DÁ INSTRUÇÃO AO SÁBIO, E ELE SE FARÁ MAIS SÁBIO AINDA; ENSINA AO JUSTO, E ELE CRESCERÁ EM PRUDÊNCIA. NÃO REPREENDAS O ESCARNECEDOR, PARA QUE TE NÃO ABORREÇA; REPREENDE O SÁBIO, E ELE TE AMARÁ. (Pv 9.8,9)

segunda-feira, 31 de março de 2008

A Fundação da Igreja - a ekklēsia mateana

Mateus chama de ekklēsia o novo ‘am Yahweh – a comunidade histórico soteriológica universal daqueles que creram na messianidade de Jesus. Essa comunidade, todavia, é vista sob a perspectiva universal em Mt 16.18 e local em 18.17.
Na primeira, Jesus apresenta a
ekklēsia como sendo a sua congregação, comunidade ou povo, assim como Israel era o povo de Deus. Duas verdades a respeito da nova comunidade são afirmadas: a fundação futura da igreja: “edificarei” (oikodomēsō); e a igreja como propriedade exclusiva de Cristo: "minha igreja" (mou tēn ekklēsian).

O verbo no futuro do indicativo da primeira pessoa, oikodomēsō, assegura que o próprio Cristo edificaria a igreja. A metáfora, portanto, é a de um construtor (oikodomos), ou proprietário que edifica a sua casa. Esse edificador é frequentemente chamado de oikodespotēs, ou seja, o administrador da edificação ou oikodomia.

Em Mateus 10.25 oikodespotēs é o chefe de família, o proprietário da casa. Nas epístolas paulinas este termo refere-se ao cuidado e governo da família (1 Tm 5.14; Tt 2.5). Por conseguinte, na figura de Jesus como o pater família oikodespotēs –, são afirmados todos os direitos exclusivos e inalienáveis de Cristo sobre a Igreja (cf. Mt 10.25; 20.1; 21.33). Ele edifica, sustenta e aparelha a Igreja – a casa de Deus (Hb 3.1-6).

Teorias a respeito da fundação da igreja

A proposição cristológica que assevera a fundação da Igreja como evento profético é contrária às pretensas alegações de que a igreja fora edificada na Antiga Aliança. Estes se dividem em dois grupos. O primeiro, acredita, de acordo com Gênesis 3, que o primeiro casal, Adão e Eva, constituíram a primeira igreja cristã no Antigo Testamento. De acordo com essa posição, Adão e Eva creram na promessa concernente à semente da mulher que esmagaria a cabeça da serpente e, por isso, a igreja fora fundada na proto-história da humanidade com um proto-evangelho. O segundo grupo atesta que a igreja teve seu início com Abraão, conforme Gênesis 12 e, assim como o povo de Israel era a “igreja” do Antigo Testamento, a Igreja é o novo Israel restaurado em o Novo Testamento. Alguns daqueles que vêem a igreja como continuidade de Israel na Antiga Aliança, adicionam ao argumento, o caráter judaico da igreja primitiva, a fim de fortalecer a temática e justificar o Novo Testamento como seqüência natural do desenvolvimento do povo de Deus nas Escrituras.

Objeções

Porém, os proponentes dessas teorias se esquecem de que o próprio Cristo é o oikodespotēs, ou seja, o edificador e construtor da nova edificação (Mt 16.18; 1 Pe 2,5), e, portanto, a Igreja não poderia ser edificada antes da manifestação do próprio Edificador. Para que a igreja pudesse ser estabelecida era necessário que o Verbo divino se encarnasse e consumasse sua obra salvífica (Jo 1.1, 12-14; Gl 4.4). Como anteriormente afirmamos, Cristo Jesus refere-se à fundação da Igreja como evento escatológico, futuro: oikodomēsō, isto é, “edificarei” – verbo no futuro do indicativo da primeira pessoa –, e isso faz alusão à edificação da igreja depois da consumação de sua obra salvífica e sua ascensão ao Pai. Jesus, por conseguinte, é o único e inconfundível edificador da Igreja (Rm 9.33; 1 Co 10.4;1 Pe 2.4-8), pois Ele chama amorosamente os homens ao arrependimento (Mt 9.13; Mc 2.17; Lc 5.32;2 Tm 1.9) para constituí-los “pedras vivas”, “casa espiritual” e “sacerdócio santo”, a fim de que ofereçam sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus por meio dEle próprio (1 Pe 2.5,9). Antes da epifania e consumação da obra soteriológica efetuada por Cristo, a Igreja não poderia ter de fato existido. Essa proposição é uma verdade incontestável quando mais uma vez observamos que Mt 16.18 expressamente declara a não existência da igreja antes de Cristo, mas que passaria a existir após sua morte e ressurreição. Portanto, toda e qualquer afirmação que pretenda identificar concretamente a igreja antes de Cristo terá de responder satisfatoriamente à problemática içada por Mt 16.18.

Registre-se por fim, o fato de em Hebreus 3.1-6, o autor argumentar que Jesus é superior a Moisés, pois enquanto este “foi fiel em toda a sua casa, como servo” (v.5), aquele, “como Filho, sobre a sua própria casa; a qual somos nós” (v.6). O texto reverbera a declaração divina em Números 12.7: “Não é assim com o meu servo Moisés, que é fiel em toda a minha casa”, contudo, ressalta que “maior honra do que a casa tem aquele que a edificou” (v.3). Moisés era um “servidor” (therapōn), mas Cristo, hōs huios epi ton oikō(i) autou, “como Filho, sobre (epi) a sua própria casa”. O lexema hebraico bayît, “casa”, traduzido pela LXX por oikos, embora seja de significado elástico nas Escrituras, não se refere ao tabernáculo, mas ao povo de Deus, à “casa de Israel” (oikou Israēl), como “a comunidade da fé”.

