DÁ INSTRUÇÃO AO SÁBIO, E ELE SE FARÁ MAIS SÁBIO AINDA; ENSINA AO JUSTO, E ELE CRESCERÁ EM PRUDÊNCIA. NÃO REPREENDAS O ESCARNECEDOR, PARA QUE TE NÃO ABORREÇA; REPREENDE O SÁBIO, E ELE TE AMARÁ. (Pv 9.8,9)

terça-feira, 9 de julho de 2013

O Espelho em Uma Aprendizagem ou O Livros dos Prazeres de Clarice Lispector: Tensões entre Eros e Agápe

(imagem extraída da internet)

O espelho instrumento místico ou des-velador do Ser

O espelho é um dos mais antigos símbolos religiosos. De simbolismo elástico na religiosidade popular e contos de fada, seu caráter misterioso e mítico é conhecido desde a Antiguidade. Na Ásia Menor antiga, a deusa Hebat, “a rainha dos céus” era representada tendo nas mãos um espelho como atributo [1]. O espelho ainda aparece aliado à figura do deus menino Dionísio Zagreu. Este recebera dos titãs um espelho entre outros brinquedos [2]. Daí resulta que nos mistérios dionisíacos dava-se aos iniciados um espelho que os acompanhava ao túmulo, esperava-se assim, reconhecer a alma, separada do corpo, na imagem refletida do espelho e subindo para a imortalidade [3]. Uma vez que no Egito o disco do sol servia como modelo para a lâmina de bronze que se utilizava para o fabrico de espelhos, não demorou muito para que os antigos aliassem o significado solar de verdade que traz tudo a lume ao espelho. O espelho assim manifesta a verdade [4]. 

No próprio tabernáculo entre os hebreus, a pia de bronze, feita dos espelhos das mulheres, continha água para purificação do sacerdote. O rosto do sacerdote era refletido na água purificadora que trazia à tona o seu rosto, sua presença e realidade e, consequentemente, o seu íntimo (Êx 38.8). Ainda em o Novo Testamento, o espelho aparece como um reflexo inferior da autêntica identidade espiritual que sempre aponta para uma realidade escatológica (2Co 3,18).

Na Idade Média, o espírito é o speculum (espelho) da natureza e de Deus [5]. Tornar-se-á postiço acrescentar mais detalhes ao caráter místico do espelho. Todavia, a visão machadiana em “O Espelho” revela o conflito entre a “alma externa”, que se liga à identidade social, e a “alma interior”, a realidade mesma da pessoa. De outro modo, Jacques Lacan, em “O Estádio do Espelho” acentuará para a criança a importância do outro para a constituição do “eu”, e de sua identidade [6]. Assim se configura as diversas hermenêuticas para um objeto misterioso e comum, o espelho.

Em Uma Aprendizagem, o espelho é o que causa espanto e identifica o sujeito. As relações são ambivalentes. Ao se vestir, Lóri se olha ao espelho e identifica-se a si mesma: corpo fino e forte; bonita pelo fato de ser mulher [7]. A narrativa apresenta Lóri diante do espelho, mas não descreve sua retirada de diante do objeto. O tempo que transcorre não é captado pela narrativa, apenas os atos que aparentemente desenvolvem-se ante o espelho. Ela se maquila, se perfuma e perante o espelho, tem “um conhecimento mínimo de si própria”, pois “enfeitar-se era um ritual que a tornava grave” e perfumar-se  “era um ato secreto e quase religioso” [8].

Mais uma vez o tempo decorre, mas não fica claro se a personagem saiu de fronte ao espelho. Pronta e vestida, “o mais bonita quanto poderia chegar a sê-lo”, entra mais uma vez em solilóquio. Os termos parecem descrever um ritual, cujo Eros embala o monólogo: virgem, adivinho, sábio, desejo, amor, perfeição, verdade, mulher, sentido secreto. Elementos mais dionisíacos do que apolínios.

Diante do espelho(?) ainda se interroga “quem sou eu?”, “quem é Ulisses?”, “quem são as pessoas?” Considera em sua introspecção que Ulisses tem a resposta para tudo [9]. Surge portanto Ulisses como figura apolínea; e o espelho como a porta do Templo de Delfos, cuja inscrição do frontispício dizia: “Te advirto, quem quer que sejas! Que desejas sondar os mistérios da natureza. Como esperas encontrar outras excelências se ignoras as excelências de tua própria casa? Em ti está oculto o tesouro dos tesouros. Oh homem! Conhece-te a ti mesmo… e conhecerás o Universo e os deuses”.

