Introdução
Os cristãos pentecostais brasileiros, com raras exceções,
refletem profunda e adequadamente a respeito da identidade da Igreja. Exceto
pelo conhecimento propedêutico da eclesiologia de matriz estrangeira e pela
evangelização motivada pela urgência escatológica, pouco, em um século de
história, se tem avançado em relação ao tema. A eclesiologia pentecostal no
Brasil é implícita, focada na experiência e indutiva. Não parte de um processo
de reflexão teológica que leva à práxis, muito menos do reconhecimento de sua
identidade e natureza, mas do exercício individual dos carismas, enquanto
mordomia que o indivíduo convertido e batizado no Espírito realiza.
Todavia, não farei uma análise diacrônica
da identidade da Igreja. julgamos ter cumprido esse desiderato em nossa obra Igreja Identidade & Símbolos, a qual
remetemos o leitor. Nossa proposta é analisar de modo sincrônico a identidade e
natureza da igreja, sem, no entanto, nos determos sistematicamente nas várias
características identitárias das igrejas da atualidade. Buscamos, pelo
contrário, uma resposta sociológica e somente depois teológica, a fim de
proporcionar ao ledor uma visão mais ampla da problemática. Para tanto,
discutiremos algumas questões relacionadas às identidades na modernidade de
Baugman, Giddens e Castells, com uma interface em outros teóricos da
modernidade, como Touraine, Hall (entre outros) e sem nos esquecer de Weber e
Durkheim. E a seguir, trataremos das leituras teológicas a respeito do tema,
segundo Brunner, Pannenberg, Barth, Moltmann.
Nosso objetivo não é exaurir o assunto, mas fornecer ao
leitor uma análise sintética de algumas, não todas, discussões concernentes à
identidade da Igreja.
As Cidades Invisíveis e
a identidade da igreja
No criativo e ficto diálogo elaborado por Ítalo Calvino em As Cidades Invisíveis, Marco Pólo diz ao
grande Kublai Khan:
Você sabe
melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade
com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles.1
Permita-me o leitor à seguinte
paráfrase, supondo que esse diálogo tenha ocorrido entre um missionário e um
líder tribal, que resiste a cultura cristã para manter a identidade de sua
tribo:
Você sabe melhor do que ninguém, sábio líder,
que jamais se deve confundir Jesus e o Cristianismo com o discurso das igrejas
que os representam. Contudo, existe uma ligação entre eles.
De acordo com o personagem Marco Pólo,
a única forma de representar adequadamente a cidade Olívia é descrevendo,
através do discurso, a prosperidade da cidade que, embora rica, com “suas
almofadas franjadas nos parapeitos dos bífores”, está envolta “por uma fuligem
e gordura que gruda nas paredes das casas”
2. Assim também a Igreja. Não há como
descrever adequadamente a sua identidade se não falarmos de sua riqueza e
impoluta beleza e também da fuligem e gordura incrustada em sua estrutura. A
estética e opulência da città fazem
parte de seu estado e criação originais, mas a tisne e nediez foram acrescentados
depois. Tal qual Olívia, “na aglomeração das ruas”, onde os guinchos manobravam
comprimindo os pedestres contra os muros, as igrejas pululam nos guetos e
ruelas dos grandes centros disputando espaços e atenção dos transeuntes,
comprimindo-os.
Todavia, a identidade da cidade
Olívia não está em seus suntuosos palácios de filigranas almofadas, mas nos
personagens que nela vivem. A identidade da metrópole não se confunde com suas
magníficas construções. São os sujeitos, com o que são e produzem, que lhe dá
sentido. Para melhor descrever a cidade, Marco Pólo afirma que seria necessário
usar a metáfora da fuligem, dos chiados de rodas, dos movimentos repetidos, dos
sacarmos. A mentira, diz o veneziano, não está no discurso, mas nas coisas. A
chave-hermenêutica está na relação entre o discurso e os fatos, entre a
realidade e as imagens verbais.
Conceito de Identidade
Conceituar o termo identidade a partir de seu étimo
latino, idem, “o mesmo”, não é uma
tarefa hercúlea; entretanto, descrever os variegados usos do vocábulo nas
ciências sociais semelha-se ao desafio de revelar o enigma da esfinge. Tal qual
a solução de Édipo, a resposta se encontra no próprio homem, uma vez que
somente ele dá sentido social à linguagem e às coisas. Esses significados
sempre são vistos a partir da perspectiva da sociedade em que o homem está
inserido ou que nela se move.
