O Mal:
uma perspectiva pastoral
Introdução
Neste ensaio será apresentado uma breve
perspectiva pastoral concernente o problema do mal vivido nas comunidades
cristãs. O principal objetivo é analisar uma situação-limite da experiência de
sofrimento e verificar como as diversas respostas ao problema do mal
considerariam a questão do sofrimento e da oração de livramento ou petição.
1.
O fato
Em um dos mais trágicos
acidentes ocorridos no Estado de Minas Gerais, conhecido pelos meios de
comunicação como “tragédia no rio Doce”, conta-se o drama vivido pela soldadora
Geovanna Rodrigues, de vinte e oito anos. Depois do rompimento de duas
barragens em Mariana, Fundão e Santarém, administrada pela mineradora Samarco,
a senhora Geovanna passava os dias nas proximidades do ginásio da cidade à
espera de informações sobre o filho desaparecido, que mais tarde teve o corpo
reconhecido pela mãe.
Thiago Damasceno, de sete anos, cuja
paixão era andar de bicicleta, fora levado pela enxurrada de lama que devastou
diversas cidades e sepultou o futuro de centenas de moradores. Segundo o Portal
G1, as duas barragens despejaram 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de
minério e água destruindo os distritos de Bento Rodrigues, Camargos, Paracatu,
Ponte do Gama e cidades adjacentes[1].
O pequeno Thiago morava em Bento
Rodrigues, o primeiro subdistrito a ser atingido pela lama de rejeitos da
mineradora. Segundo a avó paterna, Carminha de Jesus, de quarenta e oito anos,
os dois foram surpreendidos pela força da lama enquanto estavam no quarto.
Carminha conta o momento dramático do desenlace: “Eu segurei as mãos dele, mas
a enxurrada era muito forte. Ele gritava dizendo: ‘Jesus, me salva, não quero
morrer’”.
2.
As
Perguntas
Casos semelhantes acompanham a vida humana
desde sua gênese. O mal é absurdo e escandaloso. Está presente em diversas
circunstâncias e de muitos modos diferentes. Numa situação semelhante ao do
pequeno Thiago muitas perguntas são feitas e tantas outras respostas são dadas
para tentar explicar o escândalo do mal. Entre elas:
·
Por que Deus não salvou a criança inocente
quando esta pediu-lhe salvação?
·
Se Deus quis salvar, mas não pôde ele é
fraco? Se podia salvar mas não o fez ele é mal?
·
Deus é indiferente ao problema do mal?
3.
As
Respostas
Para o problema do mal apresentam-se
inúmeras respostas. Trata-se, na verdade, do desejo do sujeito pensante em
compreender o escândalo e absurdo que cerca a vida humana. Todavia, não se pode
dar respostas arcaicas a problemas modernos. As perguntas do homem da
modernidade não devem ser respondidas com as respostas antigas da apologética e
teodiceia tradicional. As perguntas podem ser aquelas que o homem em sua
história de sofrimento sempre fez e fará, mas as respostas devem ser capazes de
responder, ou guiar à compreensão e solução do problema. Como afirma Queiruga:
Na nova
situação moderna o problema do mal requer uma mediação que faça justiça à sua
nova figura secular. De saída, o mal não é um problema religioso mas
simplesmente um problema humano universal. A resposta poderá ser ou não
religiosa, mas só poderá ser abordada num segundo momento[2].
Obviamente, para o escândalo do mal,
nenhuma resposta será completa e satisfatória em sua totalidade. Entre essas
respostas encontram-se:
3.1.
Contra Deum
De acordo com o argumento “contra Deum”, a presença do mal no mundo é uma
prova contundente de que Deus não existe. Se Deus realmente existisse o mal não
teria lugar no mundo físico, porquanto ele mesmo como “supremo bem” o
erradicaria. Neste primeiro argumento, a angústia, o sofrimento e o mal em
todas as formas de entende-lo são consequências a qual o ser lançado no mundo
está sujeito. Essa forma de entender o mal e suas manifestações no mundo culpa
a própria vítima por uma existência sem sentido. O ser é lançado no mundo sem
seu consentimento, para viver o absurdo da vida, da falta de sentido e
propósito. As vicissitudes vividas in
loco pelo sujeito revelam as limitações e finitude da natureza humana[3].
Deste modo, o homem cerca-se de cultura,
trabalho, lazer e leis para encontrar algum sentido para enfrentar o mal no
mundo. Todavia, inevitavelmente o mal assolará o indivíduo seja por meio do
sofrimento, seja por meio da injustiça, ou da morte. Essa é a única certeza que
se pode ter. Esse argumento, muito comum na filosofia niilista e esboçada por
Freud[4],
não atende aos apelos do coração humano e não responde a presença do mal no
mundo. O niilismo esvazia o homem e o mundo de sentido e se constitui um
desafio para a fé cristã.
