DÁ INSTRUÇÃO AO SÁBIO, E ELE SE FARÁ MAIS SÁBIO AINDA; ENSINA AO JUSTO, E ELE CRESCERÁ EM PRUDÊNCIA. NÃO REPREENDAS O ESCARNECEDOR, PARA QUE TE NÃO ABORREÇA; REPREENDE O SÁBIO, E ELE TE AMARÁ. (Pv 9.8,9)

domingo, 25 de janeiro de 2009

A Prostituição Sagrada no Antigo Testamento


O artista francês Horace de Vernet (1789-1863) na excelente iconografia Judá e Tamar descreveu o fatídico encontro entre o patriarca Judá e sua nora Tamar. Com riquezas de detalhes, Vernet descreve Tamar com as vestes típicas das prostitutas sagradas. Sentada em uma pedra à margem do caminho, com o rosto coberto, e uma das pernas e seios expostos, Tamar sustenta com uma das mãos o véu sobre o rosto, enquanto estende a outra para receber os bens pessoais que garantiriam o pagamento do comércio sexual que se estabelecia. Seu vestido alvo com um lenço azul a enfeitar-lhe os quadris comunicam candura, pureza e a ingenuidade que se contrasta com a sagacidade da amante. Judá, com garbosas vestes, apóia uma das pernas na rocha em que Tamar se assenta. Consta em suas mãos, a entregar à suposta prostituta, o sinete, o cordão e o cajado — símbolos de seu status quo. A expressão facial de Judá denuncia a luxúria e a desconfiança da sagacidade da mulher. A luminosidade da obra aponta para uma estrada cândida que segue em direção ao objetivo do viajante, enquanto uma penumbra cerca os dois amásios tendo ao fundo o camelo do patriarca e o horizonte iluminado. A pouca luz que circunda os amásios são mais do que um detalhe acidental para destacar a peça: descreve a psicologia individual dos envolvidos, que inconscientemente incorporam e consideram como seus as características e valores do outro. As armas de Tamar são a sua sexualidade, feminilidade e capacidade de seduzir, enquanto a astúcia da mesma é demonstrada no papel que representa e no senso de oportunidade: Judá, o viúvo, retira-se para tosquiar as suas ovelhas — ocasião festiva para o criador (1 Sm 25.4,11,36). Viúvo, longe de casa e alegre, tornou-se uma vitima dócil à sedutora.

A Prostituição no Antigo Testamento

Esta cena serve-nos de esteio para descrevermos, a passos estugos, o tema da prostituição no Antigo Testamento. Entre os vários termos hebraicos nas Escrituras que descrevem a prostituição encontramos os vocábulos zānã, lit. “praticar prostituição”, “cometer prostituição”, “prostituta” ou “rameira”, e qādēsh, isto é, “prostituta(o) cultual” ou “hieródulo”. O substantivo qādēsh, segundo o Dicionário Vine (DV), aparece cerca de onze vezes nas Escrituras.

A palavra zānã traz o sentido básico de “relação heterossexual ilícita”, e emprega-se freqüentemente para se referir a uma prostituta. Muito embora Êxodo 34.16 e Números 25.1 usem o termo no gênero masculino — no primeiro, o uso é figurado, enquanto no segundo é coletivo —, o emprego freqüentemente aludi a uma mulher cujo ofício ou ocupação é a prostituição.

Em Deuteronômio 23.18, a prostituição masculina ou o prostituto é chamado de “cão” (ARC) e “sodomita” (ARA). Os dois termos são a tradução do vocábulo keleb, e se referem ao prostituto cultual, designado ipsis litteris por “cão” ou “cachorro”, mas em sentido metafórico por “prostituto”, “impuro”. Em Gênesis 34.31, Tamar é comparada a uma prostituta ou zānã, mas também é chamada de qādēsh, isto é, “prostituta cultual” (ARA) em 38.21,22.

