DÁ INSTRUÇÃO AO SÁBIO, E ELE SE FARÁ MAIS SÁBIO AINDA; ENSINA AO JUSTO, E ELE CRESCERÁ EM PRUDÊNCIA. NÃO REPREENDAS O ESCARNECEDOR, PARA QUE TE NÃO ABORREÇA; REPREENDE O SÁBIO, E ELE TE AMARÁ. (Pv 9.8,9)

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Teologia e Novos Paradigmas: Desafios ao pentecostalismo contemporâneo



Todo e qualquer conhecimento ou teoria explicativa da realidade, seja no passado, seja no presente, quer seus proponentes estejam cônscios disso ou não, está fincado de um modo ou de outro em algum paradigma. Lembremos que o Cristianismo é uma religião histórica, assim como a fé cristã é uma fé inculturada. Desde sua gênese a fé cristã fincou-se em seu contexto cultural, explicando-lhe sob os fundamentos da revelação e dando vividamente a fé sentido sincrônico, contextualizado e inculturado. 

A linguagem da Escritura é humana, teológica e socialmente condicionada às estruturas da língua, do contexto histórico-social, e à hermenêutica de sua época. A inspiração é divina, mas a transmissão da verdade é inculturada. A explicação dos mistérios do Reino de Deus, por exemplo, é feita por meio de elementos culturais (rede, semente, fermento, mostarda) inteligíveis ao mais simples camponês. 

A própria comunidade cristã do primeiro século enfrentou o desafio de configurar a fé ao contexto helênico, e de encontrar nas diversas culturas elementos que pudessem ser reinterpretados sob a ótica da fé cristã (At 17. 15s). Os matizes socioculturais do judaísmo, mediante os quais a iniciativa salvífica de Javé foi experimentada e interpretada, foram adaptados, condicionados e até substituídos pelos missionários entre os gentios. A inculturação da fé e o anúncio da ação salvífica de Deus em contextos diferentes do horizonte interpretativo dos primeiros missionários foram desafios sempre presentes no Cristianismo. 

A recepção da fé cristã não esteve apenas condicionada aos elementos da cultura daqueles que a anunciaram como também dos que a receberam (At 14. 8s). Assim, ao comunicar a fé no contexto heleno-latino, os cristãos do primeiro século não empregaram tão somente o horizonte histórico do judaísmo, mas as categorias ontológicas dos gregos, trazendo, consequentemente, mudanças na linguagem querigmática ao substituir o primeiro pelo segundo.

Nos primeiros catorze séculos da era cristã, os teólogos cristãos encontravam na teoria geocêntrica de Cláudio Ptolomeu uma justificativa lógica e contemporânea para admitirem a literalidade do relato de Josué 10.12-14. Tempos depois, com a ascensão da teoria heliocêntrica de Nicolau Corpênico (1473-1543), já não era mais possível aceitar o geocentrismo, mas explicar a perícope à luz do novo paradigma que se desenvolvia. Francis Bacon (1561-1626) apesar de abandonar o raciocínio silogístico de Aristóteles e desenvolver o raciocínio indutivo, estava convencido de que o número dos planetas era sete. Quão distintas são as concepções científicas copernicanas e baconianas das admitidas hoje pela física e astronomia! Isto lembra-nos da urgência de reconsiderarmos, à medida que a sociedade avança, os fundamentos epistemológicos sob os quais baseamos as teorias, quer científicas, quer teológicas.

Em especial, dois pensadores cristãos desafiam os teólogos contemporâneos a repensarem a linguagem teológica contemporânea. O primeiro deles, A. T. Queiruga propõe à Teologia de nosso tempo uma releitura global da Tradição e da Bíblia, recuperando a riqueza de sua experiência e de sua capacidade de suscitação maiêutica. Preocupado com os novos paradigmas das ciências modernas e com as respostas obsoletas da teologia, o teólogo sugere mais do que uma renovação e atualização do vocabulário teológico, deixando assim intactos os esquemas de fundo. 

Para Queiruga é necessário retraduzir o conjunto da teologia dentro do novo mundo criado a partir da ruptura da Modernidade, uma vez que os pressupostos metodológicos e as grandes categorias da teologia estiveram fincados durante muito tempo na época pré-moderna. As proposições teológicas fundavam-se nas premissas aristotélicas, tomistas, e no dualismo e dúvida cartesianas – apesar deste último reconhecer as mudanças de seu tempo e propor mudanças paradigmáticas. A crise no cristianismo, atesta o teólogo, deve-se fundamentalmente ao desajuste produzido por essa derrocada teórica e sua incapacidade de responder dialogicamente aos problemas elencados pela nova situação. A fé tornou-se inadequada e antiquada ao novo contexto que a circundava. Torna-se, portanto, necessário alocar a teologia na nova situação criada pela entrada na Modernidade. A crise da teologia contemporânea, segundo o autor, consiste exatamente em reconhecer e responder aos novos reclamos que a Modernidade impõe. Isto posto, é ingente necessário que os teólogos reflitam que: 
  • a relação com o objeto da teologia mudou; 
  • a consciência dessa relação mudou; 
  • é necessário construir uma nova relação, e elaborar conscientemente a teologia no seio de um novo paradigma. 


No bojo dos novos paradigmas, a Modernidade trouxe duas dimensões da vida humana que é inútil combatê-las, cabendo-nos o compromisso de redirecioná-las: a autonomia e historicidade; uma nova objetividade e subjetividade religiosa. Queiruga propõe assim cinco fundamentos para compreender a proposta da renovação da linguagem teológica:  
  • Um paradigma não pode ser julgado a partir do outro; 
  • Não se deve misturar elementos de paradigmas diferentes; 
  • Atenção para a consequência do discurso; 
  • Um verdadeiro pensar dentro do novo paradigma; 
  • Recuperação crítica do muito que permaneceu impensado, pendente ou reprimido na tradição.


