Este glorioso capítulo faz uma interseção entre os estados salvífico (vv.1-3) e étnico (vv.11,19) dos efésios com a obra de nosso Senhor Jesus (vv.4-10,13-18). O texto, dividido em duas seções (vv.1-10; 11-22), descreve, assim como o capítulo 1, a “revelação” (ἀποκάλυψιν) de Paulo acerca do “mistério” (μυστήριον) “da dispensação (οἰκοδομίαν) da graça de Deus” (3.1-4). Portanto, essa perícope não se limita aos efésios, mas se estende a todos os que são “morada de Deus no Espírito” (v.22).
I. Da Morte à Vida: O Estado dos Efésios (vv.1-10 [11])
Antes da conversão
1 E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, 2 em que, noutro tempo, andastes, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar, do espírito que, agora, opera nos filhos da desobediência; 3 entre os quais todos nós também, antes, andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os outros também.
Comentário
1-3. E vos vivificou. Esta expressão não consta no texto original [ver 1.1], mas foi extraída provavelmente do contexto do versículo 5. Ainda não consegui identificar a origem dessa glossa. Provavelmente é um caso de elipse ou anacoluto. Deve-se entender que os vv.2,3 são parentéticos, e, que encontramos aqui, um caso comum de digressão. O início do capítulo nas edições gregas é: “Estando vós mortos em ofensas e pecados”, obviamente está unido logicamente ao v. 4: Mas Deus [...]”.
A situação pincelada por Paulo é trágica: mortos espiritualmente em ofensas (παράπτωμα - Mt 6.14, lit. “passo em falso”) e pecados (ἁμαρτίαις - lit. “errar o alvo”). Noutro tempo, refere-se ao estado anterior dos efésios (ver At 19;20). Andastes, o pretérito perfeito concorda com “noutro tempo”. Era uma situação passada. O verbo andar (περιπατέω) era usado em sentido ético pelos judeus [Halakhah – ver Mc 7.5; At 21.21]. Na epístola é repetido em 2.3,10;4.1;5.2,8,15. Os crentes andavam segundo (κατὰ - descreve a norma que rege algo): o curso do mundo, o príncipe das potestades do ar, nos desejos da carne e dos pensamentos. Logo, não eram filhos de Deus, mas “da desobediência e da ira”. Filhos (υἱοῖς) é um hebraísmo para afirmar a natureza, identidade e procedência de alguém.
Depois da conversão
4 Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, 5 estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), 6 e nos ressuscitou juntamente com ele, e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus;
Comentário
4-6. Mas Deus. A conjunção adversativa (δέ) exerce também uma função transicional, pois tanto envolve a mudança de ênfase quanto de estado: da morte para vida, do diabo para Deus, da ira para a graça. Deus é o sujeito das três ações indicadas pelos verbos vivificar, ressuscitar e assentar. No v.5 a morte, ressurreição e ascenso de Cristo são tipos da morte, ressurreição e ascenso do crente. Observe a força dos verbos, aos quais Paulo acrescenta, no grego, o prefixo syn (συν-εξωοποίησεν, ήργειρεν, εκάθισεν). O sujeito é Deus, mas o objeto da ação é dirigido àqueles que estão em Cristo. Lembrar-se que "em" aqui é locativo. Resta-nos apenas adorá-lo por sua ação histórico-redentora. A respeito dos lugares celestiais devemos ler: 1.3; 2.6, 3.10, 6.12.
Propósito da conversão
7 para mostrar nos séculos vindouros as abundantes riquezas da sua graça, pela sua benignidade para conosco em Cristo Jesus.
Comentário
7. Para (ἴνα), “a fim de que”. O propósito de Deus ultrapassa a temporalidade e a compreensão do mistério salvífico pelos salvos: séculos vindouros. As riquezas da graça, a benignidade, a sabedoria e o “mistério desde os séculos, oculto em Deus” (ver. 3.9) são revelados através da ação histórico-salvífico de Deus na Igreja aos incontáveis seres espirituais (3.10) e, por último, no fim-início de todas as coisas.
O meio da conversão
8 Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isso não vem de vós; é dom de Deus. 9 Não vem das obras, para que ninguém se glorie. 10 Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas.
Comentário
8-9. Porque (γὰρ). Esta conjunção explicativa indica uma informação adicional àquilo que já foi dito. Nesta importante perícope temos um dativo de causa: pela graça ou “com base na graça” (τῇ χάριτι). A graça é a causa, “a base de”, ou motivo de nossa salvação. Todavia, através da fé (διὰ πίστεως) expressa o meio pelo qual isso ocorre. A graça de Deus é a base de nossa salvação, e a fé o meio pelo qual a recebemos. A primeira é a base da obra salvífica, mas a segunda, diz respeito à resposta pronta e pessoal do homem ao que Deus preparaou para sua salvação. Uma das dúvidas nesta passagem refere-se à frase: e isso não vem de vós. Refere-se à fé, à graça ou à salvação? O problema está na intrepretação do pronome demonstrativo e isso (τουτο). Neste caso, o pronome (e isso) relaciona-se à salvação, à graça, ou à fé? Sendo o pronome touto neutro no grego e as palavras graça e fé femininas, a melhor aplicação do texto é o “conceito de salvação pela graça mediante a fé”.
II. Da Separação Étnica à Unidade Espiritual em Cristo (11-22)
A situação étnica e espiritual dos efésios
11 Portanto, lembrai-vos de que vós, noutro tempo, éreis gentios na carne e chamados incircuncisão pelos que, na carne, se chamam circuncisão feita pela mão dos homens; 12 que, naquele tempo, estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel e estranhos aos concertos da promessa, não tendo esperança e sem Deus no mundo.
A obra reconciliadora de Cristo
13 Mas, agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto. 14 Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos os povos fez um; e, derribando a parede de separação que estava no meio, 15 na sua carne, desfez a inimizade, isto é, a lei dos mandamentos, que consistia em ordenanças, para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz, 16 e, pela cruz, reconciliar ambos com Deus em um corpo, matando com ela as inimizades. 17 E, vindo, ele evangelizou a paz a vós que estáveis longe e aos que estavam perto; 18 porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito.
A nova situação em Cristo
19 Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos Santos e da família de Deus; 20 edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus Cristo é a principal pedra da esquina; 21 no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para templo santo no Senhor, 22 no qual também vós juntamente sois edificados para morada de Deus no Espírito.