Aspectos Gerais da Prostituição no Antigo Testamento

1. O comércio sexual entre uma prostituta e seu cliente envolvia um valor pecuniário estabelecido entre a mulher e o seu amante (Gn 31.16). O salário de uma prostituta, do hebraico ’etnam, lit. “paga de prostituta”, e do keleb eram abomináveis para Yahweh e, portanto, proibido o recebimento do mesmo na Casa do Senhor (Dt 23.18).

2. A prostituição secular e sagrada em Israel era proibida: “Não haverá rameira dentre as filhas de Israel; nem haverá sodomita dentre os filhos de Israel” (Dt 23.17). O termo traduzido por “rameira” é qādēsh e, como acima foi dito, refere-se à prostituição sagrada. Esta segunda forma de prostituição era muito praticada entre os canaanitas e abominada tanto na esfera religiosa quanto na moral pelos israelitas. Textos proféticos como Jeremias 2, Ezequiel 23 e Oséias 1—3; 14.14 e os historiográficos como Números 25.1s; 1 Reis 14.24; 15.12; 22.47 e 2 Reis 23.7 não apenas condenam essas praticas sexuais ilícitas e repugnantes quanto demonstram a inclinação dos judeus a elas.

3. Os sacerdotes eram proibidos de se casarem com mulheres viúvas, repudiadas e prostitutas: “Não tomarão mulher prostituta ou infame, nem tomarão mulher repudiada de seu marido, pois o sacerdote santo é a seu Deus” ( Lv 21.7 cf. v. 14).

4. Os serviços sexuais das prostitutas seculares eram procurados freqüentemente pelos seus amantes (Jz 16.1).

5. As prostitutas costumavam se expor em lugares públicos (Gn 38.14), trajavam-se e adornavam-se de modo que fossem reconhecidas (Gn 38.14; Pv 7.10) e, segundo o Gênesis 38.15, cobriam os rostos com um véu.

6. As prostitutas seculares, ao que parece, de acordo com 1 Reis 3.16-28, tinham por hábito morarem juntas, talvez não mais do que duas pessoas em uma casa (v. 17), mas são tantas as variáveis que isso não é conclusivo. Não eram casadas, talvez viúvas, repudiadas ou escravas estrangeiras manumissas. Segundo Provérbios 2.17, é possível relacionar a prostituição às mulheres divorciadas ou viúvas que, para se auto-sustentarem, comercializavam o corpo. Pode ser que se trate também de uma mulher que abandonou o seu marido e se ocupa do comércio sexual. Se uma das duas prostitutas anônimas do texto era divorciada ou viúva, talvez se explique a razão pela qual uma delas ou as duas possuem uma residência. A prostituta mencionada em Provérbios 2.16-19 possui uma casa, mas esta, segundo o sábio hebreu, “se inclina para a morte” (v. 18), pois o favor do Senhor não está mais sobre ela (v. 17).

7. Possuíam seus bens particulares, talvez como resultado de seu ofício. Raabe, por exemplo, é uma meretriz estrangeira que possui uma casa junto ao muro da cidade (Js 2.15), não tem esposo e demonstra ser protetora de toda a sua família (v. 13). Ela é arguta, inteligente e reconhece a soberania divina (vv. 10-12).

8. Embora as prostitutas sejam socialmente inferiores em comparação às outras mulheres de Israel, eram suportadas e admitidas na sociedade hebraica a ponto de duas delas requisitarem uma audiência com o rei Salomão (1 Rs 3.16-28).

9. Há uma intrigante conexão entre os atos de Tamar, as duas prostitutas anônimas de 1 Reis e Raabe. As três possuem um forte senso de preservação de suas famílias, pois colocam a integridade de sua parentela acima da segurança pessoal. Tamar corre o risco de ser queimada; as duas prostitutas anônimas, de serem punidas pelo rei; e Raabe, de ser castigada ou morta por trair o seu povo.