O segundo teólogo que destaco é H. Küng. Este teólogo apresenta apropriadamente o paralelismo das mudanças de paradigmas nas ciências e, consequentemente, na teologia. Fundamentado na obra clássica de Thomas S. Khun, A estrutura das Revoluções Científicas, o autor desenvolve a argumentação de que ao se mudar o paradigma explicativo das ciências em determinada época necessariamente altera-se a teologia daquele período específico. 

Todavia, assim como nas ciências, o novo é resistido e rechaçado na teologia pelos representantes dos postulados tradicionais, em processo de superação. O autor procura provar que apesar de haver diferenças metodológicas entre as ciências naturais e as ciências do espírito (Geisteswisseschaften), é válida a aproximação epistemológica e a comparação paradigmática entre a teologia e as ciências naturais. 

Para provar sua assertiva define os macros, meso e microparadigmas nas ciências e os compara igualmente à teologia. Assim como, ao tratar do surgimento do novo, descreve cinco pistas de reflexão e analogia entre as duas ciências: 
  • Autoridade da obra e do autor e dos conhecimentos acumulados;
  • Crise do modelo anterior; 
  • Aparecimento de um novo paradigma; 
  • Resistência e conversão ao novo paradigma; 
  • Assimilação do novo pelo antigo, substituição ou continuidade paralela do antigo com o novo, especificamente, na teologia.

As dificuldades de a ciência teológica substituir um paradigma hermenêutico por outro está intrinsecamente relacionado às metanarrativas ainda estudadas e empregadas para a explicação da realidade. E, conforme o autor, há diferenças fundamentais entre a mudança de paradigma nas ciências e na teologia. Küng parte da premissa de que o ponto de partida e objeto da teologia diferentemente das ciências naturais são a mensagem cristã, conforme se apresenta na Escritura. Embora científica, a teologia cristã é determinada por um referencial histórico e pela historicidade. A verdade cristã é uma verdade histórica e, por conseguinte, se distingue das teologias míticas dos gregos e supra-histórico-filosófica dos filósofos, pois se trata de uma justificação racional da verdade da fé cristã cujo objeto é a realidade de Jesus, de Deus e do homem. 

Outra característica que distingue a ciência teológica das ciências naturais e históricas é o fato de que, enquanto estas estão vinculadas ao passado e ao futuro e apenas à tradição, a teologia cristã está “vinculada à sua origem”. Isto posto, os escritos vetero e neotestamentários não apenas designam a origem histórica da fé cristã como também sua instância última definitiva. 

A fim de acentuar ainda mais essas diferenças, o autor retoma as cinco teses para melhor apresentar as distinções: 
  • os teólogos clássicos tradicionais têm autoridade secundária [tese sobre a ciência norma]; 
  • a crise na teologia não deriva apenas da própria evolução da ciência teológica, mas também por situações históricas concretas [tese sobre a crise como ponto de partida]; 
  • um testemunho original constitui para a teologia testemunho fundamental e definitivo [tese sobre as mudanças de paradigmas]; 
  • existe o perigo de na teologia usar a decisão científica em favor de certos paradigmas teológicos, numa decisão a favor ou contra a fé [tese sobre conversão e os fatores extracientíficos]; 
  • quando a teologia e a Igreja rejeitam um modelo hermenêutico determinado, a rejeição se transforma facilmente em condenação e a discussão é substituída pela excomunhão. Identificam-se Evangelho e teologia, realidade eclesial e sistema eclesiástico, conteúdo da fé e expressão da fé! [tese sobre as três possíveis saídas de um conflito].

Vimos deste modo como dois importantíssimos teólogos modernos estão discutindo os atuais problemas da teologia contemporânea. Nenhuma tradição é obrigada a aceitar tais proposições, mas é sensato considerá-las seriamente, se de fato há algum interesse em dialogar com a pós-modernidade e fazer a fé inteligível no mundo de hoje. Cabe à teologia pentecostal encontrar o seu próprio caminho num mundo que se fechou para ouvir as vozes teológicas fincadas em paradigmas ultrapassados.

Esdras Costa Bentho é pastor, pedagogo, teólogo e mestre em Teologia pela PUC, RJ.

Bibliografia
QUEIRUGA, A.T. Fim do cristianismo pré-moderno. São Paulo: Paulus, 2003.
KÜNG, H. Teologia a caminho: Fundamentação para o diálogo ecumênico. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 150-184 e 184-190.

sábado, 3 de agosto de 2013

Gaudium et Spes: Alegria e Esperança


Gaudium et spes é considerada pelos intérpretes o documento mais importante do Concílio Vaticano II. E.  Borgman, por exemplo, o chama “de um documento revolucionário”[1].  G. Alberigo acentua que após o período-conciliar não houve nenhuma controvérsia eclesial que não estivesse ligada às afirmações da GS[2]. 

Todavia, J. Comblin lê a constituição pastoral mais em seu âmbito sociológico do que teológico-pastoral, apesar de reconhecer este último. Afirma que o documento corresponde ao “olhar dos líderes do episcopado ‘progressista’ da Europa ocidental”, e que o “sinal dos tempos” refere-se exatamente à perda de poder das Igrejas pela sua inadaptação à modernidade[3]. Outra crítica pertinente, mas ignorada por esses e outros literatos, foi descrita por Clodovis Boff: o dualismo discursivo – caracterizado por uma pluralidade de gêneros que impedem um discurso homogênio. Para Boff essa diversidade discursiva da GS não satisfaz em termos teológicos (eclesiologia) e sociológico (análise do mundo), configurando assim, em um “discurso misto, médio e até medíocre sobre a ‘igreja’ (teologia) no mundo de hoje (sociologia)” [4].

