DÁ INSTRUÇÃO AO SÁBIO, E ELE SE FARÁ MAIS SÁBIO AINDA; ENSINA AO JUSTO, E ELE CRESCERÁ EM PRUDÊNCIA. NÃO REPREENDAS O ESCARNECEDOR, PARA QUE TE NÃO ABORREÇA; REPREENDE O SÁBIO, E ELE TE AMARÁ. (Pv 9.8,9)

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

O Ancião na Bíblia: Exegese e Fundamentos

Subsídio exegético para a lição 9


Considerações gerais. A Bíblia honra o velho, mas não o velhaco. O Senhor ordenou que os anciãos fossem honrados e respeitados: "Diante das cãs [śêbâ] te levantarás, e honrarás a face do velho [zāqēn], e terás temor do teu Deus. Eu sou o Senhor" (Lv 19.32). Um dos maiores símbolos de infelicidade, desventura e declínio nacional para o povo de Israel era um menino opor-se a um ancião. O profeta Isaías usa essa figura para retratar a desgraça espiritual e política da nação: "E o povo será oprimido; um será contra o outro, e cada um, contra o seu próximo; O MENINO SE ATREVERÁ CONTRA O ANCIÃO [zāqēn], e o vil, contra o nobre" (Is 3.5).

O ancião é tão importante em Israel que aparece juntamente com o valente, o soldado, o juiz, o profeta, o conselheiro, o respeitável, etc. (Is 3.2). Embora o contexto de Isaías seja negativo do ponto de vista profético, resguarda-se à respeitabilidade das categorias envolvidas.

De acordo com Jesus, sustentar os pais na velhice era tão importante quanto ofertar (Mc 7.11-13). A responsabilidade de sustentar os pais na velhice era dos filhos e não do templo ou dos oficiais do templo. O Novo Testamento ensina o apreço e consideração pelos anciãos. Timóteo foi proibido por Paulo a repreender asperamente um ancião. Deveria admoestar os idosos como a pais e mães (1 Tm 5.1,2) e, as viúvas, com mais de sessenta anos deveriam ser registradas na lista oficial de viúvas da igreja (vv.9,11). Entretanto, a responsabilidade de cuidar dos pais idosos era dos parentes próximos: "Mas se alguém não tem cuidado dos seus e principalmente dos da sua família, negou a fé e é pior do que o infiel" (v.8).

Ancião no Antigo Testamento. No Antigo Testamento há várias palavras para definir o termo "ancião", "velho", ou "velhice", alguns com matizes teológicos, outros nem tanto. Por conseguinte, pretendo destacar um vocábulo hebraico (zāqēn) e outro aramaico ('ătîd), muito embora façamos referências a outros termos. Cabe aqui, portanto, uma breve distinção: os anciãos como classe e como um estado de maturidade.

Ancião como um estado de maturidade. Zāqēn aparece em inúmeras passagens (Gn 43.27; Lv 19.32; Is 3.2,5) e, figuradamente, algumas vezes é chamada de cãs (Gn 21.7; 42.38; 1 Sm 12.2; Pv 16.31). A estes anciãos justos e tementes a Deus, a Sagrada Escritura promete longevidade feliz e frutífera: "Os que estão plantados na Casa do Senhor florescerão nos átrios do nosso Deus. Na velhice [śêbâ] ainda darão frutos; serão viçosos e florescentes, para anunciarem que o Senhor é reto" (Sl 92.13-15 – ARC).

Observe, professor, o verbo "estar", reforçado pelas figuras "plantar" e "florescer", traduzidos pela ARA por "cheios de seiva" e "verdor". É uma promessa para os anciãos justos, que temem a Deus e, particularmente, vivem na Casa do Senhor. "Plantar", ou "cheio de seiva" é a tradução do termo hebraico dāshēm, vocábulo estudado na lição anterior neste blog (vide) que se refere à prosperidade abundante. "Florescer", ou "verdor", no original, é ra'ănān, literalmente "exuberante", "viçoso" ou "fresco". Procede de rā'an, "vicejar", "ser viçoso", "reverdecer". Este vocábulo é usado em Jó 15.32 designando o infortúnio e a velhice infeliz dos ímpios: "Antes do seu dia ela se consumará; e o seu ramo não reverdecerá" (ARC).