A casa, Israel, foi edificada por Deus, mas a casa, Igreja, por Cristo. Uma casa, afirma o rapsodo, é construída ou edificada por alguém. Ela não subsiste independente de seu edificador. Assim como uma casa necessita ser planejada e construída por alguém, Israel e a Igreja não subsistem independentes do Pai e do Filho respectivamente: “Pois toda casa é equipada por alguém, mas Deus é o construtor de todas as coisas” (v.4 –tradução pessoal). O verbo “edificar”, nesta perícope, é a tradução de kataskeuadzō, que se entende por “construir”, “edificar”, ou “criar”, mas também “equipar” e “prover”. Na mesma epístola é usado em 11.7 com o sentido de “preparar” (ARC), “aparelhar” (ARA), “construir” (NVI/TEB), para designar à construção, edificação e aparelhamento da arca por Noé. O biblista irlandês, James M. Flanigan assevera que kataskeuadzō designa a Cristo como “o desenhista, o planejador, o realizador que ordenou e estabeleceu todas as coisas”.[1] A fim de que não houvesse qualquer suspeição concernente à interpretação da “casa”, da qual Cristo é o edificador, afirma o escritor aos Hebreus: “Mas Cristo é fiel como Filho sobre a casa de Deus; e esta casa somos nós, se é que nos apegamos firmemente à confiança e à esperança da qual nos gloriamos” (v.6 – NVI). Esta casa é a Igreja de Deus; a comunidade da fé, ou como afirma Paulo em Efésios 2.19 a oikia(i) tou Theou, isto é, a Família de Deus. Portanto, Jesus é o edificador da Igreja, a Família de Deus e, por essa mesma razão “tem maior” (pleinos) “glória” (doksēs) e “honra” (timēn) do que Moisés e qualquer um dos apóstolos (v.3).

Embora essas metáforas neotestamentárias encontrem seus fundamentos no Antigo Testamento, podemos afirmar que assim como a essência não se confunde com a forma, a “nova casa” e “nova aliança” anunciadas nas Escrituras veterotestamentárias não se confundem com a essência vivida in totum pela comunidade da Nova Aliança, edificada e aparelhada por nosso Senhor Jesus Cristo. A realidade é superior ao anúncio, razão pela qual Moisés foi fiel (pistos), “como servo, para testemunho (martýrion) das coisas que se haviam de anunciar (laleō) (v.5 – ARA).

Porém, caso a presente proposição não seja suficiente para convencer a quem concebe de outra forma, creio que os textos de Efésios 1.9-12;3.5-11 e Colossenses 1.26,27 põem fim à controvérsia. A igreja, conforme os textos citados, era um mistério “que desde os séculos esteve oculto em Deus, que a tudo criou”.


[1] FLANIGAN, J.M. Comentário Ritchie do Novo Testamento: Hebreus. São Paulo: Edições Cristãs; Shalom Publicações, 2001, p.90.

terça-feira, 25 de março de 2008

Basileùs basiléōn kaì Kýrios kyrìōn (Ap 19.16)


Alguns professores enviaram-me alguns e-mails solicitando mais informações a respeito da Lição Bíblica do próximo domingo (30/03/08). Para auxiliar os dignos professores das Lições Bíblicas, preparamos pequenos parágrafos exegéticos a fim de reforçar e balizar o ensino deste domingo. O professor já conhece o contexto da lição, portanto, nos limitaremos apenas aos aspectos explicativos que reforçam o conhecimento do professor. O prezado mestre deve ministrar a lição, usando, para isso, os parágrafos exegéticos abaixo, conforme a necessidade. Imprima o texto e corte cada tópico formando fichas individuais, e, de acordo com o desenvolvimento da aula, utilize-os. Estes adendos não substituem a lição, mas a complementa.

1. A nova seção que inicia em 19.11, e se estende até o versículo 16, forma mais uma das pequenas unidades que começam com a expressão "e vi" (kaì eidon), confira, por exemplo, 1.19; 4.1; 5.1, 11; 6.1,9; 15.2; 18.1, etc. "E vi o céu aberto" em Apocalipse, corresponde à expressão "se abriram os céus, e eu vi visões de Deus" em Ezequiel 1.1. Esta fraseologia, ao que parece, padrão aos videntes (chōzeh – ver Mt 3.16), marca o início de uma comunicação sobrenatural e inspirada por Deus. Observe também as seções "e ouvi" (kaì ēkousa) – 18.4; 19.1,6, etc. A descrição se conforma ao estilo e características do gênero apocalíptico.

2. Nesta perícope, encontramos: a) o céu aberto; b) a identificação do cavaleiro vitorioso; c) a descrição do cavaleiro; d) e o propósito do cavaleiro. Cristo é o cavaleiro descrito gloriosa e poderosamente. O sangue salpicado no manto é tema controverso. Uns sugerem ser o sangue do Cordeiro, outros, o dos mártires, e ainda os que consideram como sendo o sangue dos inimigos de Cristo. Em cada uma das três posições há respeitadíssimos intérpretes. A posição adotada pelo comentário das Lições Bíblicas é que se trata do "sangue dos inimigos de Cristo", mas há que considerar a possibilidade de que as outras também estejam corretas, muito embora seja difícil determinar qual delas é a mais precisa. Adoto, conforme o contexto e o lustre da presente passagem, a posição assumida pelo comentário, no entanto, reconheço que se trata de um assunto para ser abordado com mais detalhes exegéticos. O cavalo branco é símbolo da vitória do cavaleiro, Cristo, mas não deve ser confundido com o cavalo e o cavaleiro de Ap 6.2, o anticristo. A "espada afiada" é a palavra de Cristo (Is 11.4; 49.2; Ef 6.14; Hb 4.12). O exército, provavelmente é uma referência ao santos anjos e a Noiva do Cordeiro, juntamente com os mártires que também vestem linho fino, puro e branco – a justiça e santidade dos santos.