A querela em torno da hermenêutica da GS reflete o debate em torno da recepção do corpus conciliar. P. Hünermann demonstrou que não há consenso unívoco acerca da interpretação dos textos do concílio. Em síntese, afirma que alguns os interpretam como documentos de “compromisso”, outros como eivados de ambiguidades, e ainda aqueles que unem as duas concepções e acrescentam o conceito de pluralismo contraditório [5].

Especificamente, a GS insere-se ainda mais no contexto das controvérsias em torno da elaboração e recepção dos textos conciliares. Não somos escusados frisar que na 9ª. sessão solene do dia 7 de dezembro de 1965 fora encerrado os trabalhos do Concílio, aprovando-se a GS com 2309 placet; 75 non placet; 10 nulos [6], entretanto, a elaboração  do texto iniciara em 1963, sendo retomado no segundo semestre de 1964 e concluído cerca de um ano depois [7]. A GS sofreu várias emendas e redações, críticas dos biblistas quanto à definição da expressão “sinais dos tempos” (ST) – que de início foi rejeitada e mais tarde reassumida na GS (4,1), com o acréscimo de “interpretá-los à luz do Evangelho”.
Apesar de tantos pareceres concernentes à GS, a presente análise debruça sobre a hermenêutica dos ST a partir do próprio documento, que se define como teológico e pastoral. Para lograr-se o êxito necessário, será feito uma breve incursão em alguns textos eclesiásticos que lançam luz à expressão, e, a seguir, veremos o significado conforme a estrutura da GS.

Antecedentes da expressão "sinais dos tempos"

Originalmente, a expressão “sinal dos tempos”, extraída de Mt 16, 3, fora empregada por Jesus para referir-se ao contexto escatológico e messiânico do Reino de Deus já inaugurado por ele. Esse conceito recebeu diversas interpretações durante o seu longo percurso exegético na história da Igreja. Contudo, o significado moderno mais premente deve-se ao papa João XXIII que, no Natal de 1961, convoca assim o Concílio Vaticano II:
Fazendo nossa recomendação de Jesus de saber distinguir os Sinais dos Tempos (Mt 16,4), cremos descobrir, no meio de tantas trevas, numerosos índices que nos infundem esperança sobre os destinos da Igreja e da humanidade [8].

Todavia, os mesmos problemas de nosso tempo chamados pelo papa de ST, já eram conhecidos dele por outras expressões: em 1959 ao abrir a “era conciliar” assinala a necessidade de se adaptar a Igreja à nova época; em 1960 dirigindo-se à comissão preparatória, fala em “vida cívica, econômica e social”; no discurso de 11 de outubro de 1962 (Encíclica Mater et Magistra) trata dos “desvios, às exigências e às oportunidades da idade moderna”, ou faz forte invictiva contra aqueles que “não enxergam nestes tempos modernos senão prevaricações e ruínas” [9]. Portanto, o conceito e a interpretação que o Doutor dos ST[10] emprega à controversa expressão já se encontravam muito bem assentados, aguardando apenas uma máxima que pudesse incorporar as variegadas sentenças anteriores.

O significado de "sinais dos tempos" na GS

A GS, em termos gerais, é constituída de duas partes. A primeira, A Igreja e a vocação do homem, é a seção mais teológica (11-45). Trata da antropologia cristã e de sua relação dialógica com diversas áreas da vida humana, com uma interface cristológica e escatológica (12-39). A segunda, Alguns problemas mais urgentes (46-93), aborda assuntos ligados a pastoral: matrimônio, cultura, economia, política, guerra e paz.

No Proêmio (1-3) são afirmadas as concepções em torno dos ST. O reconhecimento das alegrias, esperanças, tristezas e angústias dos homens de hoje são, por si mesmas, uma interpretação dos ST mediante os quais a Igreja precisa discernir. Esse discernimento provoca a ação da Igreja, que se identifica com aqueles que sofrem.

Na Introdução (4-10), reforça-se o caráter discernente da Igreja em relação aos ST: “é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho”. Os ST são apresentados como “mundo em que vivemos”, “nova fase da história”, “transformações rápidas e profundas”, “transformação social e cultural”, “incertezas”, “agudos conflitos políticos, sociais, econômicos, «raciais» e ideológicos”, “evolução e domínio da técnica e da ciência”, “mudanças na ordem social”, “transformações psicológicas, morais e religiosas”, entre outras expressões que marcam a modernidade cambaleante. Neste aspecto, como obsevou Clodovis Boff, os ST é “a análise da atualidade histórica, uma interpretação do tempo presente” [11], como atesta 11,1: “... o Povo de Deus esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações, em que participa juntamente com os homens de hoje, quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus”.

Estrutura
1.    Proêmio (1-3)
2.    Introdução: A condição do Homem no mundo atual (4-10)
3.    Primeira parte: A Igreja e a vocação do Homem (11-45)
1.   A dignidade da pessoa humana (12-22)
2.   A comunidade humana (23-32)
3.   A atividade humana no mundo (33-39)
4.   A função da Igreja no mundo atual (40-45)
4.    Segunda parte: Alguns problemas mais urgentes (46-93)
1.   A promoção da dignidade do matrimônio e da família (47-52)
2.   A conveniente promoção do progresso cultural (53-62)
1. Condições da cultura do mundo atual (54-56)
2. Alguns princípios para a conveniente promoção da cultura (57-59)
3. Alguns deveres mais urgentes dos cristãos com relação à cultura (60-62)
3.   A vida econômico e social (63-72)
1. O desenvolvimento econômico (64-66)
2. Alguns princípios orientadores de toda a vida econômico e social (67-72)
4.   A vida da comunidade política (73-76)
5.   A promoção da Paz e a Comunidade Internacional (77-93)
1. Evitar a guerra (79-82)
2. Construção da Comunidade Internacional (83-93)