10. Os sábios hebreus afirmavam que a prostituta tem um astuto coração (Pv 7.10), que ela seduz os seus clientes pelo seu falar suave (Pv 2.16). Ela abandona o seu marido e se esquece da aliança com Deus (Pv 2.17). É contenciosa (Pv 7.11) e anda de lugar a lugar procurando clientes (Pv 7.12). É uma cova profunda (Pv 23.27) e por causa dela alguns homens empobrecem (Pv 5.9,10). Ela é caçadora feroz (Pv 7.12), impudente e atrevida (Pv 7.13), etc.

A Prostituição Sagrada na Mesopotâmia

Como já definimos, a prostituição feminina no mundo bíblico distinguia-se em profana ou secular e sagrada ou cultual. A prostituta sagrada era chamada de qādēsh pelos judeus e hieródula pelos gregos. O termo grego provavelmente esteja relacionado ao lexema hieros, que se traduz por “separado para a deidade”, “sagrado”, procedente da mesma raiz que origina o termo hiereus, isto é, “sacerdote”. O nominativo feminino doulē, que se traduz por “escrava”, forma a parte final do vocábulo hieródula. A hieródula ou qādēsh, portanto, pode ser considerada uma mulher que servia sexualmente aos adoradores de uma determinada divindade. Por estar inteiramente relacionada ao serviço religioso ou templário, era considerada uma prostituta sagrada ou a meretriz separada para o serviço sexual no templo.

As meretrizes sagradas eram sacerdotisas que estavam relacionadas aos cultos da fertilidade e aos deuses e deusas pagãs da procriação, do amor e da fertilidade. Vários achados arqueológicos comprovam a existência de inúmeras divindades femininas que eram adoradas nas festas da fertilidade. Entre tantas se encontra Inana-Ištar, deusa do amor e do comportamento sexual de cujos rituais de adoração constavam o transexualismo, o travestismo e o homossexualismo de ambos os sexos. Em um bloco de pedra do período sumério, Inana-Ištar é representada junto a genitais masculinos. Tabuinhas de barro com inscrições cuneiformes, conhecidas como os Cilindros de Gudea, descrevem histórias mitológicas da deusa, denominando-a como “Rainha do Céu e da Terra”, “Estrela da Manhã”. Um dos poemas dedicados à deusa entoa:


Nobre Rainha, quando entras na estrebaria
Inana, a estrebaria rejubila contigo
Hieródula, quando entras no aprisco
A estrebaria rejubila-se contigo.
[1]

Continua...

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Para saber mais:

BENTHO, Esdras C. A família no Antigo Testamento: história e sociologia. 3.ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2008.

Notas

[1] Kramer, Sacred Marriage Rite, p. 101, apud QUALLS-CORBERTT, Nancy. A Prostituta Sagrada: A Face Eterna do Feminino. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, Coleção Amor e Psique, p. 40.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Gálatas: a Epístola da Liberdade Cristã (cap.3)



Exórdio
No capítulo 3 da Epístola aos Gálatas, Paulo prossegue com os argumentos favoráveis ao genuíno (1) evangelho de Cristo, e ao seu apostolado. Todavia, nos capítulos 1 e 2, os defendera com argumentos históricos e autobiográficos, agora com argumentos doutrinários e teológicos. Nos capítulos antecedentes, o testemunho e a experiência de Paulo no evangelho provam à origem divina e a veracidade de sua pregação e apostolado. Neste capítulo, Paulo desdobrará a proposição dos versículos 18-21 do capítulo 2, a fim de provar teologicamente a veracidade e autenticidade do evangelho e da fé salvífica em Cristo.

Tema

A defesa essencial da doutrina paulina neste capítulo é: a fé em Cristo constitui a única via histórica capaz de conduzir o homem à salvação (vv.6-29). Nestas perícopes Paulo prova a doutrina da justificação pela fé com base nos seguintes argumentos:


a) No exemplo da justificação de Abraão (vv.6-14);

b) Na natureza e características da Lei (vv. 15-22);

c) No testemunho do próprio Antigo Testamento (vv.23-25);

d) Na estabilidade do pacto abraâmico (vv.26-29).