3. A expressão grega Basileùs basiléōn kaì Kýrios kyrìōn (Rei dos reis e Senhor dos senhores) é descrita em tom litúrgico e compõe mais um dos títulos cristológicos mencionados no capítulo 19 de Apocalipse. No versículo onze, o título Pistòs kaì ălēthinós (Fiel e Verdadeiro) refere-se à identificação de nosso Senhor Jesus à Igreja (Ap 3.14), todavia, Rei dos reis e Senhor dos senhores é o título por meio do qual o mundo e os governantes da terra conhecerão o Senhor Jesus Cristo. O Rei dos reis traz um nome secreto, não revelado ao cortejo célico e muito menos aos inimigos – um nome glorioso. Porém, Ele foi chamado (kéklētai) ho Logos tou Theou, o Verbo de Deus. Se o nome Logos tou Theou está escrito em sua roupa, provavelmente, o maravilhoso nome deve estar grafado nos diademas ou na cabeça. Lembremos que este nome, ao que parece, é revelado ao crente vencedor (Ap 3.12), que também possui um novo nome misterioso (Ap 2.17). Os infiéis serão indignos de conhecer o Nome pelo qual o nosso Senhor Jesus Cristo será conhecido na glória por todos os santos.

4. Embora a perícope de Apocalipse 19.11-19 descreva o título, a expressão fora mencionada por Paulo em 1 Timóteo 6.15. Neste texto paulino, várias palavras que representavam os poderes políticos constituídos são usadas: monos dynástēs (único Soberano), basileùs tōn basileuóntōn (Rei dos reis – ver Ed 7.12; Ez 26.7), Kýrios tōn kyrieuóntōn (Senhor dos senhores – título empregado na Bíblia apenas para Deus, Dt 10.17; Sl 136.3; Ap 17.17).

5. No grego do Novo Testamento, dois principais vocábulos são empregados para descrever o termo "soberano" (ARA). Em Atos 4.24, 2 Pe 2.1 e Ap 6.10 usa-se o vocábulo "Déspota" (Dominador absoluto), enquanto em 1 Tm 6.15 encontramos "Dynástēs" (Líder soberano). No tempo do Novo Testamento esses dois títulos eram usados juntamente com "Kyrios", para se referirem ao imperador e aos governadores de vastas regiões. Contudo, os santos escritores do Novo Testamento, inspirados pelo Espírito Santo, serviram-se dessas palavras para afirmar que o Senhor é o único Soberano (monos dynástēs – 1 Tm 6.15). O hino célico de 19.6 afirma que o Senhor (Kyrios), o Deus (ho Theós) é o Dominador de tudo (Pantokrátōr), o Todo-Poderoso. Esses títulos expressam o conceito teológico da soberania de Cristo sobre todas as coisas.

6. A Sagrada Escritura afirma que o Senhor é o único e bendito Soberano sobre: a) a criação (At 4.24); b) os reis (1 Tm 6.15; Ap 1.5). Ele, o Senhor, é: a) o único Soberano (1 Tm 6.15; Jd v. 4); b) o soberano que resgata o homem (2 Pe 2.1); c) o Senhor Soberano, santo e verdadeiro (Ap 6.10). Como afirmou o teólogo Oscar Cullmann: "Este consenso é suficiente para demonstrar a importância capital que o cristianismo atribui à fé na soberania de Cristo" (Cristologia do Novo Testamento, p.291).

7. A soberania de Cristo é ratificada nas expressões "à destra de Deus" (deksiōn tou Theou – Mc 16.19; At 2.23; 7.56; Hb 10.12; 1 Pe 3.22), "exaltou" soberanamente (Fp 2.9), "exaltou" a Príncipe e Salvador (At 13.17), e no conceito de submissão dos inimigos de Cristo (Lc 20.43; Hb 10.13). Em Hebreus 1.13 a expressão "assentar-se à direita de Deus" é combinada com "inimigos por estrado dos teus pés". Portanto, a soberania de Cristo é sobre os anjos (ăngelōn), poderes (dynámeōn), e autoridades (ěksousiōn), conforme a escritura de 1 Pedro 3.22.

8. Esses conceitos de soberania e senhorio sobre tudo e todos são reminiscências da idéia teológica de Jesus, o Messias, como filho de Davi (Lc 20.41-44). Como é sabido, Deus prometeu a Davi a perpetuação de seu trono por meio de seu descendente, o Messias. Por um ato gracioso, o Senhor revelou ao seu servo o futuro de seu reino e gerações (1 Sm 7.11,16,19). No Salmo 110, o salmista, inspirado pelo Espírito Santo, reafirma de modo claro e contundente as grandes verdades ensinadas por Deus a respeito de seu descendente soberano. Não esqueçamos que os apóstolos atribuíam a Davi a função de profeta (At 2.25-28, 30), e, inúmeras vezes, interpretaram os salmos messiânicos, principalmente o 110, em conexão com a vida e ministério de nosso Senhor Jesus Cristo (At 2.34-36), pois está é a tradição que receberam do próprio Cristo em Lucas 20.41-44.

Dominus vobiscum

domingo, 23 de março de 2008

PRAKSEIS TON APOSTOLON: Uma Leitura



É fato atestado pelos biblicistas do Novo Testamento que o título “Atos dos Apóstolos” atribuído à obra do evangelista Lucas, surgiu provavelmente no final da segunda metade do século II da era cristã, e no século IV já se encontrava no Codex Sinaiticus e Vaticanus.