Primeiro, pelo fato de o niilismo atingir
diversas áreas da vida humana. Segundo, o niilismo de matiz nietzschiano não
apenas afirma a falta de sentido das coisas, mas encoraja ao ser a não procurar
sentido no mundo. Ele proclama a morte do sentido. Na filosofia niilista resta
ao homem o vazio, a desilusão em não encontrar um propósito, um sentido para a
vida. Não existe, portanto, qualquer valor ou conceito de verdade, mas a falta
deles. O homem está só. O mundo não avança em direção a um telos. O niilismo rejeita toda a verdade objetiva e lança o homem
em um vazio, desespero e solidão. Na filosofia niilista não apenas as
representações de Deus estão mortas, mas o próprio Deus[5].
O argumento “contra Deum” inicialmente não
resolve o problema do mal e do sofrimento, mas o racionaliza. O mal não é algo
que se possa evitar. A resposta ao absurdo do mal é o absurdo da existência.
Sem Deus, o homem carrega solitariamente o peso do mal. Ao afastar Deus do
mundo, a modernidade assume incondicionalmente a responsabilidade pelo mal. Não
há qualquer recurso transcendente. A oração é compreendida dentro do jogo da
linguagem[6],
da psicologia, um mantra e autoajuda.
3.2.
Pro Deo
O argumento clássico “pro Deo” é o
discurso da teodiceia, da apologética. Esse argumento tem sido o mais comum
entre os cristãos, desde Agostinho. Este atribuía a Deus a criação de todas as
coisas, a perfeição, a harmonia da natureza e das coisas, a fonte da qual flui
tudo o que é bom.
O mal na esfera física e moral é visto
como consequência da escolha do homem (consentimento da vontade) ao abandonar a
Deus, enquanto na esfera espiritual é visto como a rebelião do anjo mau, que
abandona sua natureza boa e santa[7].
O mal no mundo é o resultado da escolha,
da liberdade e incapacidade do sujeito em obedecer a Deus e manter-se fiel ao
propósito pelo qual fora criado. Desde então diversos argumentos (ético,
cosmológico, metafísico) foram desenvolvidos tendo como linha mestra a
distinção agostiniana entre mal moral, mal físico e mal como entidade pessoal.
Argumentos desenvolvidos em sua maior parte com dados da razão e da revelação
das Escrituras, como a ciência de Deus[8].
Nos argumentos pro Deum o problema do mal é de responsabilidade humana. O homem é
responsável pelo mal porquanto foi ele quem cedeu à tentação e à voz do demônio
contra o Criador. Deus é inocentado. Deus está fora do mal, embora o permita. Todo
contexto do pecado original é interpretado dentro do ambiente da culpa e da
vontade corrompida do homem pela concupiscência. É uma interpretação que
justifica a Deus, apresentando o real responsável pela entrada do mal no mundo.
Nesta perspectiva, as tragédias, as
enfermidades, as injustiças sociais, o drama humano como um todo são
consequências do pecado ou da desobediência do próprio homem. Deus criou o
homem para a vida, a felicidade, a paz e justiça. Contudo, se o mesmo não vive
plenamente essas virtudes a culpa é do próprio homem que usa sua liberdade em
oposição à vontade de Deus.
Tal conceito não responde a razão pela
qual o homem sofre, mas põe a culpa e o peso do mal sobre o homem. É um sistema
de culpabilidade que tem enfermado a compreensão do sujeito a respeito de si.
No afã de defender Deus, acusa o homem, responsabiliza-o. O mal e o sofrimento
são, portanto, castigos. A justiça de Deus exige reparação. Esta vem de formas
diferentes: desastre, tragédias, sofrimentos. A imagem Deus é a do vingador, do
justiceiro.
A teodiceia coloca Deus longe do
sofrimento humano. É asséptica[9].
A oração seria o meio, o mecanismo, o instrumento que tiraria Deus de sua
passividade e o faria se deslocar do céu e intervir na vida humana.
A oração, como afirma Rubio, é
“mágico-mecanicista”[10].
Deus está do lado de fora, do outro lado do sofrimento humano. Este argumento
também não ajuda ao sofrente, pois é um sistema que culpa a vítima, e a faz
responsável por sua própria dor.
Ao entrar em colapso como teoria de
explicação do mal, consequentemente, a oração de petição – considerada como um
modo mágico e mecânico de se relacionar com Deus – também perdeu sua força. A
oração do aflito, “Senhor salva-me” e a imediata perda da vida humana requer
que esse tipo de oração mágica e mecânica seja repensada em perspectiva com a
providência divina[11].