Fontes da Argumentação

Na Argumentação Teológica desta seção, Paulo recorre à autoridade histórica e doutrinária das Escrituras Sagradas do Antigo Testamento. Sua apologia demonstra que alguns desses textos estavam no ardor da exegese e polemia entre os gálatas, são eles: v. 6 – Gn 15.6; vv. 7,8, 16 – Gn 12.2,3,7; v.10 – Dt 27.26 (cf. os vv.12,13,16; 4.22,23,27,30). Enquanto os gálatas interpretavam a Cristo a partir do Antigo Testamento; Paulo interpretava o Antigo Testamento a partir de Cristo (interpretação cristológica – cf. Lc 24.44-46).


Estrutura

1. Primeira Prova: A experiência pentecostal dos gálatas (vv.1-5);

2. Segunda Prova: A experiência fidedigna de Abrão (vv.6-14);

3. Terceira Prova: A irrevogabilidade pactual da Lei (vv.15-22);

4. Quarta Prova: O caráter didático e condutor da Lei (vv.23-29).


Conteúdo Doutrinário

Na exposição do capítulo, Paulo destaca sete doutrinas basilares da fé cristã, a saber: 1) A justificação pela fé (vv.3,6,8,11,21,24); 2) A bênção divina pela fé (vv.8,9,14); 3) A irrevogável e gratuita herança do crente (vv.18,29); 4) A filiação divina (v.26,27); 5) O dom do Espírito (vv.2,3,5,14); 6) A vida pela fé (vv.11,12,21); 7) A queda da barreira étnica, social, histórica e religiosa em Cristo (v.28).


Exposição

Paulo inicia o primeiro argumento com uma expressão grave: “Ó insensatos gálatas! Quem vos fascinou para não obedecerdes à verdade” (v.1). Esta invectiva interjetiva, mais do que uma expressão retórica, demonstra o quanto Paulo estava admirado de os crentes gálatas terem passado do “evangelho da graça” para um “evangelho de natureza diferente” (1.6). O termo “insensato” (2) literalmente quer dizer “descabeçados”, “desajuizado”. Em sua verve, o apóstolo emprega um termo raro nas páginas do Novo Testamento, “fascinou” (3), isto é, “enfeitiçou” (NVI). Embora “Jesus Cristo crucificado” fosse apresentado poderosamente aos gálatas (v.5), eles estavam sendo dissuadidos tanto da verdade cognitiva do evangelho como da experiência pneumatológica do Espírito (vv.3-5).


Nos versículos 6-29, Paulo apresenta aos crentes gálatas os fundamentos doutrinários de seu argumento principal: a fé em Cristo constitui a única via histórica capaz de conduzir o homem à salvação (vv.6-14). Na seção dos vv.15-22, Paulo responde a verdadeira função da Lei:


a) A Lei foi acrescentada à promessa por causa da transgressão (v.19);

b) A Lei foi dada aos homens para convencê-los da necessidade de um Salvador (vv.19,20);

c) A Lei foi planejada como aio para levar o homem a Cristo (v.24).


1. Contrário ao “outro evangelho” ( heteron euaggelion). Paulo chama também de “evangelho segundo os homens” (euaggelion kata anthropon) – Gl 1.11.
2.
No grego, anoētoi é vocativo plural do adjetivo anoētos, isto é, “tolo”.
3.
No grego ebaskanen está no 1º.aoristo indicativo ativo de baskaíno.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Josué Assume a Liderança de Israel


Deus encoraja o líder (1)

Exórdio
O capítulo 1 está dividido em dois parágrafos principais (vv.1-11; 12-18). Os versículos 10 e 11, que formam um novo parágrafo na ARC, são apenas um intermezzo que introduz o parágrafo segundo.
Tratam da ordem de Josué aos príncipes do povo para prepararem o acampamento para atravessar o Jordão. A primeira seção trata da vocação de Josué (vv.1-11), enquanto a segunda, dos preparativos para atravessar o Jordão (vv.12-18).