Ulisses assim se constitui o espírito da ordem, da racionalidade e da harmonia intelectual que dá a Lóri o sentimento de proteção cada vez que ela lhe permite entrar mais e mais em sua vida. A ternura, afeição, dedicação e apego apolíneo de Ulisses por Lóri demonstra toda força de Agápe. Mas Lóri, profundamente dionisíaca, quer viver o êxtase e espontaneamente.

A intrínseca relação do espelho aos cultos dionisíacos traduz a presença de Eros. A descoberta do corpo ao se olhar ao espelho desvela a consciência de si e aceitação da corporeidade com todos os contornos eróticos.

O espelho aguça a curiosidade de se autodescobrir.

Por ter de relance se visto de corpo inteiro ao espelho, pensou que a proteção também seria não ser mais um corpo único: ser um único corpo dava-lhe, como agora, a impressão de que fora cortada de si própria. Ter um corpo único circundado pelo isolamento, tornava tão delimitado esse corpo, sentiu ela, que então se amedrontava de ser uma só, olhou-se avidamente de perto no espelho e se disse deslumbrada: como sou misteriosa, sou tão delicada e forte, e a curva dos lábios manteve a inocência [10].

De acordo com James Hillman, São Bernardo de Clairvaux ao descrever a disciplina do autoconhecimento em Nosce te Ipsum, afirma que o primeiro passo na direção errada não é o orgulho, nem a preguiça e muito menos a luxúria, mas sim a curiositas [11]. Contrariamente, a curiosidade de Lóri possibilita a descoberta de si e do outro. É mais da existência do que da essência. Lóri percebe a si mesma ao viver o Eros. Olha-se com avidez e descobre-se um mistério, uma mulher que traz força e ternura, Agápe e Eros, luxúria e inocência.

Pareceu-lhe então, meditativa, que não havia homem ou mulher que por acaso não se tivesse olhado ao espelho e não se surpreendesse consigo próprio. Por uma fração de segundo a pessoa se via como um objeto a ser olhado, o que poderia chamar de narcisismo mas, já influenciada por Ulisses, ela chamaria de: gosto de ser. Encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não imaginei: eu existo [12].

O espelho desvela o eu interior. Difere-se neste caso do mito Narciso que, paralisado, morre na contemplação de si mesmo. Lóri encontra na figura exterior os ecos da figura interna. Descobre a mais importante verdade existencial: EU EXISTO.


Notas
1. LURKER, M. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, p.92.
2. Papiro de Gurob, 27 – 30 apud LOREDO, C. R. Eros e iniciação: Um estudo sobre as relações entre a paidéia platônica e os antigos cultos gregos de Mistério a partir do Banquete. Belo Horizonte: Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2009, p.34. Tese de Mestrado. Segundo o mito, os titãs deram ao deus menino Dionísio um espelho. Logo depois mataram o menino, o cozinharam e comeram-no. Dessa lenda provêm dois conceitos da origem do homem: ctônica, porque brota das cinzas dos titãs mortos por Zeus e, divina, pelo fato de os restos mortais dos titãs conterem elementos divinos de Dionísio, o deus menino. Daí a origem dualista do orfismo que atribui à alma o vestígio divino de Dionísio e o corpo a prisão da qual a alma precisa ser liberta.
3. LURKER, M. Id.Ibid., p.92.
4. Id.Ibid., p.92.
5. RUNES, D. D. “Speculum”. Dicionário de Filosofia. Lisboa: Editorial Presença, 1990, p.354.
6. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011, p.97.
7. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.16.
8. Op. Cit., p.18.
9. Op.Cit.,, p.16,17.
10. Op. Cit., p.19.
11. HILLMAN, J. Op.Cit., p.20.

12. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.19.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Concílio Vaticano II (Parte II)



Prezados leitores do Teologia & Graça, segue alguns estudos a respeito da história do Concílio Vaticano II. Espero que essa síntese possa auxiliar àqueles que estudam a História da Igreja Moderna, principalmente meus alunos da FAECAD. 

HÜNERMANN, P. O “texto” esquecido para a hermenêutica do concílio Vaticano II. In MELLONI, A.; THÉOBALD, C. (orgs.) Vaticano II: um futuro esquecido? concilium – Revista Internacional de Teologia. No 312 – 2005/4. Vários Tradutores. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005, p.151-171.