O termo śêbâ, traduzido por "velhice" no Sl 92 [cf. Gn 15.15; 25.8; Jz 8.32; 1 Rs 14.4], procede da raiz śîb, isto é, "ser grisalho". Em 1 Samuel 12.2, o profeta e juiz afirma: "Já envelheci (zāqēn) e encaneci (śîb)", o que significa "já estou velho e meus cabelos gri
salhos". Em Jó 15.10, a relação entre śîb, "cabelos grisalhos" e velhice é patente. No entanto, encontramos nesse texto mais um vocábulo para "velhice". Trata-se de yāshîsh, isto é, "homem muito idoso" (Cf. Jó 12.12; 15.10; 29.8). No Salmo 71.9 o poeta clama ao Senhor dizendo: "Não me rejeites na minha velhice; quando me faltarem as forças, não me desampares" (ARA). Neste verso, "velhice" é a tradução da palavra 'ēt, isto é, "tempo". A tradução da ARC, neste texto, é muito melhor do que da ARA. ARC traduz/interpreta por "Não me rejeites no tempo ['ēt] da velhice". Tanto este vocábulo quanto yôn, "dia", "tempo", "ano", em Jó 15.10 ("mais idoso do que teu pai"), referem-se à longevidade, à velhice que supera a de outros anciãos. Outros termos para velhice são encontrados no Antigo Testamento, e muito embora sejam de raízes distintas das palavras até aqui analisadas, pouco acrescentam ao significado já perlustrado.


Vejamos, inicialmente, o significado aramaico de 'ătîd e posteriormente o hebraico zāqēn.

'Ătîd: o Legislador eterno. O vocábulo aramaico 'ătîd é usado apenas no livro do profeta Daniel (7.9, 13,22) e designa unicamente a Deus. Convencionalmente as Bíblias portuguesas traduzem 'ătîd por "Ancião de Dias" (ARA), "ancião de dias" (ARC) e "Ancião" (NVI/TEB), entretanto, literalmente quer dizer "um avançado em dias". A Septuaginta (LXX), versão grega do original hebraico, traduz 'ătîd por palaios hēmerōn, "Ancião de Dias", conforme as traduções ARA e ARC.

Um termo semelhante, "Cabeça de dias", foi usado na literatura apócrifa (Enoque 47:3) para designá-lo como "a fonte do tempo". Trata-se de uma teofania (manifestação divina) cuja representação era, de acordo com Mesquita, "não propriamente um velho, mas uma pessoa idosa, respeitável e venerável, como cabe a um magistrado."
[1]

O simbolismo reflete a importância do ancião na cultura semita. Seus cabelos alvos refletem seu caráter, sabedoria e idoneidade para executar o juízo e reger o universo, razão pela qual está assentado sobre o trono. Lembremos que, Provérbios 20.29, atribui ao jovem como ornato "a força", mas aos anciãos, "as cãs", ou "cabelos brancos". Este último são símbolos de dignidade, ornato de longevidade, sabedoria, experiência e capacidade para exercer liderança.

Zāqēn: Idoneidade e sabedoria provenientes de uma vida farta de dias. O termo hebraico mais comum para ancião ou velho nas Escrituras Hebraicas é zāqēn; vocábulo que procede do cognato zāqān, cujo significado básico deste último é barba. Em função de os idosos usarem barbas crescidas é que a palavra começou a designar a "velhice", ou "ancião". Este termo, zāqēn, é muito comum nas Escrituras da Antiga Aliança, sendo por diversas vezes traduzido pela Septuaginta (LXX) por presbyteros.