Comentário
O texto hebraico principia com um advérbio de tempo 'achar, isto é, "posteriormente", "depois". A narração situa a morte de Moisés (Dt 34) à vocação de Josué (Js 1): "depois da morte de Moisés [...] que o Senhor falou a Josué". Esta descrição põe em relevo os dois líderes e protagonistas da história judaica pré-Canaã: Moisés, líder do povo e personagem principal dos livros de Êxodo a Deuteronômio; e, Josué, primeiro líder do povo judaico após a morte do eminente Moisés.

Embora Moisés seja considerado pela tradição judaico-cristã, profeta e líder de Israel, é chamado por Deus tão somente de 'ebed, "escravo" ou "servo": "Moisés, meu 'ebed, é morto" (v.2). Todavia, esse era o título daqueles que alcançaram diante de Deus aprovação pela sua obediência e fidelidade irrestrita ao Senhor. Para a congregação de Israel, o 'ebed Yahweh era o representante teocrático entre eles. Suas palavras são as palavras de Yahweh; Seu governo é o governo de Yahweh.

O preâmbulo evidencia duas particularidades de Josué:

a) Josué servo ou discípulo de Moisés (v.1). Antes servira a Moisés com fidelidade (Êx 24.13; 33.11), agora é o momento de ser elevado à categoria de 'ebed Yahweh. Josué não será mais conhecido como mešārēt Mōsheh, isto é, o “servidor de Moisés”, mas 'ebed Yahweh. Há uma estreita relação entre os termos 'ebed e mešārēt, mas nestes versículos são usados para distinguir o relacionamento de Josué com Moisés e de Moisés com o Senhor Deus.
O susbtantivo 'ebed sobrepõe-se ao termo mešārēt não tanto pelo seu valor semântico, mas pelo sentido lírico que o literato dá ao vocábulo. O relacionamento de Josué para com Moisés não é semelhante ao relacionamento de Moisés com Deus. Somente depois de tornar-se 'ebed Yahweh é que Josué estaria apto para atravessar o rio Jordão com todo o povo de Israel. Primeiro, a comissão, depois a missão. Infelizmente, alguns querem executar a missão sem primeiro serem comissionado por Deus.

b) Josué é o novo profeta de Israel – o Senhor fala a Josué, assim como falava com Moisés. Na condição de "servo de Deus", no lugar de Moisés, Josué também assume a responsabilidade de ouvir a vontade de Deus e transmiti-la ao povo de Israel, na qualidade de servo e na condição de profeta de Deus. Assim, Josué à semelhança de Moisés, recebe do Senhor graça e misericórdia para estar diante do Eterno. Esta nova posição não era apenas natural diante de todo o povo, mas também espiritual, diante do próprio Deus. Se esta é a condição do ‘ebed, imagine a grandeza daqueles que em vez de δούλος (doulos), servos, escravos, são chamados de φίλους (philos), amigos íntimos (Jo 15.15). Josué foi alçado ao nível da intimidade.

Nesta vocação Deus anima a Josué para a árdua tarefa de conduzir o povo à conquista de Canaã, “dispõe-te”, do hebraico qûm, literalmente quer dizer “ergue-te”, “fique em pé”. Embora não esteja explícita a forma como Deus falou com Josué, sabemos que, no mínimo, foi através de uma teofania audível. O imperativo "levanta-te", neste episódio, talvez seja uma sinédoque. É possível que Josué estivesse ouvindo ao Senhor de forma reverente, com o corpo inclinado, como era costume, mas isso não se pode afirmar categoricamente, pois o oposto também é verossímil em outras partes do próprio livro. Todavia, o imperativo categórico pode ser entendido tanto como uma ordem expressa para "levantar" o acampamento rumo à Canaã, como também referir-se à postura física de Josué. Prefiro entender uma relação estreita entre essas duas possibilidades, como um oráculo por ação: levantando-se Josué, o povo "levanta" o acampamento e segue sua marcha triunfante, como ocorre em 3.1: "Levantou-se, pois, Josué de madrugada, e partiram de Sitim". O versículo 2 parece corroborar com nossa interpretação: "passa este Jordão, tu e todo este povo". Talvez Josué estava prostrado no momento em que o Senhor falava com ele. O mesmo vocábulo é usado na forma imperativa em 3.6 “levantai a arca”. Josué recebeu sua vocação e missão no instante em que estava prostrado diante do Senhor. Prostrado diante do Senhor é a melhor posição para marchar e seguir em frente.