Praksis

O termo grego Praksis ou Atos, não é usado apenas em sentido próprio (atividade, função, atos), mas literário. Na época em que a epígrafe foi posta no rol das obras sacras, Praksis também era empregado para designar o gênero literário que se ocupava em descrever as ações, os feitos, ou as realizações das grandes cidades e povos. Se assim o for, o título Atos dos Apóstolos não cumpre satisfatoriamente os objetivos do gênero, uma vez que apenas dois apóstolos, Pedro e Paulo, são proeminentes: Pedro nos doze primeiros capítulos e Paulo nos doze últimos, mesmo assim, afirma Cullmann, há “lacunas e deformações” [1] no relato das ações desses apóstolos.

Estrutura Literária

Porém, a estrutura literária parece indicar que um dos objetivos do hagiógrafo é descrever o nascimento e desenvolvimento da Igreja cristã através dos “atos do Espírito Santo” no mundo de então. Conforme asseverou o teólogo franco-alemão, “não são os ‘atos’ desses apóstolos que achamos neste livro, mas antes a história da difusão do Evangelho, de Jerusalém até Roma, pela ação do Espírito Santo”.[2]

O sumário do progresso do Evangelho nas diversas regiões do império estão registrados nas seguintes perícopes: (a) Atos 6.7 – nascimento e fortalecimento da igreja em Jerusalém; (b) 9.31 – a expansão da igreja na Palestina; (c) 16.5 – progresso da igreja na Ásia Menor; (d) 19.20 – a igreja vitoriosa na Europa; e, por fim, (e) 28.31 – expansão e progresso da igreja até o centro do império. Considerando que o livro de Atos dos Apóstolos é obra de autoria do evangelista Lucas, torna-se relevante a constatação de que o vocábulo ekklēsia não é mencionado no evangelho lucano, embora várias vezes em Atos.[3]

Lucas-Atos e a Igreja

Detendo-se no desenvolvimento da narrativa do Evangelho que se propõe, “depois de acurada investigação de tudo desde a sua origem” a dar “uma exposição em ordem” (Lc 1.3 – ARA), chegamos a verossímil afirmação de que Lucas não entrevê, ainda que nas sublinhas da história que se propôs a descrever, qualquer manifestação da Igreja antes do Pentecostes.

Diferente de Mateus em 16.13-20, Lucas, ao que tudo indica, segue a narrativa marcana (8.27-30) e omite o diálogo entre Jesus e Pedro concernente à posição primus interpares do apóstolo, e, consequentemente, o termo ekklēsia (9.18-21).

O Evangelho (24.45) encerra com Jesus abrindo, diēnoiksen,[4] “a mente” (ton noun) dos discípulos para “entenderem as Escrituras” (tou synienai tas graphas), ordenando-lhes que, em seu nome, pregassem (kēryssō) o “arrependimento” (metanoian)[5] para perdão de pecados “a todas as etnias” (eis panta ta ethnē), começando por Jerusalém. Porém, deveriam pacientemente “assentar”, kathidzo, (permanecer [ARA]; ficar [NVI/ARC]) na cidade até que a “promessa do Pai” se cumprisse e todos fossem “revestidos de poder do alto”. (vv.47-49).

Após o comissionamento divino, os discípulos adoram a Jesus e “com grande alegria” (meta kharas megalēs) retornam a Jerusalém (vv.52,53). O Evangelho que fora apresentado a Teófilo com a narração dos eventos que antecederam e sucederam o nascimento de Jesus, adornado por seus ensinos e milagres e dramatizado através da paixão de Cristo, chega ao clímax com a ressurreição e ascensão do Filho de Deus.

Posfácio e Prefácio de Lucas-Atos

Não somos escusados de frisar que o prefácio do livro de Atos dos Apóstolos retoma a via literária que encerra o Evangelho. No prólogo de Atos, o rapsodo sintetiza os propósitos da primeira obra, reafirmando a metodologia empregada em Lucas-Atos (Lc 1.1-4; At 1.1-5), e retoma, após o prefácio, o tema que segue em Atos 1.6,12, e versículos sucessivos.

A perícope é quase um pós-escrito do primeiro Evangelho. O evangelista emprega estilisticamente no versículo 6 a conjunção subordinativa men para interpor um trecho (6-11) subordinado também à narrativa de Lucas 24.44-51. O anúncio da epangelia e dynamis do Espírito, sumariada em Lucas 24.49, é ampliado em Atos 1.4-11. O verseto 12, por meio do advérbio tote, insere também o parágrafo na mesma seqüência do epílogo do Evangelho. Não creio, portanto, que a proposição do teólogo liberal R. Bultmann, embora respeite suas pesquisas e a força de sua argumentação, seja inequívoca quando, em sua Teologia do Novo Testamento, assevera que o “Livro de Atos oferece apenas um quadro incompleto e de colorido lendário da comunidade primitiva”.[6]

Uma leitura do texto bíblico, livre de qualquer premissa, assevera o inverso da teoria bultmanniana. O emprego das palavras autoptai – testemunhas oculares –, hypēretai tou logou – ministros da Palavra –, parēkolouthēkoti anōthen [eu] tenho acompanhado de perto desde o início –, akribōs – exatidão –, katheksēs – seqüência precisa –, contradiz qualquer argumento que atribua um caráter de “colorido lendário” ao livro de Atos.