Os anciãos como uma classe. Na ARA, o plural anciãos aparece cerca de 167 vezes enquanto o singular, ancião, nove vezes. Este grupo social hebreu, como afirmamos em nossa obra, A Família no Antigo Testamento, liderava o clã (mishpācha), sendo os líderes ou cabeças das famílias hebréias. Essa categoria social era conhecida pelos sábios conselhos, prudência, vivência e capacidade para julgar situações embaraçosas. Estes são chamados de “anciãos de Israel” (Êx 3.16,18; 12.21; 17.6), “anciãos dos filhos de Israel” (Êx 4.29;), “anciãos do povo” (Êx 19.7; Nm 11.24), “anciãos da congregação” (Lv 4.5), “anciãos da cidade” (Dt 19.12; 21.3). Esta composição social também era comum entre os moabitas e midianitas (Nm 22.7). Os anciãos auxiliavam na resolução de problemas ligados à virgindade (Dt 22.15), homicídios (Dt 19.12; 21.1), in passim. Números 11.25 menciona setenta anciãos que profetizaram quando sobre eles o Espírito do Senhor desceu. Segundo H. Schmidt, o clã, dos quais os anciãos são os líderes, parece incluir um grupo de mil homens com capacidade para guerrear (Mq 5.1; 1 Sm 8.12; 23.23).
[2]

Portanto, os anciãos, como uma classe na pirâmide social hebréia, eram líderes consagrados por Deus para auxiliarem a Moisés na liderança do povo de Israel e administrarem os territórios divididos entre as doze tribos em Canaã, entre outras importantes funções. O uso do termo como uma classe, designa a sabedoria que procede da idade madura.

O caráter dos anciãos encontra-se expresso nas palavras de Jetro, sogro de Moisés: "E tu, dentre todo o povo, procura homens capazes, tementes a Deus, homens de verdade, que aborreçam a avareza; e põe-nos sobre eles por maiorais de mil, maiorais de cem, maiorais de cinqüenta e maiorais de dez; para que julguem este povo em todo o tempo, e seja que todo negócio grave tragam a ti, mas todo negócio pequeno eles o julguem" (Êx 18.21,22 ver Dt 31. 9, 28; 32.7). Os anciãos participavam integralmente da liderança do povo, recebendo para isto autoridade divina. Setenta deles receberam um derramamento sobrenatural do Espírito Santo, dando-lhes, também, funções carismáticas (Nm 11.16-26).

Notas
[1] MESQUITA, A. Neves de. Estudos no livro de Daniel. Rio de Janeiro: JUERP, 1978, p. 55.
[2] SCHMIDT, Werner H. Introduccion al Antiguo Testamento. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1983, p. 49.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

OS DECRETOS DIVINOS E A ORIGEM DO MAL


Terminologia
O termo decreto pulsa, sem conotações teológicas, por toda a Escritura. Neste aspecto é sinônimo de lei ou edito. O sentido primário é de uma determinação escrita ou ordenação, perfazendo também o sentido de desígnio ou vontade superior.

Pelo menos três vocábulos hebraicos são usados com o sentido primário, referindo-se a alguma lei ou edito emanado de uma autoridade qualquer, senão vejamos:
a) Esar. Literalmente "laço". É um termo aramaico usado por sete vezes em Daniel (6.7-9,12,13,15). A ARC traduz o vocábulo por edito real e, a ARA por decreto e a TEB por interdito. Esar no v.8 é uma lei “que se não pode revogar”.

b) Gzerah. Literalmente "coisa decidida". Outro termo aramaico usado por duas vezes em Daniel (4.17,24), com o sentido de uma sentença decretada ou decidida: “este é o decreto do Altíssimo”, ou “isto é o que o Altíssimo decidiu”. Deus na qualidade de Rei de toda a terra, segundo afirma o AT, baixa decretos (Sl 2.7). Assim é dito de um decreto para a chuva (Jó 28.26) e outro para o mar (Pv 8.29), os quais naturalmente, são as leis impingidas na natureza. Geralmente, distingui-se entre decreto e preceito divino. O preceito refere-se aos mandamentos e às leis que Deus estabelece para as Suas criaturas, mandamentos estes que exigem obediência mas que freqüentemente são transgredidos. O decreto, por outro lado, refere-se ao plano eterno, abrangente, imutável e eficaz de Deus, que é levado a efeito na história.
[1]

c) Dath. Literalmente "lei, decisão baixada". Termo hebraico usado por vinte e duas vezes nas Escrituras e que não difere dos sentidos anteriores (Et 2.8; 3.15; 9.1,13,14; Dn 2.9,13,15).