Notas
[1] Erik Borgman. Gaudium et spes: o futuro esquecido de um documento revolucionário, in Melloni, A.; Théobald, C. (orgs.) Vaticano II: um futuro esquecido? concilium – Revista Internacional de Teologia. No 312 – 2005/4. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005, p. 75-84.
[2] Giuseppe Alberigo. Breve história do Concícilo Vaticano II (1959-1965). São Paulo: Editora Santuário, 2006, p. 179.
[3] José Comblin. Os sinais dos tempos, in Melloni, A.; Théobald, C. Op.cit., p. 104.
[4] Clodovis Boff. Sinais dos tempos: princípios de leitura. São Paulo: Edições Loyola, 1979, p. 100.
[5] Peter Hünermann. O “texto” esquecido para a hermenêutica do concílio Vaticano II, in Melloni, A.; Théobald, C. Op.cit., p. 151-171.
[6] Giuseppe Alberigo. Op.cit., p.172. Placet, designa o voto positivo; nom placet, o negativo. Havia uma terceira alternativa: placet iuxta modum, aprovação condicional. Ver Alberigo, p. 42.
[7] Giuseppe Alberigo. Op.cit., p.81-147. Embora pareça longa, nas p. 81-147 o autor resume a crise de crescimento de 1963 e as dicussões em torno da “semana negra”, 1964, que refletia a quantidade excessiva de documentos a serem examinados quanto as disparidades dos assuntos. Nesse longo itinerário nasce a GS e os debates em torno de seu conteúdo.
[8] Constituição Apostólica Humanae Salutis.
[9] Giuseppe Alberigo. Op.cit., p.50; Clodovis Boff, Op. cit. p. 44-46. Há muitas outras expressões em diversos discursos que apresentam frases semelhantes. Para fins de análise, julgamos essas suficientes.
[10] Expressão usada originalmente por Clodovis Boff, Op. cit. p. 43.
[11] Clodovis Boff, Op. cit. p. 79.

terça-feira, 9 de julho de 2013

O Espelho em Uma Aprendizagem ou O Livros dos Prazeres de Clarice Lispector: Tensões entre Eros e Agápe

(imagem extraída da internet)

O espelho instrumento místico ou des-velador do Ser

O espelho é um dos mais antigos símbolos religiosos. De simbolismo elástico na religiosidade popular e contos de fada, seu caráter misterioso e mítico é conhecido desde a Antiguidade. Na Ásia Menor antiga, a deusa Hebat, “a rainha dos céus” era representada tendo nas mãos um espelho como atributo [1]. O espelho ainda aparece aliado à figura do deus menino Dionísio Zagreu. Este recebera dos titãs um espelho entre outros brinquedos [2]. Daí resulta que nos mistérios dionisíacos dava-se aos iniciados um espelho que os acompanhava ao túmulo, esperava-se assim, reconhecer a alma, separada do corpo, na imagem refletida do espelho e subindo para a imortalidade [3]. Uma vez que no Egito o disco do sol servia como modelo para a lâmina de bronze que se utilizava para o fabrico de espelhos, não demorou muito para que os antigos aliassem o significado solar de verdade que traz tudo a lume ao espelho. O espelho assim manifesta a verdade [4]. 

No próprio tabernáculo entre os hebreus, a pia de bronze, feita dos espelhos das mulheres, continha água para purificação do sacerdote. O rosto do sacerdote era refletido na água purificadora que trazia à tona o seu rosto, sua presença e realidade e, consequentemente, o seu íntimo (Êx 38.8). Ainda em o Novo Testamento, o espelho aparece como um reflexo inferior da autêntica identidade espiritual que sempre aponta para uma realidade escatológica (2Co 3,18).

Na Idade Média, o espírito é o speculum (espelho) da natureza e de Deus [5]. Tornar-se-á postiço acrescentar mais detalhes ao caráter místico do espelho. Todavia, a visão machadiana em “O Espelho” revela o conflito entre a “alma externa”, que se liga à identidade social, e a “alma interior”, a realidade mesma da pessoa. De outro modo, Jacques Lacan, em “O Estádio do Espelho” acentuará para a criança a importância do outro para a constituição do “eu”, e de sua identidade [6]. Assim se configura as diversas hermenêuticas para um objeto misterioso e comum, o espelho.

Em Uma Aprendizagem, o espelho é o que causa espanto e identifica o sujeito. As relações são ambivalentes. Ao se vestir, Lóri se olha ao espelho e identifica-se a si mesma: corpo fino e forte; bonita pelo fato de ser mulher [7]. A narrativa apresenta Lóri diante do espelho, mas não descreve sua retirada de diante do objeto. O tempo que transcorre não é captado pela narrativa, apenas os atos que aparentemente desenvolvem-se ante o espelho. Ela se maquila, se perfuma e perante o espelho, tem “um conhecimento mínimo de si própria”, pois “enfeitar-se era um ritual que a tornava grave” e perfumar-se  “era um ato secreto e quase religioso” [8].

Mais uma vez o tempo decorre, mas não fica claro se a personagem saiu de fronte ao espelho. Pronta e vestida, “o mais bonita quanto poderia chegar a sê-lo”, entra mais uma vez em solilóquio. Os termos parecem descrever um ritual, cujo Eros embala o monólogo: virgem, adivinho, sábio, desejo, amor, perfeição, verdade, mulher, sentido secreto. Elementos mais dionisíacos do que apolínios.