É inadmissível que Lucas tenha falseado a história da igreja cristã primitiva, ou que os cristãos do primeiro século foram adeptos da historiografia áulica, semelhante à falta de comedimento dos historiadores antigos e palacianos que atribuíam discursos e feitos extraordinários não verdadeiros aos biografados. O historiador Lucas, entretanto, investigou os fatos, entrevistou as testemunhas oculares e acompanhou os muitos episódios que narrou: “Como nos transmitiram desde o começo as testemunhas oculares e aqueles que se tornaram ministros da Palavra, pareceu-me bem, tendo acompanhado de perto todos os acontecimentos com exatidão desde o início, em precisa e ordenada seqüência, escrever a ti, excelentíssimo Teófilo.” (Lc 1. 2, 3; cf. At 16.10-17; 20.5-15; 21.1-8; 27.1; 28.16).

Análise estilística

Adaptação e revisão. Não é apenas plausível como também necessário que se registre o fato de o literato ter revisado, editado e adaptado os discursos e os fatos que se propôs a narrar. O cálamo do autor pulsa semelhante às impressões e ao impacto que a história exerce sobre ele. Lucas não se detêm como os impressionistas, mas análogo aos realistas, evita o exagero, as minudências, as ocorrências dramaticamente irrelevantes a fim de não empobrecer o tonus da ação.

A obra é intensa e densa. Os fatos desenvolvem-se com muita rapidez e as ações do Espírito, através dos apóstolos, assinalam o ritmo e a freqüência com que novos eventos são acrescentados à narrativa. Todavia, a densidade da obra compacta os eventos assinalados e à vagareza com que se costuma ilustrar a história cede espaço à força da linguagem e à síntese dos fatos.

Primeiros quarenta anos. Outro elemento que contribui favoravelmente à nossa proposição é o fato de o historiógrafo pontuar os primeiros quarenta anos do Cristianismo com os nomes e alguns fatos episódicos da história secular. Diferente dos outros três evangelistas, Lucas traça um breve paralelo com o governo de certos imperadores romanos: César Augusto (Lc 2.1), Tibério César (Lc 3.1), Cláudio César (At 11.28; 18.2), e Nero, o César de Atos 16.11,21. Há de se acrescentar em Lucas 1.5 o rei da Judéia, Herodes, o Grande, ainda em 2.2, Cirênio, governador da Síra. Encerro as proposições acima, socorrendo-me nas palavras do erudito F.F.Bruce que, a respeito da verve historiográfica de Lucas afirmou: “O escritor que dessa forma relaciona a própria narrativa com o contexto mais amplo da história secular se expõe a sérias dificuldades, se não é bastante cuidadoso; oferece ao leitor crítico tantas oportunidades para testar-lhe a exatidão. Lucas enfrenta esse risco e sai-se muito bem.”[7]


[1] CULLMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento. 10.ed.rev., São Leopoldo: Editora Sinodal, p.38.

[2] Id.Ibid., p.37.

[3] Até mesmo Ernest Renan em sua obra Lês Apotres confirma a autoria lucana de Lucas-Atos: “Um assunto fora de dúvida é o fato de que os Atos tiveram o mesmo autor do terceiro Evangelho. Não precisamos provar esta proposta, a qual nunca foi seriamente contestada”. Ver Histoire dês origines du Christianisme. Libre Deuxième: Lês Apotrês. Paris: Calmann-Lévy, Éditeurs, [s.d.], p. x.

[4] Literalmente diēnoiksen quer dizer “abrir bem”.

[5] Literalmente “mudança de mente”.

[6] BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004, p.73.

[7] BRUCE, F.F. Merece confiança o Novo Testamento? São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1965, p. 107.

Créditos das iconografias: Luis Tristán : http://pintura.aut.org/BU04?Autnum=11.617&EmpNum=15069

O Espírito Santo retratado como uma pomba no vitral que fica atrás da Cátedra da Basílica de São Pedro, Roma. Fonte: Wikipédia.


sexta-feira, 21 de março de 2008

Meditação Pascal


Jesus é o nosso misericordioso e fiel sumo sacerdote (Hb 2.17). Com exceção do pecado, Ele participou integralmente de nossa natureza e fragilidades humanas: fome, sede, cansaço (Mt 21.18; Mc 4.38; Jo 4.6; 19.28). Ele sofreu, chorou e angustiou-se (Mt 26.37; Lc 19.41; Hb 13.12). Era "homem de dores, experimentado nos trabalhos e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado" (Is 53.3). Ele em tudo foi tentado (Mt 4.1-10; Hb 2.18; 4.15).

Qual a razão de tanto sofrimento? Hebreus 4.15 responde: "Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado" (cf. Hb 2.18). Eis o motivo pelo qual o Filho do Altíssimo aceitou tal fardo: socorrer o crente na tentação e nas vicissitudes. Clame ao Senhor! Ele sabe o que padeces!

Jesus está presente mesmo quando não o vemos. Ele age mesmo quando não vislumbramos os seus atos. Alguns imaginam que o Senhor não se importa com os perigos que eles costumam atravessar.

Mas, como de fato passaram pelo vale da sombra da morte? Como saíram incólume do deserto? Como suas vestes não se desgastaram e o calor não desidratou o espírito abatido?

Por quanto tempo, filho de Deus, estarás errante à murmurar que estás sozinho na batalha? Olhe para trás e veja que as pegadas que contemplas não são tuas, mas do Senhor! Que a brisa que soprava acalentando as tuas feridas era o alento divino enquanto Ele te carregava em seus braços. O crespúsculo e a aurora que lhe enchiam de esperança a cada manhã e tarde não era nada menos do que os olhos de El Roi, o Senhor que tudo vê. Como achaste mel em solo rochoso? E água em pleno deserto? Você não está sozinho!

segunda-feira, 17 de março de 2008

Exercício Exegético em Hebreus 1.1-4.