Na língua de Homero, o termo dogma é traduzido por decreto por cinco vezes. Em Lucas 2.1 para referir-se ao “decreto da parte de César Augusto”, em Atos 16.4 a ARA traduz por decisões, enquanto a ARC por “decretos que haviam sido estabelecidos” (ver 17.7). Em Efésios 2.15 é traduzido por ordenança, que naturalmente, subjaz o sentido básico de decreto, visto estar referindo-se a Lei promulgada aos israelitas no Monte Sinai (cf Cl 2.14). Por fim, Colossenses 2.20 usa o verbo no indicativo presente da segunda pessoa do plural “dogmatizesthe”, traduzido por “vos sujeitais a ordenanças”.

O uso destes termos nas Escrituras, excetuando aqueles que se referem a Lei, no entanto, não aparecem com matizes teológicas, ao contrário, para indicar as decisões oficiais dos soberanos, os decretos do concílio de Jerusalém e para indicar a Lei mosaica, nunca para afirmar qualquer plano eterno da Divindade.

No desenvolvimento do nosso estudo, verificaremos que a expressão “decretos de Deus ou decretos divinos” é termo mais teológico do que bíblico, visto que nas Escrituras o vocábulo não estatui qualquer sentido doutrinário importante. Ao usarmos a expressão estamos de acordo com a tradição teológica que usa deliberadamente o termo sem qualquer hesitação.
Terminologia Teológica

Os teólogos costumam definir os decretos de Deus como:

a) A doutrina do Decreto de Deus, é definida pelo Breve Catecismo de Westminster, como:

“o Seu [Deus] eterno propósito, segundo o conselho da Sua vontade, pelo qual, para a Sua própria glória, Ele predestinou tudo o que acontece”.

b) Thiessem refere-se aos decretos de Deus nesses termos:

“ Os decretos são o eterno propósito de Deus. Ele não faz ou altera Seus planos à medida que a história humana vai se desenvolvendo; Ele faz esses planos na eternidade e eles permanecem inalterados. Os decretos são baseados em Seu mui sábio e santo desígnio.”[2]

c) Alfredo Teixeira, teólogo presbiteriano, trata da obra da criação com base nos decretos divinos, afirma:

“ Se um engenheiro não inicia a construção de um edifício sem um projeto em que toda obra é prevista, e o mesmo acontece com todo artista sensato em seus empreendimentos, quanto mais necessário não seria que, na criação do universo, o seu Autor não tivesse um Plano. É inconcebível que Deus iniciasse a obra sem saber o que dela ia sair.” [3]
d) Bancroft, define os decretos de Deus como:

“O conselho de Deus é o plano eterno para a totalidade das coisas, adotado pelo desígnio de Deus e que abrange todos os Seus primitivos propósitos, inclusive todo Seu programa criador e remidor e levando em conta ou aproveitando a livre atuação dos homens.” [4]

e) O teólogo Fred H. Klooster [5], define os decretos de Deus como:

“O “decreto” de Deus é um termo teológico correspondente ao planos abrangente que Deus estabeleceu de modo soberano na eternidade, com relação ao mundo e à sua história.”


f) Segundo Champlin, os decretos divinos, cumprem cinco propósitos específicos:

“ Essa é a expressão usada na teologia para indicar aqueles atos da vontade de Deus que: (1) representam o seu propósito; (2) estavam presentes com ele desde a eternidade passada; (3) são cumpridos por ele dentro do tempo e do contexto humano; (4) determinam o curso da história, coletiva ou individualmente; (5) determinam o destino espiritual dos homens e dos anjos” . [6]

g) O teólogo e pastor assistente da Assembléia de Deus West End, em Richmond, define os decretos de Deus, como:

“Os decretos divinos são o seu plano eterno que, em virtude de suas características, faz parte de um só plano, que é imutável e eterno (Ef 3.11; Tg 1.17). São independentes e não podem ser condicionados de nenhuma maneira (Sl 135.6). Têm a ver com as ações de Deus, e não com a sua natureza (Rm 3.26). Dentro desses decretos, há as ações praticadas por Deus, pelas quais Ele, embora permita que aconteçam, não é responsável. Baseado nessa distinção, torna-se possível concluir que Deus nem é o autor do mal...nem é a causa do pecado.” [7]

h)Segundo o teólogo Lewis Sperry Chafer [8]:

“O termo decreto divino é uma tentativa de reunir em uma única designação aquilo a que as Escrituras se referem por diversas designações: o propósito divino (Ef 1.11), o determinado desígnio (At 2.23), a presciência (1 Pe 1.2 comp. 1.20), a eleição (1 Ts 1.4), a predestinação (Rm 8.30), a vontade divina (Ef 1.11) e o beneplacito divino ( Ef 1.9).
Continua...
Notas
[1] Fred H. KLOSSTER, Decretos de Deus, in Enciclopédia Histórico Teológica da Igreja Crista, ed. W.A. Elwell, p. 400
[2] Henry Clarence THIESSEN, Palestras em Teologia Sistemática, p. 96
[3 Alfredo Borges TEIXEIRA, Dogmática Evangélica, p.98.
[4] E. H. BANCROFT, Teologia Elementar, p.81.
[5] Fred H. KLOSSTER, Decretos de Deus, Enciclopédia Histórico teológica da Igreja Crista, ed. W.A. Elwell, p. 400
[6] R. N. CHAMPLIN & J.M. BENTES, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, VL I, p. 30
[7] Russell E. JOINER, O Deus ünico e Verdadeiro, in: Teologia Sistemática, Stanley M. Horton (ed.), p. 153
[8] Teologia Sistemática, p. 195

"TEOLOGIA COM GRAÇA: TEOLOGANDO COM VOCÊ."

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

A Promessa de um Lar Feliz no Antigo Testamento


Família, Projeto Divino

Em nossa obra A Família no Antigo Testamento: História e Sociologia, descrevemos a família bíblica como "o âmago da estrutura social". Na Tanach, exclusivamente em Berê’shîth (Gênesis), encontramos o princípio judaico-cristão da família no texto que diz: “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma adjutora que esteja como diante dele. Então, o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas e cerrou a carne em seu lugar. E da costela que o Senhor Deus tomou do homem formou uma mulher; e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos e carne da minha carne; esta será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada. Portanto, deixará o varão o seu pai e a sua mãe e apergar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne. E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher; e não se envergonhavam” (Gn 2.18,21-25).

Família, Centro de Comunhão
Deus é quem decidiu criar a família. Esta foi formada para ser um centro de comunhão e cooperação entre os cônjuges. Um núcleo por meio do qual as bênçãos divinas fluiriam e se espalhariam sobre a terra (Gn 1.28). Não era parte do projeto célico que o homem vivesse só, sem ninguém ao seu lado para compartilhar tudo o que era e tudo o que recebeu da parte de Deus, pois o homem sente-se pessoa não apenas pelo que é, mas também quando vê o seu reflexo no outro que lhe é semelhante. Portanto, a sentença divina ecoada nos umbrais eternos expressa o amor e o cuidado celeste para com a vida afetiva do homem. O próprio Deus não estava solitário na eternidade, mas partilhava de incomensurável comunhão com o Filho e o Santo Espírito. Deus é um ser pessoal e sociável às suas criaturas morais. No entanto, contrapondo a natureza divina à humana, concluímos que o intrínseco relacionamento entre a divindade e o ente humano dá-se em níveis transcendentais, metafísicos.

