No ano de 1846, Pierre-Joseph Proudhon,
filósofo político e anarquista francês, escreveu um livro no qual criticava o
sistema econômico de sua época. Contemporâneo de Karl Marx, enviou a obra, Sistemas das Contradições Filosóficas ou
Filosofia da Miséria, ao amigo e correspondente. Marx não concordou com a
teoria econômica de Proudhon e dedicou-se a compor outro escrito, A Miséria da Filosofia, editado em 1847.
O título era uma paródia ao subtítulo do trabalho literário do francês. Desde
então a expressão “miséria da filosofia” é usado para designar uma contradição
dentro de um sistema ou teoria e até mesmo para designar as falhas
metodológicas em uma abordagem, seja ela científica, seja ela religiosa.
De igual modo, também podemos comparar a
Teologia da Prosperidade (TP) como a Miséria da Teologia. Não apenas pelo fato
de ser uma teologia cáustica, que corrói os fundamentos epistêmicos da Teologia
Cristã, mas porque depaupera a Teologia, esvaziando sua mensagem e corrompendo
seu significado. Quais, portanto, são as doutrinas cristãs esvaziadas pela TP
que a torna a Miséria da Teologia? Vejamos:
1.
A Doutrina da Revelação. Toda e qualquer religião, seja em seu aspecto
teológico, seja em seu aspecto fenomenológico, se autocompreende por meio de
uma revelação, geralmente atribuída a uma ação
divina e uma recepção humana.
A
teologia cristã não existe sem uma compreensão da Revelação de Deus. Assim,
toda manifestação cristã reflete de alguma forma a teologia da revelação ou uma
compreensão a respeito dela, consciente ou inconscientemente. A confissão de fé,
que se deriva de uma hermenêutica da revelação, por exemplo, se manifesta no
rito, nos elementos que formam o culto, de tal forma que a doutrina pode ser vista
na liturgia e a liturgia apresenta a doutrina. A lex credendi não é separada da lex
orandi.
Desta forma, quando o teólogo da prosperidade anuncia o desejo de
Deus de conceder ao homem a prosperidade, a honra e a riqueza, fala a partir de
uma compreensão da Doutrina da Revelação e se coloca como canal desvelador e
profético.
A autocomunicação que Deus faz de si na Escritura e na história é
reduzida ao imediatismo fugaz da necessidade humana, pois torna-se apenas uma
resposta ao sofrimento humano. A TP reduz a Doutrina da Revelação a um discurso
ideológico que mescla algumas verdades da Escritura com valores mensuráveis na
vida do crente, como a prosperidade econômica. O discurso sobre a Revelação de
Deus é midiático e repetido à exaustão até que se faça a troca simbólica de
entregar a Deus o melhor e, o Senhor, dono do ouro e da prata, “retribuirá
proporcionalmente à oferta”. A TP tem um conceito opaco de Revelação que obriga
o fiel a sacrificar o intelecto para aceitá-lo. Os teólogos da prosperidade, se
estudaram teologia algum dia, podem ser acusados de improbidade ou
desonestidade intelectual pelo fato de corromperem a Teologia da Revelação de
Deus. A polissemia e a polifonia da revelação são reduzidas a um discurso lazarento,
miserável, monossêmico, incapaz de traduzir toda riqueza da revelação de Javé
na história. Os teólogos da prosperidade são assim culpados por reduzir a
espinha dorsal da teologia cristã à miséria de uma teologia reducionista e
manipulável. Essa forma de teologia só pode ser a miséria da teologia.
2.
A Doutrina de Deus.
Outro fundamento teológico reduzido à miséria da teologia é a doutrina de
Deus. A revelação do nome de Deus a
Moisés em Êx 3.13-15 tem elementos do mistério que circunda a manifestação que
Javé faz de si mesmo. O Deus que se mostra, afirma P. Ricouer[1] é
um Deus escondido e a quem pertencem as coisas ocultas. O Senhor se revela por
meio de um nome inominável! “Javé” –
Ele é – não é um nome que define, mas que significa, que significa o gesto da
redenção, afirma Ricouer. A revelação do Eterno é histórica (Deus de Abraão,
Isaque e Jacó), no entanto, está apoiada no mistério que circunda o sentido do
nome.
Se na cultura judaica primitiva conhecer
o nome de um personagem tornava-o disponível ao talante do conhecedor; a
revelação do Nome a Moisés demonstrava que o Senhor não estaria à mercê da
linguagem e disposição de seus adoradores. “Eu Sou” (Ehyéh asher ehyéh) não é um nome que desvela apenas sua natureza e
essência incomunicável, mas que o coloca como o Deus da Redenção do passado, do
presente e do futuro. O que Ele é está oculto na essência do que o Nome
significa.