[1] Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas,

Polymerōs kaì polytrópōs pálai ho Theòs lalēsas toîs patrásin n toîs prophētais,

nestes últimos dias, nos falou pelo Filho [1],

p’ skhátou tōn hēmerōn toútōn lálēsen hēmîn n huiō(i),

[2] a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo.

hon thēken klēronómon pántōn, di’ hou kaì poíēsen toùs aōnas.

[3] Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser

Hos ōn paúgasma tēs dóksēs kaì kharaktēr tēs hypóstaseōs atou,

sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder,

phérōn te ta pánta tō(i) rhēmati tēs dynámeōs atou,

depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas,

katharismòn tōn hamartiōn poiēsámenos, káthisen n deksia(i) tēs megalōsýnēs em hypsēlois,

[4] tendo-se tornado tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que eles.

Tosoútō(i) kreíttōn gegómenos tōn ggélōn hosō(i) diaphorōteron par’ atoùs keklēronómēken noma.

Notas Exegéticas

(v.1): Polymerōs: advérbio “muitas vezes; muitas maneiras” é formado por polý (povo) e merós (parte; pedaço). Literalmente,“muitas partes”; “muitos pedaços”; a ênfase está no caráter fragmentário das revelações da Antiga Aliança, isto é, “em muitos e diferentes tempos”.

polytrópōs: advérbio “de várias maneiras; vários modos” é formado também por polý mais tropos (maneira; modo; espécie – em Hb 13.5 “modo de vida”; “conduta”; “caráter”). Literalmente de “diversos métodos ou maneiras”. As duas expressões além de serem sinônimas são um hapax legoumenon, usadas de modo retórico (traductio) a fim de enfatizar o mesmo sentido. As revelações não foram apenas muitas como também variadas em sua manifestação. Os conteúdos foram variados e os meios multifacetados (polypoikílos cf. Ef 3.10).

(v.2): p’ skhátou tōn hēmerōn: “nestes últimos dias”. Lit. “no fim destes dias”. p’ (prep. com genitivo). skhátou (adj. pronominal gen. nom.,sing.). tōn (art. definido gen. nom. sing.). hēmerōn (sub. gen. Fem. Pl.ural). Literalmente, “ no fim dos dias estes”. Há uma variante textual dessa expressão nos MSS P(46), Aleph, ABDKLM, que apresentam “nos fins destes últimos dias”, indicando os dias anteriores em que variadas formas de revelação foram dadas. A TEB traduz por “no período final em que estamos”.

lálēsen: “falou”; “falou-nos”. lálēsen, + laléō + terminação (verbo indicativo aoristo ativo da terceira pessoa do plural). O uso do aoristo no grego indica finalidade.

n huiō(i): “pelo Filho”. n (preposição com dativo – usada com grande variedade de sentidos). Preferimos “em” no sentido de inter-relacionamento, principalmente a que envolve o Filho e o Pai (cf. Jo 10.30; 14.20; Rm 6.11, 23; 16.11; 1 Co 1.30; 3.1; 4.15). huiō(i) (sub.dat. masc. sing.). A falta de artigo definido indica “uma relação filial” e insiste na qualidade do agente pelo qual a mensagem é entregue.

toùs aōnas: acusativo plural “as eras”, “as épocas”.

v.3): Hos [Pronominal relativo nominativo]: “que”, “quem”, “o qual”, geralmente concorda com o seu antecedente em gênero e número . O emprego de hos, nas epístolas, costuma introduzir perícopes hínicas que expressavam a fé apostólica da igreja primitiva (ver Rm 4.25; 2 Co 4.4; Fp 2.6; Cl 1.15; 1 Pe 2.22).

paúgasma: “radiância, explendor” - o sentido ativo tem a idéia de emitir brilho - a shekiná de Deus radiava dEle. kharaktēr: “impressão, estampa, gravação” - reprodução exata - hypóstaseōs: “essência, substância, natureza”. phérōn: (part.pres. de phérō “levar, carregar”). Sentido dinâmico envolve sustentação e movimento, preservação e governo.

v.4) Tosoútō(i)... hosō(i): “tanto mais...do que” [Adj.Pronominal Demonstrativo Dativo...Adj.Pron.Relativo Dat.], “tão superior...quanto”.

kreíttōn: “melhor em posição”, “preferível”, “mais proeminente” [Adj.Comparativo Nominativo]. Cf. 6.9;7.7,19,22; 8.6;9.23;10.34;11.16,35,40; 12.24

gegómenos: “tendo-se tornado”; “tornando-se” (TEB/NVI). (Verbo particípio Ativo dativo de ginomai), aponta para um certo ponto no passado.

Análise Estilística

a) O texto se distingue da forma peculiar das epístolas.

b) É notável o cuidado formal e estilístico nos quatro versículos.

c) No texto grego a perícope forma um único período, com uma evidente busca de efeitos estilísticos, assonâncias e trocadilhos.

d) O estilo se aproxima do estilo clássico da literatura grega. Percebe-se o uso da aliteração ou hendiadis: (Polymerōs kaì polytrópōs pálai ho Theòs lalēsas toîs patrásin n toîs prophētais)

e) Deus e o Filho são os protagonistas da ação ideal que é celebrada em tom litúrgico (hos).

f) Dois dísticos em que o segundo encaixa-se no primeiro mediante uma proposição subordinada relativa, numa progressão espontânea.

g) O proêmio é construído com ênfase teológica e litúrgica, e não apenas cronológica (skhátou tōn hēmerōn).

