indagação. Questiona-se as contradições presentes em nossa realidade. Assim, a teoria complexiva é o resultado de uma indagação dialógica constante e ininterrupta com os diversos saberes.[4] O paradigma se articula, segundo o seu mentor, em três princípios concomitantes e interdependentes: o dialógico, recursivo e hologramático. O primeiro reside na oposição que uma teoria faz a outra e a capacidade de ambas se alimentarem do embate, do antagonismo, complementando-se em uma relação dialética. O segundo contraria uma visão linear do conhecimento ao reconhecer que os “produtos e os efeitos são causas produtoras daquilo que o produziu”. E o terceiro é de que o todo está presente na parte e esta naquela. [5].

O conhecimento que se articula na educação contemporânea é fundamentado, segundo o teórico, em um paradigma epistemológico ultrapassado, que não mais responde às questões suscitadas pelo mundo globalizado. É necessário repensar os caminhos da educação e articular uma nova episteme que, sem abandonar os avanços da anterior, rejeite porém os seus ranços. 

Aportes morinianos possíveis à teologia: primeira fase

O primeiro aporte moriniano à teologia é o epistemológico. Todo conhecimento desenvolvido em certa época baseia-se em algum paradigma. No início da era cristã, os teólogos cristãos encontravam na teoria geocêntrica de Cláudio Ptolomeu uma justificativa lógica e contemporânea para admitirem a literalidade do relato de Josué 10,12-14. Tempos depois, com a ascensão da teoria heliocêntrica de Nicolau Corpénico (1473-1543), já não era mais possível aceitar o geocentrismo, mas explicar a perícope à luz do novo paradigma. Francis Bacon (1561-1626) apesar de abandonar o raciocínio silogístico de Aristóteles e desenvolver o raciocínio indutivo, estava convencido de que o número dos planetas era sete.[6] Quão distintas são as concepções científicas copernicanas e baconianas das admitidas hoje pela física e astronomia! Isto lembra-nos da urgência de reconsiderarmos, à medida que a sociedade avança, os fundamentos epistemológicos sob os quais baseamos as teorias, quer científicas, quer teológicas.

Portanto, propõe Morin um questionamos da teoria do conhecimento sob a qual se fundamenta a moderna educação. Logo, podemos realizar o mesmo movimento: questionar a validade da teoria do conhecimento sob a qual se edifica a teologia contemporânea. Essa epistemologia responde aos novos desafios propalados pela modernidade? Quais são os erros e a ilusão desse paradigma? É possível reconstruir uma teologia sob os auspícios de novos paradigmas sem perder o núcleo central da fé cristã?

De acordo com A. T. Queiruga, os pressupostos metodológicos e as grandes categorias da teologia estiveram fincados durante muito tempo na época pré-moderna. As proposições teológicas fundavam-se nas premissas aristotélicas, tomistas, e no dualismo e dúvida cartesianas – apesar deste último reconhecer as mudanças de seu tempo e propor mudanças paradigmáticas. A crise no cristianismo, atesta o autor, deve-se fundamentalmente ao desajuste produzido por essa derrocada teórica e sua incapacidade de responder dialogicamente aos problemas elencados pela nova situação. A fé tornou-se inadequada e antiquada ao novo contexto que a circundava. Torna-se, portanto, necessário alocar a teologia na nova situação criada pela entrada na Modernidade. A crise da teologia consiste exatamente nisto: em reconhecer e responder aos novos reclamos que a Modernidade impõe. Isto posto é ingente necessário que os teólogos reflitam que: (a) a relação com o objeto da teologia mudou; (b) a consciência dessa relação mudou; (c) é necessário construir uma nova relação, e elaborar conscientemente a teologia no seio de um novo paradigma. A Modernidade trouxe no bojo dos novos paradigmas: a autonomia e historicidade; uma nova objetividade e subjetividade religiosa.[7].

Morin atesta que não é mais possível aceitar uma teoria que simplifique a realidade e fracione o conhecimento, impedindo uma visão mais completa e complexa da realidade e um caráter dialógico e interdisciplinar das ciências. Isto também exemplifica a situação da moderna teologia que ainda se mostra resistente às mudanças, à dialogicidade, e aceita a realidade como um dado acabado. Para que a teologia continue fazendo sentido em uma sociedade em constante mudança é necessário que reconsidere os paradigmas que no passado lhe deram sentido e adentre numa nova perspectiva paradigmática. Todavia, isto não significa abandonar completamente o antigo para abraçar irrefletidamente o novo, mas questionar profundamente a nova realidade e buscar novas formas de inculturação de sua mensagem. Cabe ainda à teologia moderna questionar a si mesma e dialogar não apenas com as ciências, resgatando seu caráter interdisciplinar, mas também dialogar entre as várias correntes teológicas e religiosas.