3.3.
In deo e Ad Deum
O argumento “in Deo” entende que o mal é
um problema de Deus assim como um problema do homem. O mal não deve ser
enfrentado à parte de Deus. E Deus não precisa ser defendido quanto a natureza
e presença do mal no mundo. Deus não precisa ser poupado quanto presença do mal
no mundo. Ele é Deus de salvação. O argumento “ad Deum” entende que o problema
do mal não pode ser enfrentado sem que o compreenda em sua relação “para com Deus”.
Ambos conceitos acolhem o problema e
colocam-no na relação entre Deus e o homem, mediado pela súplica, pela
alteridade. “Deus aceita ser o cordeiro de Deus e objeto de maldição”[12].
Deus não é indiferente ao sofrimento dos homens.
3.4.
Cum Deo
O argumento “cum Deo” coloca Deus no
centro do debate. Ele luta com o homem contra o mal. A luta do homem é a mesma
de Deus, cum Deo. Deus é sujeito
ativo e se coloca como adversário do mal. Deus incrimina o mal. Não apenas é o
primeiro interessado pelo problema do mal como também o primeiro a ser atingido
por ele. Deus, portanto, é a resposta radical para o mal. É Deus que se torna
objeção contra o mal[13].
Deste modo, o homem não está só quanto ao
problema do mal, mas tem a Deus como seu aliado e combatente. A luta de Deus
contra o mal é a luta do homem, e vice-versa. Logo, a oração evoca a
participação de Deus no dilema humano. Como afirma Rubio, “a oração de petição,
como a fé cristã na providência, só tem sentido no contexto duma relação
pessoal-dialógica com Deus”[14].
A oração, portanto, é vista como diálogo entre o homem e Deus, principalmente
quando emana do sofrimento pessoal. O primeiro efeito da resposta de Deus à
lamentação-pedido é a mudança interior do próprio súplice[15].
Por conseguinte, Deus se entristece do mal
e toma partido das vítimas, tornando-se também vítima. Ele é misericordioso!
Ele carrega o mal juntamente com o sofrente. É com Deus que se deve tratar o
problema do mal. Ele é amor e tudo que se opõe ao bem do homem também opõe-se a
Deus[16].
4.
Perspectivas
Pastorais
O problema do mal está presente na
pastoral de muitas maneiras. A primeira é de caráter bíblico. A Sagrada
Escritura não “joga o problema do mal debaixo do tapete”, mas reconhece em
diversas tradições e gêneros literários a presença do mal na história humana e,
até mesmo, independente dela. A segunda é a própria experiência humana de
sofrimento na qual todos, indistintamente, estão imbuídos. A terceira é que o
mal continua um absurdo, escândalo e mistério até mesmo para o clero. Este
também em sua finitude é abarcado pelo sofrimento que também atinge o crédulo.
O próprio clero precisa de uma formação que contemple as questões e respostas
atuais ao problema do mal. Sem formação e esclarecimento adequado do problema o
clero não será capaz de dirimir as controvérsias e restituir a esperança do
sofrente. De La Peña lembra-nos que a função da teologia não é explicar o mal[17].
Portanto, quais possibilidades abrem-se para a pastoral? Algumas questões podem
ser observadas, sem contudo, pretender absolutizar tais propostas.
1. Apresentar que a fé cristã é
compatível com a percepção e o sofrimento por meio mal[18].
Segundo De La Peña tal compatibilidade é demonstrada no fato de que o próprio
Jesus-Deus, se revela como alguém que sofre com os homens. Ele vence
assumindo-o solidariamente e transmutando-o em semente de ressurreição[19].
O sofrente não está sozinho em seu mal e não precisa carrega-lo sozinho. A fé
em Cristo permite enfrentar o mal de modo mais esperançoso.
2. Apresentar que a salvação, por meio
da graça, preenche a finitude humana pela infinitude divina, “fazendo explodir
as barreiras de sua limitação”[20].
De La Peña lembra-nos que o ser humano é criado finito e obcecado pela ideia de
felicidade e, com isso, deseja superar toda contingência da vida presente, pois
aspira à infinitude. Tal superação, contudo, só é possível na graça de Cristo,
visto que Jesus assumiu concretamente uma vida solidária aos homens, uma
solidariedade redentora, que também nos permite ser assumidos como filhos de Deus
– filhos no Filho[21].