É nesta simples, mas significativa posição, que o Senhor faz promessas ao seu ‘ebed: “Todo lugar que pisar a plante do vosso pé, vo-lo tenho dado” (v;4). Expliquei com minúcias o hebraísmo “pé” em nossas duas obras, Hermenêutica e a Família no Antigo Testamento. Aqui, o sentido do hebraísmo, como ocorre em muitas outras passagens, é de posse, de vitória.

Por esta razão: “Ninguém te poderá resistir” (v.5). No original, “resistir” é yātsab, ou seja, “posicionar-se contra”; “ficar oposto a”, por extensão, “opor-se”, “oprimir”. Em Números 22.22, o termo é usado para descrever o Anjo do Senhor que se “pôs no caminho contra Balaão”, ou como em 1 Samuel 17.16, a atitude soberba e presunçosa de Golias que se colocava contra o exército de Israel. Nenhum inimigo canaanita permaneceria diante de Josué e seu exército.

Aos ouvidos do grande líder, a promessa divina soava como uma sinfonia beethoviana: “Não te deixarei”. Do hebraico rāpâ, o verbo “deixar” é ipsis verbis “afundar”, “deixar cair”, “desanimar”. Enquanto Josué se erguia, o Eterno lhe falava: “Não te deixarei afundar, desanimar, cair”. A Septuaginta (LXX) traduziu a expressão por “Eu não te deixarei em apuros”. “Nem te desampararei”, do hebraico ‘āzab, “desamparar” é “abandonar”, “deixar desolado”.

O verbo hebraico no grau ativo atesta a segurança com a qual o Senhor falava e Josué ouvia. Deus jamais o abandonaria; Josué jamais estaria desolado. Apesar da incompreensão do povo, o Senhor estaria com ele em todas as horas e momentos. Mas a promessa de Deus ao líder também exige força, determinação e vontade: “Sê forte” (v.6). No hebraico, chāzāq além do sentido de “forte” quer dizer “esforçar-se”, como em 23.6, mas também “endurecido”, “severo”. Provavelmente a referência é a “ser forte em combate”, “demonstrar coragem”, enquanto o coração de outros se derretem, portanto, “Sê forte e inflexível”.

“Sê...corajoso”,
oriundo da raiz ‘āmēts, quer dizer “ser valente”, “ser duro”, “ser alerta”. A LXX traduz por “Comporta-te como homem”. O termo hebraico 'āmēts, ocorre 117 vezes em todo o Antigo Testamento, sendo repetido 4 vezes por Deus no livro de Josué, referindo-se ao próprio protagonista da história da conquista. Moisés emprega a palavra duas vezes ao seu ajudante (Dt 31.7,23). O termo descreve o quanto a tarefa de conduzir o povo à conquista iria exigir do caráter e das aptidões de guerra do novo líder (v.6). Uma das formas hebraicas deste verbo significa “mostrar força”, “mostrar-se superior a”. Josué precisava, como servo do Altíssimo, inspirar os seus soldados através de seu exemplo de coragem, audácia, individualidade e vitória. A vitória estava garantida, mas era necessário entrar nas chamas da batalha!