Os sete saberes necessários à educação do futuro

A obra em epígrafe é fruto da reflexão do filósofo francês Edgar Morin, sob os auspícios da unesco. O autor teoriza a respeito de sete saberes necessários à educação do futuro e questiona as teorias epistemológicas que fundamentam a educação contemporânea. A obra, dividida em sete capítulos, descreve assim os sétuplos saberes:

1. As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão;
2. Os princípios do conhecimento pertinente;
3. Ensinar a condição humana;
4. Ensinar a identidade terrena;
5. Enfrentar as incertezas;
6. Ensinar a compreensão;
7. A ética do gênero humano.

A obra aborda nos dois primeiros capítulos a questão do conhecimento, descrito como: equivocado, ilusório, parcial, reducionista, descontextualizado, fechado e simplista. A episteme que fundamenta o atual paradigma da educação é aporético. Ele se propõe a ensinar os saberes, mas desconhece profundamente o que é o ser humano, suas enfermidades, dificuldades, tendências ao erro e à ilusão, e não se preocupa em fazer conhecer o que é conhecer.

Portanto, o conhecimento objetivo e racional do presente paradigma educacional falha ao não ensinar aos homens:
a)      a sua identidade terrena e planetária;
b)      ao reduzir o indivíduo às condições meramente racionais;
c)   ao ignorar a afetividade humana, por desconhecer a natureza própria que o constitui.

Acrescente o fato de que o atual conhecimento é omisso, pois não descreve as características dos processos cerebrais, mentais e culturais dos conhecimentos humanos, de seus processos e modalidades tanto psíquicas quanto culturais que conduzem o ser ao erro e à ilusão. Este paradigma, no entanto, em vez de apresentar os equívocos dessa epistemologia simplista, anestesia a mente humana. Contudo, uma educação que se apresenta capaz de redirecionar os saberes do ser humano deve ter e manter a prioridade de ensinar como se aprende e como se chega ao conhecimento complexivo.

Como afirma o autor, “o conhecimento do conhecimento como necessidade primeira” e permanente para se combater os riscos ininterruptos do erro e da ilusão parasitárias. A solução viável é substituir esse paradigma epistemológico por outro que atenda as reais necessidades da sociedade planetária e a complexidade da realidade. Que rompa com a fragmentação do conhecimento estanque. Na concepção do autor isto é possível por meio da interdisciplinaridade e da Teoria da Complexidade, que já aduz àquela. Os cinco capítulos e saberes restantes tratam da condição e identidade humana em um mundo de incertezas na qual o ser humano é fragmentado, deslocado, fechado em si e para os outros e não compreende adequadamente sua relação consigo, com o outro, e com o planeta. Somente com a superação dos saberes simplistas será possível o estabelecimento de uma antropo-ética ternária que considera o indivíduo, a sociedade e a espécie. 

Aportes morinianos à teologia: segunda fase

Nesta segunda fase dos aportes morinianos à teologia é mantido o tônus crítico à epistemologia contemporânea. A insistência do autor em questionar a episteme moderna deve-se, em grande parte, ao fato de que ela sustenta a maioria dos equívocos cognitivos contemporâneos, refletindo-se acima de tudo, na completude do ser, na ética e na tríade do relacionamento humano: consigo, com o outro e com a espécie.

Exclusivamente neste aspecto, a orientação teórica do humanista não considera o relacionamento com Deus. Cabe à teologia complementar esses eixos com a noção de Deus. Mas qual das várias noções de Deus escolher? O paradigma usado para apresentar a Deus na pré-modernidade ainda seria útil para revelar a Deus na sociedade pós-moderna? O contexto em que se apresenta a Deus na sociedade secular europeia serve para os pobres da América Latina e para a Igreja Sofredora da Cortina de Bambu?, por exemplo

Morin também acusa o moderno paradigma epistemológico de não conhecer o homem em sua completa humanidade e todas as implicações que isto traz. Aqui se situa o propósito pelo qual o autor questiona a teoria do conhecimento atual: a sua incapacidade de entender o homem em sua completude. O homem para ser compreendido em sua totalidade foi dividido em partes – uma entregue para a biologia, outra para a psicologia, ainda outra à antropologia, etc. Cada ciência com um pedaço do ser, no entanto, sem entender-lhe em sua dimensão profunda e completa.