Esta expressão no texto ARC (1995) corresponde ao versículo 1, enquanto nas edições do N.T. que usam o Texto Crítico (TC – NVI, TEB, ARA) ao versículo 2.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Metodologia da Exegese Bíblica

Jerônimo, exímio exegeta das Escrituras

A primeira função da exegese bíblica é entender a tessitura do texto, compreender a trama que dá azo a mensagem do hagiógrafo. Para o cabal entendimento dessa assertiva, julgo necessário deslindar o significado de tais proposições tendo como base os textos de Mateus 13.36, Atos 8.30-38 e Hebreus 5.11:

1. A exegese envolve uma leitura técnica das Escrituras, nem sempre acessível a um grande número de leitores.

2. Há um hiato entre leitura e compreensão. É possível ler e não entender.

3. A leitura de uma perícope se realiza através de diversos níveis: edificação, liturgia, catequese, dogmática, exegese.

4. O tipo de leitura orienta a práxis interpretativa.

5. Os textos da Escritura apresentam complexidades léxicas, literárias, históricas, culturais, proféticas, litúrgicas e teológicas nem sempre acessíveis ao leitor fugaz.

6. Não é apenas necessário, mas também plausível que se explique a perícope.

7. A explicação do texto deve conduzir a edificação, exortação, consolação e a Cristo.

8. Certas explicações exigem maturidade e disposição de vontade de quem ouve e de quem a explica.

Metodologia da Exegese Bíblica

O emprego do termo exegese não está limitado ao sentido etimológico anteriormente expendido, mas estende-se de seu significado primário à exegese como metodologia aplicada às Sagradas Escrituras. Metodologia da Exegese Bíblica, portanto, é a organização e análise sistemática dos processos que devem orientar a investigação científica da Bíblia. Consiste na aplicação dos princípios racionais de investigação usados em documentos plurisseculares com o propósito de apreender o estilo literário de cada autor, a estrutura da obra, as formas literárias do conjunto, entre outros. É o conjunto de procedimentos científicos empregados com o propósito de explicar o texto em sua diversidade.

O uso de uma metodologia na exegese do texto bíblico não é fortuito, mas cumpre duas funções específicas: viabilizar a obtenção do conhecimento científico da Bíblia e possibilitar a sistematização lógica desse saber. O método em exegese, por conseguinte, requer o emprego de uma ordem com a qual diferentes processos serão empregados para alcançar determinados resultados. Entende-se por processo, a forma como determinada técnica é aplicada, isto é, o modo específico de executar o método.

Tipos de leitores

O leitor crítico da Sagrada Escritura distingui-se do fugaz, que se apressa em sua leitura, e do fugidio, que teme o desafio hercúleo de compreendê-la em seus matizes. Esse leitor operante além de saber o que pesquisar, e como investigar, sabe muito bem como ordenar os conhecimentos obtidos.

O seu conhecimento não está fundamentado única e precisamente nos sentidos, como o leitor fugaz; na experiência, como o leitor fugidio; ou em sua espiritualidade, como insistem os místicos e pneumatikos, mas nos princípios técnicos subsidiados pela razão iluminada que, à maneira agostiniana, recebe a comunicação da luz divina e, através dela, a inteligência é capaz de atingir o verdadeiro conhecimento. A cognoscibilidade disposta e aberta à iluminação divina.

De modo algum essas proposições indeferem a espiritualidade do exegeta, no entanto, não reconhece que esta seja uma autoridade suficiente em si mesma para interpretar o texto bíblico em seus matizes filológicos e histórico-culturais. Espiritualidade e exegese são recíprocos, e ninguém convicto de sua sanidade mental dissociaria uma da outra. A respeito dessa temática falaremos mais adiante, portanto, retornemos à assertiva principal.

A exegese como metodologia bíblica não circunscreve-se a extrair o sentido dos textos através de normas e princípios hermenêuticos, mas como ciência bíblica, além de ensinar os métodos de interpretação de textos e o modo de aplicá-los corretamente, formula, estuda e critica os métodos de interpretação aplicados ao texto bíblico. Temos então um caráter tríplice da ciência exegética: normatização, pesquisa e crítica.

quinta-feira, 6 de março de 2008

O Coração de Marta no Mundo de Maria



Uma homenagem a minha amável esposa, Ana Paula, e à missionária Eva Maria, mestra por excelelência . Em comemoração ao Dia Internacional das Mulheres.

Ao lermos embevecido as magistrais páginas do Novo Testamento, encontramos personagens que inspiram-nos a viver a vida cristã em sua dimensão mais profunda. Dentre esses destacam-se intrépidas mulheres que, apesar de viverem na sociedade patriarcal hebraica, demonstraram ousadia em professar a sua fé. Os nomes das que se assentam na galeria neotestamentária somam-se às dezenas, os das anônimas, às centenas. Nem mesmo a história de um povo e de uma época machista, pode apagar as pegadas históricas da mulher que teme e ama a Deus (Mt 26.13).

Marta, a Anfitriã de Betânia (Lc 10.38-42)

Nos limítrofes de nossa inquirição exala o perfume adocicado de uma rara flor denominada ‘Marta’. Seu nome, procedente da língua aramaica (Martâ’), persiste através do idioma grego ou koinê (Martha). O declínio das duas línguas que perpetuam o nome da irmã de Lázaro não foi capaz de eclipsar o intenso brilho de seu testemunho e serviço ao Messias.

De significado vigoroso, Marta ou senhora, era a irmã mais velha entre os seus irmãos (Lc 10.38). Seu nome, longe de ser um apelativo, a situava dentro do papel social da família judaica daqueles dias. Era a ‘senhora’ responsável por todo o formalismo cerimonial da recepção judaica ao se receber em casa um conviva. Esse fato tem sido incompreendido por aqueles que vêem na amorosa admoestação de Jesus em Lucas 10.41,42, uma repreensão acre ao caráter pragmático de Marta. Receber um rabino em casa era uma tarefa hercúlea que exigia esforço e completa dedicação.