Por conseguinte, faltava ao homem alguém que lhe fosse semelhante, ossos dos seus ossos, carne de sua carne, alguém que se chamasse “varoa” porquanto do “varão” foi formada. Essa correspondência não foi encontrada nos seres irracionais criados, mas na criatura tomada de sua própria carne e essência. A mulher era ao homem o vis-à-vis de sua existência. Seu reflexo. Partida e chegada. O homem e a mulher se identificam mutuamente por compartilharem da mesmíssima imagem divina: “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou” (Gn 1.27). Homem e mulher, portanto, fazem parte do mesmo projeto celífluo. Sentem-se tão necessários à existência do outro quanto dependem individualmente do ar que respiram. Esta interdependência é inerente à formação moral e espiritual do próprio ser. Faz parte do mistério, da teia de encontros e desencontros, de fluxo e refluxo que cercam a união entre homem e mulher. A união conjugal, portanto, antes de ser um contrato jurídico, era um ato de amor, companheirismo e cumplicidade em que as principais necessidades humanas eram plenamente satisfeitas. Homem e mulher se auto-realizavam um no outro.

A Constituição do Núcleo Familiar
A constituição do núcleo familiar a priori foi composta por um homem e uma mulher. Mais tarde, acrescentou-se ao casal os filhos gerados dessa união. A partir do nascimento dos primeiros filhos, a família tornou-se o primeiro sistema social no qual o ser humano é inserido.
A primeira família, formada apenas por duas pessoas, tornou-se numerosa por meio dos filhos que, ao serem gerados, se inseriram no núcleo familiar assumindo diversos papéis dentro do sistema: filho, irmão, neto, primo, etc. A família não foi criada, portanto, como um sistema fechado, mas dinâmico, e, com o passar do tempo, o número de seus membros foi aumentando gradativamente, e destes formando novos núcleos familiares ligados por consangüinidade e afinidade.

Terminologia e Conceito de Família no Antigo Testamento

O hebraico do Antigo Testamento costuma usar três palavras para família: bayît, bêt, mishpāhâ.

Bayît. A primeira delas é bayît, que designa tanto uma “residência”, “templo”, “lar”, a “parte interior de uma casa”, “casa”, quanto também o conceito de “família” ou “os moradores de uma mesma casa”. O sentido de habitação é um dos mais freqüentes usos do termo (Êx 12.7; Lv 25.29; Dt 11.20).

Bêt. Outro vocábulo muito freqüente é bêt, cujo sentido literal é “casa” e ocorre juntamente com outros termos formando uma idéia completa tal qual bêt’ēl (Casa de Deus), bêt lehem (Belém ou “casa de pão”), e assim por diante. O termo bêt designa “pessoas de uma casa”, ou juntamente com ’āb designa “casa do pai”.

Mishpāhiâ. O terceiro vocábulo, mishpāhiâ, literalmente significa “família”, “parentes” ou “clã”. A ênfase está nos laços sangüíneos que existem entre as pessoas de um mesmo círculo. Segundo Harris, o termo “se emprega como subdivisão de um grupo maior, tal qual uma tribo ou nação (Nm 11.10)”.

Portanto, família para o hebreu designava tanto o vínculo consangüíneo existente entre um grupo de pessoas em uma mesma casa quanto o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco.

Das trezentas e sessenta e sete ocasiões em que o termo “família” aparece no Antigo Testamento, cerca de cento e cinqüenta e duas aparecem no livro de Números referindo-se aos descendentes das tribos, isto é, aqueles cujo laço sangüíneo o relaciona a determinada tribo, família ou clã. É o caso, por exemplo, de Números 1.2: “Levantai o censo de toda a congregação dos filhos de Israel, segundo as suas famílias, segundo a casa de seus pais, contando todos os homens, nominalmente, cabeça por cabeça” (ARA).

Temos nesse texto um exemplo do uso de “congregação” (‘ēdâ) para referir-se a “todo o povo de Israel”, “famílias” (mishpāhiâ), para designar o “clã”, como principal unidade social, de tamanho intermediário entre a tribo e a “casa” (bayît) de seus pais. Este último pode ser traduzido por “família”, e refere-se àquela unidade consangüínea menor que habita uma mesma casa.