À teologia, portanto, caberia o compromisso de revisar sua antropologia teológica, refletindo criticamente a respeito da presença do dualismo na antropologia cristã e os desafios que as novas antropologias seculares oferecem ao múnus teológico. Uma hermenêutica antropológica que, longe de ser monista, não ignore a completude e integralidade da natureza humana em suas dimensões substantivas, entre elas o espiritual e afetivo, compreendendo em toda pujança a "unidade do homem na pluralidade" e a "pluralidade humana na unidade", sem fragmentá-lo e reduzi-lo.  Assim, de uma visão simplista, questionada por Morin, a teologia se abriria para uma dimensão mais complexa, integral e relacional do sujeito cognoscente e afetivo com Deus, o Outro e a Criação.

Conclusão

O diálogo entre fé e ciência, teologia e novos saberes sempre estará em busca do enlace e do divórcio. Cabe a cada geração responder as necessidades de sua época. Um modelo de conhecimento, seja teológico, seja científico, não é absoluto, embora alguns tenham a pretensão de que seja. É responsabilidade dos teólogos e da teologia contemporânea encontrar novos aportes que dialoguem com a modernidade. A teoria da complexidade de Edgar Morin é assim uma força explicativa para auxiliar na integração do conhecimento à vida.


Referências Bibliográficas
ALVES, R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e as suas regras. 7.ed., São Paulo: Loyola, 2003. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 2.ed., São Paulo: Cortez; Brasília, DF : UNESCO, 2000. _____ Introdução ao Pensamento Complexo. 4. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. _____Educar na era planetária: o pensamento complexo como método de aprendizagem no erro e na incerteza humana. 3. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2009. _____Introdução ao Pensamento Complexo. 4. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. _____O método 3: o conhecimento do conhecimento. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2005. QUEIRUGA, A.T. Fim do cristianismo pré-moderno. São Paulo: Paulus, 2003.
Notas
[1] Ver QUEIRUGA, A.T. Fim do cristianismo pré-moderno. São Paulo: Paulus, 2003. [2] Morin afirma que o pensamento simples desintegra a complexidade do real, entretanto, o complexo integra os modos simplificadores do pensar, mas recusa às consequências mutiladoras, redutoras, unidimensionais e ilusórias da simplificação da realidade. Ver MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. 4. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2003, p. 9. [3] Cf. Educar na era planetária: o pensamento complexo como método de aprendizagem no erro e na incerteza humana. 3. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2009, p.54 [4] Id. Ibid., p. 24. [5] Cf. MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. 4. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2003, p. 187-8. Ver ainda do mesmo autor: O método 3: o conhecimento do conhecimento. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2005. [6] WARHAFT, S. (org.) Francis Bacon: A selection of his works. Toronto, 1965, p. 17 Apud ALVES, R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e as suas regras. 7.ed., São Paulo: Loyola, 2003, p. 16. [7] Ver QUEIRUGA, A.T. Fim do cristianismo pré-moderno. São Paulo: Paulus, 2003.

6 comentários:

Neemias Raimundo disse...

Muito bom pr. Esdras. Muito interessante e intrigante por exemplo a questão: "É possível reconstruir uma teologia sob os auspícios de novos paradigmas sem perder o núcleo central da fé cristã?" Que ja me circunda à algum tempo. Gostei muito do texto.

Unknown disse...

"Varão",

Eis aí uma discussão relevante que nos desafia a ir além do que já foi feito, pois do contrário, os discursos teológicos não passam de cabo-de-guerra e pomos de discórdia entre inocentes (que não sabem nem porque creem no que dizem crer) e vaidosos (oportunistas que querem disputar a posse da verdade, pois assim continua o domínio).

Acredito que os "anônimos", sobretudo nossos alunos, como muito bem o fez acima o nosso colega comum, Neemias Raimundo, serão os maiores entendedores da discussão e, melhor, levarão avante esse relevante assunto do lócus da produção teologica.

Na verdade, tenho esperança nesses poucos, pois os que realmente entendem a questão e têm um compromisso ético - com Deus e com a libertação das pessoas -, certamente se engajarão no processo com motivações legitimas e com propósitos nobres.

Parabéns pela relevante postagem.

Abraços,

JairoHuss disse...

Pastor muito bom seus estudos , que Deus possa sempre te usar.

JairoHuss disse...

Muito bom o estudo!

António Je. Batalha disse...

Estive a ver e ler algumas coisas, não li muito, porque espero voltar mais algumas vezes, mas deu para ver a sua dedicação e sempre a prendemos ao ler blogs como o seu.
Gostei de tudo o que vi e li.
Vim também desejar muita paz,saúde e grandes vitórias.
São os votos do Peregrino E Servo.
Abraço.

nani perceptiva disse...

Boa tarde! Assunto interessante! Sugiro a leitura da tese de doutorado de André da Conceição da Rocha Botelho: Teologia na Complexidade, de 2007, pela PUC Rio. Parabéns!

TEOLOGIA & GRAÇA: TEOLOGANDO COM VOCÊ!



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