Diante do espelho(?) ainda se interroga “quem sou eu?”, “quem é Ulisses?”, “quem são as pessoas?” Considera em sua introspecção que Ulisses tem a resposta para tudo [9]. Surge portanto Ulisses como figura apolínea; e o espelho como a porta do Templo de Delfos, cuja inscrição do frontispício dizia: “Te advirto, quem quer que sejas! Que desejas sondar os mistérios da natureza. Como esperas encontrar outras excelências se ignoras as excelências de tua própria casa? Em ti está oculto o tesouro dos tesouros. Oh homem! Conhece-te a ti mesmo… e conhecerás o Universo e os deuses”.

Ulisses assim se constitui o espírito da ordem, da racionalidade e da harmonia intelectual que dá a Lóri o sentimento de proteção cada vez que ela lhe permite entrar mais e mais em sua vida. A ternura, afeição, dedicação e apego apolíneo de Ulisses por Lóri demonstra toda força de Agápe. Mas Lóri, profundamente dionisíaca, quer viver o êxtase e espontaneamente.

A intrínseca relação do espelho aos cultos dionisíacos traduz a presença de Eros. A descoberta do corpo ao se olhar ao espelho desvela a consciência de si e aceitação da corporeidade com todos os contornos eróticos.

O espelho aguça a curiosidade de se autodescobrir.

Por ter de relance se visto de corpo inteiro ao espelho, pensou que a proteção também seria não ser mais um corpo único: ser um único corpo dava-lhe, como agora, a impressão de que fora cortada de si própria. Ter um corpo único circundado pelo isolamento, tornava tão delimitado esse corpo, sentiu ela, que então se amedrontava de ser uma só, olhou-se avidamente de perto no espelho e se disse deslumbrada: como sou misteriosa, sou tão delicada e forte, e a curva dos lábios manteve a inocência [10].

De acordo com James Hillman, São Bernardo de Clairvaux ao descrever a disciplina do autoconhecimento em Nosce te Ipsum, afirma que o primeiro passo na direção errada não é o orgulho, nem a preguiça e muito menos a luxúria, mas sim a curiositas [11]. Contrariamente, a curiosidade de Lóri possibilita a descoberta de si e do outro. É mais da existência do que da essência. Lóri percebe a si mesma ao viver o Eros. Olha-se com avidez e descobre-se um mistério, uma mulher que traz força e ternura, Agápe e Eros, luxúria e inocência.

Pareceu-lhe então, meditativa, que não havia homem ou mulher que por acaso não se tivesse olhado ao espelho e não se surpreendesse consigo próprio. Por uma fração de segundo a pessoa se via como um objeto a ser olhado, o que poderia chamar de narcisismo mas, já influenciada por Ulisses, ela chamaria de: gosto de ser. Encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não imaginei: eu existo [12].

O espelho desvela o eu interior. Difere-se neste caso do mito Narciso que, paralisado, morre na contemplação de si mesmo. Lóri encontra na figura exterior os ecos da figura interna. Descobre a mais importante verdade existencial: EU EXISTO.


Notas
1. LURKER, M. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, p.92.
2. Papiro de Gurob, 27 – 30 apud LOREDO, C. R. Eros e iniciação: Um estudo sobre as relações entre a paidéia platônica e os antigos cultos gregos de Mistério a partir do Banquete. Belo Horizonte: Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2009, p.34. Tese de Mestrado. Segundo o mito, os titãs deram ao deus menino Dionísio um espelho. Logo depois mataram o menino, o cozinharam e comeram-no. Dessa lenda provêm dois conceitos da origem do homem: ctônica, porque brota das cinzas dos titãs mortos por Zeus e, divina, pelo fato de os restos mortais dos titãs conterem elementos divinos de Dionísio, o deus menino. Daí a origem dualista do orfismo que atribui à alma o vestígio divino de Dionísio e o corpo a prisão da qual a alma precisa ser liberta.
3. LURKER, M. Id.Ibid., p.92.
4. Id.Ibid., p.92.
5. RUNES, D. D. “Speculum”. Dicionário de Filosofia. Lisboa: Editorial Presença, 1990, p.354.
6. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011, p.97.
7. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.16.
8. Op. Cit., p.18.
9. Op.Cit.,, p.16,17.
10. Op. Cit., p.19.
11. HILLMAN, J. Op.Cit., p.20.

12. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.19.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Concílio Vaticano II (Parte II)



Prezados leitores do Teologia & Graça, segue alguns estudos a respeito da história do Concílio Vaticano II. Espero que essa síntese possa auxiliar àqueles que estudam a História da Igreja Moderna, principalmente meus alunos da FAECAD. 

HÜNERMANN, P. O “texto” esquecido para a hermenêutica do concílio Vaticano II. In MELLONI, A.; THÉOBALD, C. (orgs.) Vaticano II: um futuro esquecido? concilium – Revista Internacional de Teologia. No 312 – 2005/4. Vários Tradutores. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005, p.151-171.

Hünermann se propõe a buscar vias para a interpretação dos documentos conciliares. Distingue, por conseguinte, várias propostas suscitadas pela recepção dos textos, a saber: “compromisso”, “incoerência interna” (Pottmeyer), “documentos eivados de compromissos e ambiguidades” (O’Malley), e “pluralismo contraditório” (Pesch e Seckler), além das análises semióticas empregadas ao texto. Contudo, o autor destaca a posição do Ormond Rush que destaca três vias de interpretação: “hermenêutica dos autores”, “hermenêutica do texto” e a “hermenêutica dos receptores”. Mas para interpretar os documentos do concílio é necessário entender-lhe o gênero. Hünermann sugere um “texto conciliar”, cuja natureza especifica é dada pela própria especificidade do concílio. As diversas interpretações dos documentos conciliares, no entanto, ficará a encargo de sua recepção pela Igreja, respeitando-se a autonomia e responsabilidade sobretudo dos leigos.