"Assim como fui com Moisés, assim serei contigo; não te deixarei, nem te desampararei"; "Sê forte e mui corajoso..." (v.7). Todavia, a perícope não salienta a coragem para a guerra somente, mas "Sê forte e mui corajoso para teres o cuidado de fazer segundo toda a lei que meu servo Moisés de ordenou; dela não te desvies, nem para a direita nem para a esquerda, para que sejas bem-sucedido por onde quer que andares" (v.7). Perceba, ser valoroso não para a contenda, discórdia, guerra contra a "carne e sangue", mas para cumprir os mandamentos divinos!
Uma liderança eficaz precisa estar disposta a cumprir os mandamentos divinos. O compromisso do líder Josué, primeiramente, é com Deus e com a Torah. Ele precisa cumprir, como servo obediente, os mandamentos divinos: “para que sejas bem-sucedido”.

Vejamos se consigo descrever adequadamente o sentido do termo hebraico śākal, traduzido por “bem-sucedido”. Embora seja uma boa tradução do termo hebraico, há um jogo semântico neste vocábulo. Ele tanto pode significar “para que sejas sábio”, como também “para que sejas próspero”, ou ainda “para que ajas sabiamente”. Cabe ao tradutor escolher qual dessas traduções relaciona-se melhor ao contexto literário. A ARC traduz por “para que prudentemente te conduzas”, tradução seguida com ligeira modificação pela Bíblia Hebraica. O sentido mais estrito de śākal é “agir com a inteligência e sabedoria”. Louis Goldberg, no Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento (p.1478), afirma que este “vocábulo designa o processo de pensar como uma disposição complexa de pensamentos que resultam numa abordagem sábia e bastante prática do bom senso. Outra conseqüência é a ênfase no ser bem-sucedido”.

Preparativos para atravessar o Jordão (vv.12-18)

Os preparativos para atravessar o Jordão, embora estejam mais explícitos na segunda seção, fora antecipado na comissão e missão de Josué nos versículos anteriores. Especificamente o versículo 2 ordena: "passa este Jordão, tu e todo este povo". "Passar o Jordão" na época das enchentes era um desafio, uma preocupação. O povo de Israel, acampados próximos ao Jordão, provavelmente aguardava cessar o período das cheias do rio para seguir à marcha. Os povos do outro lado do Jordão estavam despreocupados com esses beduínos, jamais imaginariam que uma trupe de fugitivos, mulheres e crianças, se aventurariam atravessar o rio Jordão nesse tempo.

Os preparativos à travessia do Jordão iniciam com duas ordens diretas de Josué: uma aos príncipes para que ordenem ao povo a tomarem todas as providências necessárias para a travessia do Jordão; e outra aos rubenitas, gaditas e a meia tribo de Manassés, a fim de que auxiliem as outras tribos na conquista dos territórios a elas prometidas. Essas tribos, que ficavam ao leste do Jordão garantiriam aos seus irmãos, por meio de seus guerreiros, a conquista de outros territórios.

Recomendações finais
Estimado professor, leia o primeiro capítulo do livro de Josué até que tenha plena compreensão do seu conteúdo. Perceba as notas geográficas (vv. 2, 4, 11, 14,15), patronímicas (v.12), exortativas (vv.5-9,18), e temporais (v.11). Observe a tensão entre passado (vv. 1,2,5,13-15), presente (v.16), e futuro (vv.17,18). Veja que no primeiro parágrafo (vv.1-9), Deus fala com Josué, mas no segundo (vv.10-18), Josué fala com o povo. Note o pronome na primeira pessoa "teu Deus" (vv. 9,17), em contraste com o possessivo na segunda pessoa "vosso Deus" (vv.10,13,15). Verifique o emprego do nome divino Yahweh nos vv.1,13,15, e depois o mesmo nome composto, Yahweh 'Ĕlōheka, nos vv.9,17 (Dt 16.1). Não se esqueça do contexto histórico e literário descritos nos livros de Nm e Dt e, de fazer uma aplicação devocional deste precioso capítulo. Deus o abençoe.

TEOLOGIA & GRAÇA: TEOLOGANDO COM VOCÊ!



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