A possibilidade de superação do mal está na vida de comunhão com Deus por meio
de Jesus, que une definitivamente Deus e o homem. O Deus de
Jesus é um Deus que está incondicionalmente ao lado das vítimas do mal,
oferecendo-lhe o calor da sua amizade e a força da sua presença. O
Deus de Jesus não se mostra satisfeito com um mundo assolado pelo mal e vem pôr
termo a essa situação[22].
3. Apresentar que o Deus-Ágape implica
sempre o compromisso de lutar contra o mal, dentro e fora de nós[23].
Assim, o mal não é superado quando ele é retribuído com outro mal. Ao pagar o
mal com o mal, o discípulo, afirma Rubio, “não vence o mal, antes fica enredado
no seu intrincado e poderoso emaranhado”[24].
Assim, deve-se retribuir com o bem o mal recebido numa atitude que traduz o
gesto do próprio Filho de Deus diante de seus ofensores.
5. Conclusão
O mal mostra-se um grande desafio à fé cristã
inculturada. Apesar das diversas tentativas que procuram esclarece-lo, ainda se
mantém no âmbito do inexplicável. As opções de respostas são inúmeras e a
teologia deve estar atenta as considerações das ciências humanas. Todavia, o grande
esforço empreendido pelos pensadores cristãos tem lançado luzes para o
exercício de uma pastoral holística, que contemple o homem em todas suas
dimensões. A pessoa de Jesus, a sua paixão e o modo como enfrentou o mal,
mostrou-nos uma nova face de Deus: Deus está com as vítimas do mal, oferecendo
sua amizade e calor.
6. Referências Bibliográficas
AQUINO, T. de. Suma Teológica: Teologia, Deus, Trindade. São Paulo: Edições Loyola, 2001, Volume
1.
ESTRADA, J.
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FREUD,
S. O futuro de uma ilusão. São
Paulo: L&PM, 2010.
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HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. Lisboa: Instituto Piaget, 1987.
PAULO
II, João. Fides et Ratio. São Paulo:
Edições Loyola, 1999.
QUEIRUGA,
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RUBIO,
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cristãs. 4. ed., rev. e ampl. São Paulo: Paulus, 2001.
RUIZ DE LA
PEÑA, J. L. Criação, Graça, Salvação. São Paulo: Loyola, 1998.
____ Teologia
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Paulo: Loyola, 1998.
SANTO
AGOSTINHO. A verdadeira religião e o
cuidado devido aos mortos. São Paulo: Paulus, 2012.
WITTIGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. Rio
de Janeiro: Vozes, 1998.
[1] Disponível em <<
http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2015/11/corpo-do-garoto-thiago-de-7-anos-e-reconhecido-pela-familia-em-mariana.html>>.
Pesquisa feita em 14.nov.2016.
[2] QUEIRUGA, A. T. Repensar o mal na nova situação secular.
In: Perspectiva Teológica, no 33,
2003, p. 309-330 – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.
[3] HEIDEGGER, M. Introdução
à metafísica. Lisboa: Instituto Piaget, 1987, p. 58-59. O filósofo fala do
Ser como uma “névoa evaporizante” “em que nós estamos”.
[4] FREUD, S. O futuro de uma ilusão. São Paulo: L&PM, 2010.
[5] Ver PAULO II,
João. Exigências e tarefas atuais. In:
Fides et Ratio. São Paulo: Edições
Loyola, 1999, p.61-74.
[6] WITTIGENSTEIN, L. Investigações
filosóficas. Rio de Janeiro: Vozes, Coleção
Pensamento Humano, p.27.
[7] A teoria do mal. In: SANTO AGOSTINHO. A verdadeira religião e o cuidado devido aos mortos. São Paulo:
Paulus, Coleção Patrística, 2012, § 21-28.
[8]
Aquino,
T. de. Suma Teológica: Teologia, Deus,
Trindade. São
Paulo: Edições Loyola, 2001, Volume 1, p.138.
[9] GESCHÉ, A. O mal. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 21.
[10] RUBIO, A. G. Unidade na pluralidade: o ser
humano à luz da fé e da reflexão cristãs. 4. Ed., rev. e ampl. São Paulo:
Paulus, 2001, p. 667.
[11] Id. ibid., p. 228-232.
[12] GESCHÉ, A. Id. Ibid.
[13] Id. p.32.
[15] Id. Ibid., p.667.
[16] QUEIRUGA, A. T. Id. Ibid., p. 320.
[18] Id. Ibid., p. 139.
[21] Id. Ibid., p. 85.
[22] ESTRADA, J. A. A impossível teodiceia: a
crise da fé em Deus e o problema do mal. São Paulo: Loyola, p. 380.
[24] Id. Ibid., p. 670.
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