 DORÉ, J. O Vaticano II hoje; VISCHER, L. O ser humano – centro e culminância da Terra? In MELLONI, A.; THÉOBALD, C. (orgs.) Vaticano II: um futuro esquecido? concilium – Revista Internacional de Teologia. No 312 – 2005/4. Vários Tradutores. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005, p.172-187.

 Doré desenvolve em sua assertiva três principais mudanças internas operadas pelo Concílio Vaticano II que o identifica como uma nova fase na vida da Igreja: (1) No plano antropológico – o fato de o papa renunciar as pompas tradicionais que o identificava como um príncipe cercado de sua corte; (2) No plano eclesiológico – a renúncia da Igreja ao poder terrestre e seus atributos; (3) No plano teológico – uma identificação com Cristo que veio para servir e não para ser servido. A seguir o autor, apesar de entender que o concílio definiu-se como “pastoral”, afirma que foi mais efetivo na teologia do que na pastoral, embora as mudanças tenham ocorridas em ambos setores. O Vaticano II contribuiu para a passagem de uma Igreja que reúne concílios a uma Igreja que vive conciliarmente.

Vischer afirma que o Vaticano II não tratava apenas de temas ad intra, mas também ad extra. Ocupa-se deste último relacionando-o à leitura “dos sinais dos tempos”. Apesar de citar o ecumenismo, discorre mais especificamente a respeito da questão da crise ecológica, da exploração dos recursos naturais, e da poluição da água, do ar e do solo, assuntos não contemplados pelo Concílio. Justifica, no entanto, que o contexto da época não apresentava uma crise ecológica, como mais recentemente se notou. O problema agrava, segundo a perspectiva do autor, por causa de uma antropologia teológica não bíblica: o homem em vez de ser apresentado em sua relação cooperativa com a criação, é descrito como senhor e dominador do mundo. As teses do Vaticano II sobre o papel do ser humano no conjunto da criação, segundo Vischer, apropriou-se do credo da modernidade em vez de suplantá-lo.

LIBÂNIO, João Batista. “Contextualização do Concílio Vaticano II e seu desenvolvimento”. Cadernos Teologia Pública (Instituto Humanitas Unisinos), no 16, 2005, p.5-36. 

João Batista Libâneo, no título em epígrafe, trata das questões que prepararam o cenário do Concílio Vaticano II, das mudanças paradigmáticas acolhidas pela Igreja Católica, e a resistência aos ideais mais democráticos do Concílio. Discorre, portanto, a respeito de quatro passos indispensáveis à compreensão da importância e necessidade do Concílio, ou seja: (1) Alguns traços da Igreja da Contra-Reforma; (2) Realidades socioculturais que provocaram a crise desse modelo; (3) A crise dentro da Igreja, provocada pela entrada da modernidade; (4) Fatores imediatos que decidiram sobre a convocação e a orientação do Concílio nos seus inícios; e, (5) Evento conciliar.
No primeiro, traça um perfil da teologia dualista e dogmatista que caracterizava a Igreja da Contra-Reforma, fincada na infalibilidade do Magistério Pontifício do Concílio Vaticano I, e na compreensão da Igreja na pessoa do Papa. No segundo, aborda quatro movimentos que provocaram a crise do modelo vigente: (1) evolução científica; (2) emergência da subjetividade; (3) metodologia histórica; e, (4) práxis, ou suspeita de alienação. No terceiro, elenca a crise que a modernidade provocou na Igreja, procedente dos movimentos de renovação da vida eclesial, são eles: (1) bíblico; (2) litúrgico; (3) ecumênico; (4) leigos; (5) teológico; e, (6) social. No quarto, descreve os fatores que incidiram sobre a convocação e orientações do Concílio, emoldurando-o: (1) A figura intrigante do Papa João XXIII; (2) Abertura ecumênica; e, (3) Acolhida do mundo socialista. Libânio descreve alguns fatos singulares do pontificado e da convocação do Concílio, que provou diversas reações de conservadores e progressistas. No último, trata do Evento Conciliar, apresentando as (1) expectativas positivas de João XXIII e o (2) embate ideológico e institucional, nas quais se confrontaram duas teologias: a dogmatista e a hermenêutica. Por fim, o autor propõe a “intencionalidade fundamental do concílio, o diálogo com a Reforma e com a modernidade num espírito ecumênico e de atualização” (p.30). Conclui o rapsodo, afirmando que após o Concílio Vaticano II, “a Igreja Católica fez uma entrada na modernidade e assumiu uma face próxima do homem e mulher de hoje” (p.34).

 Texto original disponível em:
Acesso em: 10 mar.2012.
 Esdras C. Bentho 

terça-feira, 18 de junho de 2013

Concílio Vaticano II


Prezados leitores do Teologia & Graça, segue alguns estudos a respeito da história do Concílio Vaticano II, segundo a obra Breve História do Concílio Vaticano II: (1959-1965), do historiador Giuseppe Alberigo. Espero que essa síntese possa auxiliar àqueles que estudam a História da Igreja Moderna, principalmente meus alunos da FAECAD. Segue abaixo um resumo dos capítulos da obra citada. Se houver apreciação dos leitores, publicarei o resumo que também fiz da Revista Concilium a respeito dos 50 anos do Concílio.

ALBERIGO, Giuseppe. O anúncio: esperanças e expectativas (1959-62). In ALBERIGO, Giuseppe. Breve história do Concílio Vaticano II: (1959-1965). Tradução de Clóvis Bovo. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2006, p. 7-47.