Um outro aspecto que deve ser notado a respeito dos termos e da composição das antigas famílias bíblicas é que os costumes locais, vez por outra, incluíam os servos ou escravos como integrantes da família. Isto é facilmente observado no termo hebraico shiphâ, que é traduzido por “criada” ou “escrava”, mas uma escrava associada à mishpāhiâ, isto é, ao núcleo familiar. A escrava denominada shiphiâ, segundo Harris, era uma serva que podia ser dada de presente a uma filha quando esta se casasse (Gn 29.24,29). E de acordo com a lei de Nuzi, uma esposa estéril podia entregar sua serva ao marido a fim de ter vicariamente um filho, por meio da serva (Gn 16.2; 30.3,4). Um menino nascido de tal união seria o herdeiro, a menos que a própria esposa mais tarde tivesse um filho.

A junção dos vocábulos bayît, bêt, mishpāhiâ e shiphiâ demonstra que o conceito de família para o hebreu abrangia tanto os parentes próximos, longínquos, quanto os escravos. Desde que houvesse uma relação consangüínea ou de afinidades, já se constituía um membro da unidade familiar.

As famílias, portanto, eram extensas e, após os doze filhos de Jacó, reuniam-se em tribos que seguiam minuciosamente a tradição familiar. Os “pais patriarcais” detinham o poder e o governo soberano sobre o grupo familiar.

Nestes idos patriarcais, viviam em acampamentos comuns emigrando de um canto a outro à busca de pastagem para o rebanho ou de subsistência para a numerosa família: “Fez as suas jornadas do Neguebe até Betel, até ao lugar onde primeiro estivera a sua tenda, entre Betel e Ai. Ló, que ia com Abrão, também tinha rebanhos, gado e tendas” (Gn 13.3,5 – ARA).

Esta conjuntura social possibilitou o contato com várias populações também agricultoras e, vez por outra, a possibilidade de haver intercâmbio comercial e união matrimonial que, dado às características da tradição hebréia, eram geralmente rejeitadas (Gn 34).

Composição da Família hebraica

A extensa família hebréia, portanto, distinguia-se quanto à composição das suas unidades:

’Āb. O pai, do hebraico ’āb, tanto designa o “originador” de uma descendência quanto o “ancestro” ou “líder”. O termo dentro do contexto nômade, seminômade ou da vida sedentária hebréia também se refere a “alguém revestido de autoridade sobre”. O ’āb é o responsável direto pela família, cabendo-lhe todas as decisões sociais, culturais e jurídicas que dizem respeito ao bem-estar do núcleo familiar. Todos são igualmente dependentes dele e, por isso, denomina-se “casa de meu pai”, bêt ’āb , ou bayît ’āb, representando o núcleo familiar básico ou pessoas da mesma casa (Gn 24.38,40; 28.21; 41.51; 46.31). O ’āb, portanto, é o pai de família ou chefe da casa ou do grupo doméstico, quer este grupo seja numeroso quer não.

Mishpāhiâ. O clã ou mishpāhiâ, como é designado no Antigo Testamento, era uma unidade familiar mais ampla do que a anterior. Abrangia várias famílias em uma comunidade geográfica mais ampla. O clã era liderado pelos mais velhos ou “anciãos”, que conseqüentemente eram os cabeças das famílias. Os anciãos, do hebraico zāqēn, faziam parte de uma categoria social entre os hebreus, conhecidos pelos sábios conselhos, prudência, vivência e capacidade para julgar situações embaraçosas. Estes são chamados de “anciãos de Israel” (Êx 3.16,18; 12.21; 17.6), “anciãos dos filhos de Israel” (Êx 4.29;), “anciãos do povo” (Êx 19.7; Nm 11.24), “anciãos da congregação” (Lv 4.5), “anciãos da cidade” (Dt 19.12; 21.3). Esta composição social também era comum entre os moabitas e midianitas (Nm 22.7). Os anciãos auxiliavam na resolução de problemas ligados à virgindade (Dt 22.15), homicídios (Dt 19.12; 21.1), in passim. Números 11.25 menciona setenta anciãos que profetizaram quando sobre eles o Espírito do Senhor desceu. Segundo H. Schmidt, o clã parece incluir um grupo de mil homens com capacidade para guerrear (cf. Mq 5.1; 1 Sm 8.12; 23.23).