Há, portanto, um segredo e uma comunicação. A TP, entretanto,
emprega o nome divino e a autocomunicação que o Eterno faz de Si na Escritura e
na história como um amuleto mediante o qual conhecer o Nome é colocá-lo à
vontade do adorador. Javé é reduzido à coisa, ao objeto que se manipula, ao
divo frágil controlado à mercê de alguém. O Nome divino assim empregado pelos
teólogos, pastores e adeptos da TP perde a dialética da comunicação e do
segredo, do amor e do compromisso, da transcendência e da imanência. O Eterno
deixa de ser Deus para se tornar Deus ex machina.
Permita-me o leitor, explicar o sentido
da expressão Deus ex machina, isto é,
“o deus máquina ou mecânico”. Quando determinada ficção criada pelos
teatrólogos gregos estava emaranhada, de difícil resolução, costumava-se descer
inesperadamente um deus por meio de uma máquina até o local da encenação a fim
de resolver de modo mirabolante a trama. O respectivo divo mecânico, chamado deus ex machina, era uma válvula de
escape e solução para o fechamento glorioso do drama. Desde então a expressão é
usada para descrever toda e qualquer solução artificial e inesperada. Neste
aspecto, o pastor e teólogo protestante D. Bonhoeffer fez ácidas contestações
ao “deus figurante” (deus ex machina)
como uma forma de explicação e solução quando nada mais é possível ou não se
acha uma resposta satisfatória para as perguntas que se colocam diante da
Igreja. Afirmava que
Deus não é um tapa-furos; Deus
tem de ser conhecido não apenas nos limites de nossas possibilidades, mas no
centro da vida; Deus quer ser conhecido na vida e não apenas na morte, na saúde
e na força e não apenas no sofrimento, na ação e não apenas no pecado. A razão
disso está na revelação de Deus em Jesus Cristo. Ele é o centro da vida, e de
modo algum “veio para” trazer-nos a resposta para questões não resolvidas. A
partir do centro da vida, certas perguntas até mesmo caem por terra e, da mesma
forma, as respostas a essas perguntas. [2]
A TP faz de Deus
um deus ex machina; um figurante que
desce de seu trono para solucionar o indissolúvel. Um deus levado ao talante de
seus adoradores; dominado, limitado e preso às circunstâncias de quem o clama.
Essa forma de teologia só pode ser a miséria da teologia.
Rejeitemos, em forma de doutrina ou de cântico, como modelo litúrgico e de
comunhão cristã, a TP que nada mais é do que a miséria da teologia e a teologia
da miséria.
[1] Paul ricoeur. Escritos e
conferências 2: hermenêutica. São Paulo: Edições Loyola, 2011, p.168.
[2] Dietrich Bonhoeffer.
Resistência e submissão: cartas e
anotações escritas na prisão. Rio Grande do Sul: Editora Sinodal, p.415-16.
Esdras Costa Bentho é teólogo, pedagogo e Mestrando em Teologia pela PUC-RJ.
3 comentários:
Pr. Esdras, paz do Senhor
No sentido do texto, acho que muitos cristãos da atualidade não têm a mínima noção do que é a relação da divindade com o adorador. A própria prestação do culto em que a divindade é o ser supremo a ser adorador, venerado está perdendo o sentido. A palavra culto já inadequada para muitas reuniões de evangélicos, pois em muitos ajuntamentos não há nada de culto, a divindade é só uma parte do culto manipulável pelos cultuadores de si mesmo.
Por fim, parabéns pelo excelente texto.
Em Cristo.
A paz do Senhor!
Muito sofisticada a sua réplica à Teologia da Prosperidade (lembrei-me de mais uma "miséria", "A miséria da teoria", obra em que o historiador Edward P. Thompson rebate uma história estrutural do filósofo Louis Althusser).
E me chamou a atenção exatamente um ponto dos mais complicados na minha oscilante trajetória cristã na última década permeada por uma incipiente intelectualidade secular (que, por sinal, parecem resolver-se bem em sua vida de cristão e intelectual), aquilo que você bem denominou de "deus ex machina". Sendo um dos principais dilemas que enfrento, sua essência é: se não posso conceber Deus como quem age apenas no limite das minhas possibilidades como compreender Javé, então, em conexão com a liberdade humana? Na verdade o texto me foi de um caráter iluminador e pretendo continuar uma busca que bem relacione um Deus que pode ser vivido plenamente e uma liberdade que constrói "um mundo civil feito pelos homens" (G. Vico).
Que Deus nos abençoe.
Olá Francisco Sulo, obrigado por sua participação. sou solidário ao seu questionamento e tem encontrado em Paul Ricoeur explicações para tal dilema.
Um abraço
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