Giuseppe Alberico, professor emérito de História da Igreja na Faculdade de Ciências políticas da Universidade de Bolonha, reconstrói uma síntese do complexo itinerário, do espírito e dialética do trabalho conciliar de 1959 a 1965. No capítulo em epígrafe, concentra-se na hermenêutica e relato dos fatos até 11 de outubro de 1962. Seus objetivos são descrever as transformações que o Concílio introduziu no catolicismo, o modo como indiretamente afetou as demais igrejas cristãs, e a influência do pontificado de João sobre a política e a conduta da Igreja na sociedade. O texto assim está estruturado: introdução (p.7-15); Capítulo I – O anúncio: esperanças e expectativas (1959-62), distribuído nos seguintes locus: surpresa (p.17-22); resposta inesperada (p.23-26); concílio ecumênico? (p.26-29); Concílio: o que é isso? (p.29-32); Quem prepara o Concílio? (1959-1960) (p.32-36); A preparação oficial (1960-62) (p.36-40); Como funciona a assembleia (p.40-44); e, por fim, Preparação para o concílio? (p.44-47).

Para cumprir seus propósitos, inicia com a descrição do impacto que o anúncio de 25 de janeiro de 1959, de iniciativa do próprio papa, causou na cúria católica há menos de noventa dias de sua eleição como sucessor de Pio XII. Alguns contextos, todavia, apresentavam-se contrários à realização do Concílio: (1) a guerra fria entre os blocos ideológicos contrapostos – capitalista e comunista –; (2) a idade avançada do papa; e, (3) a falta de maturação para resolução dos problemas, como sugeriu Y. Congar. As respostas ao anúncio, no entanto, mostraram-se díspares: esperanças, expectativas e desconfiança, esta última caracterizada pela solidão institucional e pelas suspeitas das igrejas de que a Igreja romana estivesse planejando um monopólio ecumênico. Em 1959, no mês de abril, é que o papa João XXIII descreve que o escopo do concílio era (1) fazer crescer o empenho dos cristãos, e (2) dilatar os espaços da caridade. Uma comissão antepreparatória fora organizada para consultar todos os bispos a respeito dos temas que o concílio deveria apresentar, criando-se assim, um índice para manusear as mais de 1.500 páginas. O Concílio, portanto, não se tratava de união entre tradições cristãs divididas, mas era de cunho pastoral e de liberdade, onde os bispos seriam os protagonistas do evento. A assembleia foi cuidadosamente preparada a fim de receber mais de dois mil participantes heterogênios. O Concílio era uma convocação de todos os cristãos para a união e o “aggiornamento”. Giuseppe, conclui o capítulo com uma incerteza: o concílio era uma reunião insignificante de dignitários ou um evento de alcance mundial e de transição de época?






ALBERIGO, Giuseppe. Por uma consciência conciliar (1962). In ALBERIGO, Giuseppe. Breve história do Concílio Vaticano II: (1959-1965). Tradução de Clóvis Bovo. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2006, p. 49-80.

Gaudet mater Ecclesia, com esse refrão pronunciado por João XXIII, inicia-se o ato mais significativo da Igreja católica contemporânea. Como afirmara o próprio papa, o Vaticano II coloca-se “frente aos desvios, às exigências e às oportunidades da idade moderna” (p.50). Pretendia o Concílio proporcionar à Igreja uma abertura ao futuro por meio de uma atitude acolhedora e discernente. Era um reexame para encontrar os modos mais eficazes da presença da Igreja entre as pessoas e a sociedade.

O clímax do Concílio fora reservado ao debate a respeito do projeto sobre a Igreja, suscitando não poucas objeções à redação e ao pensamento que lhe deu azo. Nessa ocasião, os conciliares deram-se conta de que seus esforços possuíam valores muito mais amplos, uma vez que “empenhavam as pessoas a se abrirem para horizontes adequadamente vastos” (p.61). Entre os anos de 1962-1963 ocorre uma pausa para uma nova preparação do Concílio. O papa fora acometido de uma enfermidade, mas as comissões conciliares continuaram os seus trabalhos. Com De Ecclesia estava claro que o tema que caracterizava o Vaticano II era a Igreja. O concílio manifestou uma grande energia para discutir temas polêmicos, como por exemplo, o celibato eclesiástico, passividade dos fiéis e à desconfiança com respeito à ideologia socialista.



ALBERIGO, Giuseppe. O Concílio torna-se adulto (1963). In ALBERIGO, Giuseppe. Breve história do Concílio Vaticano II: (1959-1965). Tradução de Clóvis Bovo. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2006, p. 81-106.

O terceiro capítulo da obra em epígrafe trata mais especificamente do segundo período de trabalho do Concílio, cujo eixo principal é De ecclesia. Divide-se em: (a) Uma crise de crescimento (p.81-90); (b) Responsabilidade dos bispos e unidade das igrejas (p.90-98); (c) A missão é de todos (p.98-100); e, (d) A nova fisionomia do concílio (p.100-106). Nessa ocasião, Paulo VI destacou quatro objetivos do concílio: (1) exposição da teologia da Igreja; (2) renovação da Igreja e empenho pela unidade dos cristãos; e, por último (3) o diálogo com o mundo contemporâneo. O projeto e as discussões focavam cada um dos quatro capítulos, nos quais o projeto se articulava: (I) ministério da Igreja na história da economia da salvação; (II) constituição hierárquica da Igreja e seus bispos; (III) o povo de Deus, os leigos, e a participação de todos os batizados na missão; e, (IV) o chamado comum de todos os fiéis à santidade. As controvérsias de cada artigo, respectivamente, giravam em torno do (a) batismo como único requisito para pertencer a Igreja; (b) a relevância do sacerdócio comum dos fiéis dentro de uma igreja vista como povo de Deus; (c) dificuldade de caracterizar satisfatoriamente a vocação geral à santidade; e, (d) a colegialidade episcopal.