Matteh. A tribo, do hebraico matteh, era um conjunto de clãs. O termo original significa, ipsis verbis, “vara”, “bordão” ou “haste”, passando a significar “tribo” em razão de os líderes usarem bastões ou varas como símbolo de autoridade investida. Todas as famílias que compunham uma tribo eram uma comunidade religiosa, econômica e juridicamente ligada pela consangüinidade e afinidades familiares. As responsabilidades, entre outras, incluíam: a defesa militar, a solidariedade entre os seus membros, a educação das crianças conforme a tradição da tribo, o cuidado com a propriedade familiar e a manutenção das riquezas e bens comuns.

Em uma determinada tribo estava a unidade básica do núcleo familiar sob a responsabilidade do ’āb, que por sua vez se subordinava ao mishpāhiâ; a somatória destes compunha o matteh: “Dos filhos de Simeão, as suas gerações, pelas suas famílias, segundo a casa de seus pais...” (Nm 1.22 – ARA). Todos se consideravam filhos de um mesmo ancestral — como por exemplo, um dos doze filhos de Jacó —, do qual recebiam um nome epônimo (Nm 1). O representante de cada matteh era chamado de “cabeça da casa de seu pai” (Nm 1.4), “príncipe da tribo de seu pai” ou “cabeça dos milhares de Israel” (Nm 1.16).

Correndo o risco de perturbar a clareza das informações acima expendidas, creio ser necessário recorrer a dois teóricos sociais para auxiliar-nos na compreensão desse formato social: Durkheim e Weber. O modelo social acima descrito adequa-se ao tipo de solidariedade social proposta por Durkheim: a solidariedade mecânica. Nesta, os indivíduos possuem sua identidade mediante a família, a religião, a tradição e os costumes da tribo. Todos reconhecem e vivem os mesmos valores seguindo a tradição ancestral, do qual a coletividade procede. Uma “família-tronco” perpetua-se em torno do chefe de família pela instituição de um “herdeiro associado”. Os indivíduos nesse modelo social vivem sob a coerção dos fatos sociais. Os fatos sociais, segundo Durkheim: "É toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coação exterior; ou ainda, que é geral no conjunto de uma determinada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais." (As Regras do Método Sociológico, p. 92) .

Para M. Weber, contudo, não é necessário que a ordem social tenha de se opor e se distinguir dos indivíduos, como uma realidade exterior a eles; ao contrário, estas normas se manifestam em cada indivíduo sob forma de motivação. A ação tradicional, uma das quatro formas de ação social proposta por Weber, por exemplo, é motivada pelo costume, tradição, hábito, crenças e valores —, pelos quais o indivíduo age movido pela obediência a eles, em razão de estarem fortemente enraizados na base do ethos tanto em sua vida quanto na do grupo.
A distinção entre um e outro está basicamente no método empregado. Émile Durkheim baseia-se nos métodos positivistas fundamentados em Augusto Comte e Herbert Spencer, enquanto Max Weber fundamenta-se na distinção formulada por Wilhelm Dilthey entre explicar (erklären) e compreender (verstehen), que são as bases da sociologia compreensiva.
No entanto, embora os dois teóricos — e ainda podemos acrescentar o materialismo histórico de Karl Marx — não concordem entre si quanto à coerção dos fatos sociais, as duas explicações acima demonstradas, correndo o risco de uma simplificação exacerbada, auxiliam na compreensão de que seja qual for o grupo social, o indivíduo, seja por motivação seja por coerção, vive sob as bases do ethos compartilhado por todos.

BENTHO, Esdras Costa. A Família no Antigo Testamento: história e sociologia. 3.ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2007.
LÉVI-STRAUSS, C. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982.
HARRIS, R. Laird (et al.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
BENETTI, Santos. Sexualidade e Erotismo na Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 23.
SCHMIDT, Werner H. Introduccion al Antiguo Testamento. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1983, p. 49.
WERBER, M. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília: Editora da UnB, v. 1, 1991,[ pp. 15,16.]

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