A identidade e atributos que caracterizavam o homem
no início da modernidade não são mais os mesmos na sociedade contemporânea.
Para Hall existe hoje uma “crise de identidade”, como parte de um processo de
mudança que desloca as estruturas e processos da sociedade e abalam os quadros
de referência que outorgavam aos indivíduos “uma ancoragem estável no mundo
social”. Segundo o autor
As
velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em
declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno,
até aqui visto como um sujeito unificado3.
Essa mudança estrutural ocorrida já no final do
século XX é responsável pela fragmentação e transformações culturais de
classes, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que até então dava
ao sujeito um sentimento de integração e pertencimento, que não existem mais. O
indivíduo, afirma Hall, está deslocado, descentrado “tanto de seu lugar no
mundo social e cultural quanto de si mesmo”4, o que constitui uma
crise de identidade. Essa identidade em processo de construção/desconstrução é
fragmentada e contraditória, pois resulta das transformações nas instituições
religiosas, sociais e familiares as quais o indivíduo pertence. Assim, a crise
de identidade do sujeito é provocada pela crise institucional5. Observe,
por exemplo, uma instituição religiosa que diferentemente dos tempos de outrora,
não consegue, por muitas variáveis, manter os valores e tradições espirituais e
culturais que a sustentaram e que por eles fora identificada desde a sua
fundação. O fiel vive entre dois mundos completamente antagônicos: o que
procura manter os traços retilíneos da tradição original e o da renovação, que
considera os costumes e tradições antigas retrógados e incapazes de falar ao
homem moderno. Nesse vácuo está o crente e sua crise de pertencimento na
modernidade líquida.
Notas
1. CALVINO, Í. As cidades
invisíveis. São Paulo: Publifolha, 2003, p.27 . [Já na conclusão desse trabalho, li o texto de Libanio que, pela
impossibilidade de reajustar as notas, coloco aqui. O conceito que procuro
descrever na paráfrase dessa citação acha-se em Libanio que diz: “A distinção
entre Cristianismo e Igreja permite entender a nova situação. Vimos como Jesus
é distinto do Cristianismo, mas o Cristianismo é impensável sem a fé em Jesus e
esta só continuou historicamente porque o Cristianismo se tornou realidade
social. Assim também as igrejas cristãs são distintas do Cristianismo e de
Jesus Cristo. No entanto, existem relações entre essas três realidades”. Ver LIBANIO, J. B. Qual
o futuro do cristianismo? São Paulo: Paulus, 2006, p. 21.]
2. Id.Ibid., p.27.
3. HALL, S. A
identidade cultural na pós-modernidade. 9 ed., Rio de Janeiro: DP&A
Editora, 2004, p.7.
4. Id. Ibid., p.9.
5. Emprego o termo “sujeito”, ”indivíduo” e
“agente” aqui, com o mesmo sentido usado por Touraine. Para ele o indivíduo “é apenas uma unidade
particular onde se misturam a vida e o pensamento, a experiência e a
consciência”. O Sujeito, grafado por
ele com “S”, “é o que exerce controle sobre a vivência para que ele tenha um
sentido pessoal, para que o indivíduo se transforme em agente inserido nas
relações sociais, transformando-as, mas sem nunca se identificar por completo
com um grupo, com uma coletividade”. O agente
“não é aquele que age em conformidade com o lugar que ocupa na organização
social, mas sim aquele que modifica o meio material, e sobretudo social, no
qual está situado, transformando a divisão do trabalho, as formas de decisão,
as relações de dominação ou as orientações culturais.” Ver TOURAINE, A. Crítica da modernidade. Lisboa:
Instituto Piaget, 1994, Epistemologia e Sociedade, p. 247. O Sujeito é “tanto
uma alma como um corpo e é igualmente um projecto, uma memória das origens”, p.
351. Cabe afirmar que o conceito de sujeito, de acordo com o autor, não se opõe
a ideia de sujeito, mas constitui uma interpretação muito particular desta
última. Ver p.313.
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