Essas propostas elencaram as mais calorosas controvérsias, agravadas pela dificuldade de se obter uma resposta imediata que, transcorridos quinze dias desde o primeiro anúncio, já se confrontavam duas teologias da Igreja e do episcopado, e circulavam muitas intolerâncias em relação à nomeação dos moderadores e pela confiança lhes concedida por Paulo VI. Contudo, afirmou-se a vontade do concílio em favor de uma profunda renovação da consciência eclesial. Entre os muitos personagens que se destacaram, consta a figura do cardeal alemão Frings e sua crítica ao Santo Ofício; do arcebispo indiano E.D’Souza e sua incisiva contra o poder centralizador da cúria romana. Ênfase à reforma litúrgica, a nova fisionomia do concílio, e o fato político externo que trouxe grande comoção à assembleia: o assassinato de J. F. Kennedy, em 22 de novembro de 1963.


ALBERIGO, Giuseppe. A Igreja é uma comunhão (1964). In ALBERIGO, Giuseppe. Breve história do Concílio Vaticano II: (1959-1965). Tradução de Clóvis Bovo. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2006, p. 107-147.

O quarto capítulo da obra em epígrafe destaca as escaramuças, avanços e altercações da terceira etapa conciliar. Este terceiro período levou a efeito o que fora amadurecido nas duas assembleias anteriores e fez a transição para os problemas do relacionamento da Igreja com o mundo. Cumpriu-se assim, o compromisso que o episcopado assumira em 20 de outubro de 1962 com a mensagem dirigida à humanidade. A seção distribui-se como segue: (a) Na metade do caminho (p.107-111); (b) 1964: uma agenda carregada (p.111-117); (c) Uma semana “negra” (p.118-127); (d) A Igreja está no mundo (p.127-142); (e) Resultados e incertezas (p.142-147).

Na primeira parte, o autor apresenta as modificações regulamentares que dificultaram os debates tornando-os menos proveitoso. Na segunda, descreve as diversas tarefas entregues aos conciliares, entre elas, temas outrora discutidos como De ecclesia, De oecumenismo, e De episcoporum munere, além de outros três assuntos: revelação, apostolado dos leigos e Igreja no mundo contemporâneo. Na terceira, ocupa-se com as controvérsias que trouxeram o descontentamento dos conciliares. Na quarta, destacam-se a constituição dogmática sobre a Igreja, especificamente, Lumen gentium, e os decretos Unitatis redintegratio e Orientalium ecclesiarum. Assim, muda-se a perspectiva da assembleia conciliar, com a valorização do concílio pelos bispos e pela passagem de uma direção euro-europeia para um “empenho e iniciativa” universais. Por último, o historiador assinala os resultados, os desafios e as incertezas dessa terceira etapa conciliar.




 ALBERIGO, Giuseppe. A fé vive na história (1965); Pela juventude do cristianismo. In ALBERIGO, Giuseppe. Breve história do Concílio Vaticano II: (1959-1965). Tradução de Clóvis Bovo. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2006, p. 149-202.

O quinto e sexto capítulos da obra em epígrafe tratam dos eventos finais do concílio (V) e da avaliação do autor a respeito das expectativas e resultados gerados pelo evento (VI). O quinto capítulo divide-se em: (1) A última pausa (1964-65) (p.149-157); (2) Há uma liberdade religiosa? (p.157-166); (3) A Bíblia e a Igreja (p.167-171); (4) Os cristãos vivem na história (p.171-180); (5) Encerramento do concílio (p.180-185).

Muito embora seja igualmente relevante o projeto sobre a igreja no mundo, o tema da paz, da liberdade religiosa e do judaísmo, na primeira parte destaca-se a canonização de João XXIII e a abertura dialógica de João VI com o marxismo. Na seção seguinte, há duas importantes intervenções do polonês Wyszynsky e do checo-eslovaco Beran, que exigem o direito da Igreja contra os nazistas e regime comunista. Na ocasião, tratou-se também da revelação e apostolado dos leigos, destacando-se o teólogo francês Chenu que defendera a relação entre o reino de Deus e a história e a necessidade de se “aprender a reconhecer aos sinais dos tempos como ‘lugares teológicos’”. Outro assunto de não menos importância foi suscitado pelo melquita libanês, Dom Zoghby, a respeito de um novo casamento do cônjuge inocente abandonado. Um tema com grande repercussão teológica para o scholar na modernidade foi a “inculturação” da mensagem evangélica, fora da “hegemonia greco-latina”. Na terceira parte, a constituição dogmática DV une a perspectiva teológica com a pastoral, acentuando a importância da Palavra de Deus na vida cristã. Na quarta parte, discute-se assuntos pertinentes à Igreja na contemporaneidade, como a liberdade religiosa e missões. Por último, no capítulo V, salta aos olhos a influência do concílio sobre aqueles que viveram a experiência conciliar como “um acontecimento espiritual profundo”: Léger, Lercaro, Motolese e Helder Câmara.

O capítulo VI apresenta o caráter e interesse do concílio não apenas para a Igreja Católica, mas para todo o povo de Deus. Para G. Alberigo, o concílio foi “obra-prima do episcopado católico e, em filigrana, do Espírito”. Assim, para o papa João o concílio era “um novo Pentecostes”. Fez a transição das concepções teológicas escolásticas para a modernidade e inseriu a Igreja em um novo caminho rumo ao ecumenismo, ao diálogo e a unidade, sem a exigência da uniformidade. Uma completa mudança de paradigma no curso da Igreja.


 Esdras Bentho é teólogo, pedagogo e mestrando em teologia pela PUC RJ.

TEOLOGIA & GRAÇA: TEOLOGANDO COM VOCÊ!



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