Não se pode roubar o perfume de uma flor, muito menos extinguir os méritos sacrificiais de uma mulher que ama ao Senhor através de seus serviços. Marta, semelhante a sua irmã, Maria, assentava-se aos ‘pés de Jesus’ e ‘ouvia a sua palavra’, mas sua responsabilidade como anfitriã a distraia (Lc 10. 39,40). Estava bifurcada em dois sentimentos opostos: o de adorar através de seu serviço, ou similar a Maria, por meio de seu amor atencioso. Marta, a senhora, estava só e sobrecarregada de afazeres impostos pela etiqueta social, não era vilã, mas cordial e principesca (Lc 10.40).

O serviço de Marta garantia a tranqüilidade da adoração de Maria, assim como as ocupações litúrgicas de várias mulheres cristãs anônimas permitem a adoração daqueles que adentram a nave dos templos evangélicos. As filhas de Marta são como as colunas dos grandes edifícios modernos, não aparecem, mas sustentam toda a estrutura. Assim como Jesus amava a Marta, ama as mulheres cristãs que se consagram ao seu serviço: “Jesus amava a Marta, e a sua irmã, e a Lázaro” e a você, filha de Marta (Jo 11.5).

A Confissão de Marta (Jo 11.19-30)

O hálito gélido do vento leva o perfume das pétalas da flor, assim como Marta foi levada a Jesus pelo falecimento de seu irmão Lázaro (Jo 11.19,20). Os ventos outonais da vida, assim como o aluvião das chuvas de verão, não apenas trazem consigo a dor, mas também disseminam as sementes da esperança. O mesmo vento que arrasa e a mesma inundação que arrasta, são os mesmos que levam a vida a solos estéreis.

O caráter, idoneidade e fé da “senhora de Betânia” são provados diante da ruptura da vida e do laço com a morte. Um rio em condições normais deposita sedimentos não visíveis aos olhos desatentos, mas agitando-se a água todo o resíduo emerge de suas profundezas. Dificilmente se reconhece a fé e firmeza de uma mulher cristã, quando esta apenas recebe bênçãos, mas vindo a adversidade todo o substrato do seu interior se manifesta, que pode ser tanto límpido quanto turvo.

A Maria coube-lhe o mérito do amor sacrifical demonstrado pelo seu gesto profético em João 12.3, mas a Marta o de na tempestade articular a segunda declaração de fé cristológica, semelhante a do apóstolo Pedro em Mateus 16.16: “Sim, Senhor, creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao Mundo”.

Um sentimento acre-doce, pesar e esperança, apropriou-se de Marta. Estático, não muito distante de sua casa, o cheiro de morte, forçava a rocha sobre o túmulo. Em movimento crescente exalava o perfume da vida em direção a Marta (Jo 11.20). Maria, sua irmã, permanecia ouvindo as lamúrias das carpideiras, enquanto Marta vai ao encontro de Jesus. Duas coisas a “senhora de Betânia” sabia: que tudo quanto Jesus pedisse ao Pai, Ele o faria, e que haverá ressurreição no último dia (Jo 11.22,24).

Marta na adversidade, não se recolheu, mas creu. No sofrimento não ficou estática - essa é a posição de quem está morto -, porém superou as intempéries, e foi em direção à vida que não estava distante dela, assim como não estava de Maria (Jo 11.20,28). O sofrimento revelou que no íntimo de Marta, havia muito mais do que aquilo pelo qual ainda hoje ela é medida – serviço. Este, ao contrário, não era impulsivo, mas movido por plena fé e urgência sacrifical.

O Verdadeiro Culto Cristão (Jo 12.1-11)

Os elementos necessários a um verdadeiro culto evangélico podem ser percebidos na passagem joanina em epígrafe. O local é a aldeia de Betânia, conhecida como “casa de tâmara”, que representa em João, a comunidade dos restituídos.

A primeira restituição e a de Simão, o anfitrião da ceia. Este, anônimo no Evangelho de João, é conhecido pela comunidade dos discípulos por “Simão o leproso”. Uma leitura despretensiosa de Levítico 13 demonstra como o leproso está desqualificado a viver em comunidade: afastado de sua família e da comunhão religiosa. Entretanto, este homem é restituído não somente à saúde física, mas também à comunidade, através de seu encontro com Jesus. Ele nos ensina o primeiro elemento necessário ao culto cristão: a gratidão. Verdadeiros adoradores agradecem ao Senhor em todo o tempo (Sl 103).

O segundo personagem é Lázaro, o ressuscitado. Este foi reintegrado à vida. O cheiro de morte é dissipado pela fragrância da vida. Está reclinado à mesa com Jesus, ensinado-nos que numa verdadeira adoração, os adoradores têm expectativa. Lazáro está atento às palavras de Jesus. Na oração dominical somos ensinados a orarmos com expectativa: “Venha a nós o teu reino” (Mt 6.10).

Marta, a “senhora de Betânia”, serve. A verdadeira adoração não se limita ao amor de Maria, a gratidão de Simão, ou a expectativa de Lázaro, mas transcende através do serviço: “Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a ele servirás” (Mt 4.10). É por esta razão que Paulo afirma que aquele que recebeu o dom de serviço deve servir (Rm 12.7).

Marta serviu ao Senhor, assim como você o serve, quando prepara na cozinha o alimento para aqueles que adoram, ou quando cuida da higiene do templo para receber a igreja de Cristo.

É uma honra para a mulher cristã ser Marta.

TEOLOGIA & GRAÇA: TEOLOGANDO COM VOCÊ!



Related Posts with Thumbnails