Hünermann se propõe a buscar vias para a interpretação dos documentos conciliares. Distingue, por conseguinte, várias propostas suscitadas pela recepção dos textos, a saber: “compromisso”, “incoerência interna” (Pottmeyer), “documentos eivados de compromissos e ambiguidades” (O’Malley), e “pluralismo contraditório” (Pesch e Seckler), além das análises semióticas empregadas ao texto. Contudo, o autor destaca a posição do Ormond Rush que destaca três vias de interpretação: “hermenêutica dos autores”, “hermenêutica do texto” e a “hermenêutica dos receptores”. Mas para interpretar os documentos do concílio é necessário entender-lhe o gênero. Hünermann sugere um “texto conciliar”, cuja natureza especifica é dada pela própria especificidade do concílio. As diversas interpretações dos documentos conciliares, no entanto, ficará a encargo de sua recepção pela Igreja, respeitando-se a autonomia e responsabilidade sobretudo dos leigos.



 DORÉ, J. O Vaticano II hoje; VISCHER, L. O ser humano – centro e culminância da Terra? In MELLONI, A.; THÉOBALD, C. (orgs.) Vaticano II: um futuro esquecido? concilium – Revista Internacional de Teologia. No 312 – 2005/4. Vários Tradutores. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005, p.172-187.

 Doré desenvolve em sua assertiva três principais mudanças internas operadas pelo Concílio Vaticano II que o identifica como uma nova fase na vida da Igreja: (1) No plano antropológico – o fato de o papa renunciar as pompas tradicionais que o identificava como um príncipe cercado de sua corte; (2) No plano eclesiológico – a renúncia da Igreja ao poder terrestre e seus atributos; (3) No plano teológico – uma identificação com Cristo que veio para servir e não para ser servido. A seguir o autor, apesar de entender que o concílio definiu-se como “pastoral”, afirma que foi mais efetivo na teologia do que na pastoral, embora as mudanças tenham ocorridas em ambos setores. O Vaticano II contribuiu para a passagem de uma Igreja que reúne concílios a uma Igreja que vive conciliarmente.

Vischer afirma que o Vaticano II não tratava apenas de temas ad intra, mas também ad extra. Ocupa-se deste último relacionando-o à leitura “dos sinais dos tempos”. Apesar de citar o ecumenismo, discorre mais especificamente a respeito da questão da crise ecológica, da exploração dos recursos naturais, e da poluição da água, do ar e do solo, assuntos não contemplados pelo Concílio. Justifica, no entanto, que o contexto da época não apresentava uma crise ecológica, como mais recentemente se notou. O problema agrava, segundo a perspectiva do autor, por causa de uma antropologia teológica não bíblica: o homem em vez de ser apresentado em sua relação cooperativa com a criação, é descrito como senhor e dominador do mundo. As teses do Vaticano II sobre o papel do ser humano no conjunto da criação, segundo Vischer, apropriou-se do credo da modernidade em vez de suplantá-lo.

LIBÂNIO, João Batista. “Contextualização do Concílio Vaticano II e seu desenvolvimento”. Cadernos Teologia Pública (Instituto Humanitas Unisinos), no 16, 2005, p.5-36. 

João Batista Libâneo, no título em epígrafe, trata das questões que prepararam o cenário do Concílio Vaticano II, das mudanças paradigmáticas acolhidas pela Igreja Católica, e a resistência aos ideais mais democráticos do Concílio. Discorre, portanto, a respeito de quatro passos indispensáveis à compreensão da importância e necessidade do Concílio, ou seja: (1) Alguns traços da Igreja da Contra-Reforma; (2) Realidades socioculturais que provocaram a crise desse modelo; (3) A crise dentro da Igreja, provocada pela entrada da modernidade; (4) Fatores imediatos que decidiram sobre a convocação e a orientação do Concílio nos seus inícios; e, (5) Evento conciliar.
No primeiro, traça um perfil da teologia dualista e dogmatista que caracterizava a Igreja da Contra-Reforma, fincada na infalibilidade do Magistério Pontifício do Concílio Vaticano I, e na compreensão da Igreja na pessoa do Papa. No segundo, aborda quatro movimentos que provocaram a crise do modelo vigente: (1) evolução científica; (2) emergência da subjetividade; (3) metodologia histórica; e, (4) práxis, ou suspeita de alienação. No terceiro, elenca a crise que a modernidade provocou na Igreja, procedente dos movimentos de renovação da vida eclesial, são eles: (1) bíblico; (2) litúrgico; (3) ecumênico; (4) leigos; (5) teológico; e, (6) social. No quarto, descreve os fatores que incidiram sobre a convocação e orientações do Concílio, emoldurando-o: (1) A figura intrigante do Papa João XXIII; (2) Abertura ecumênica; e, (3) Acolhida do mundo socialista. Libânio descreve alguns fatos singulares do pontificado e da convocação do Concílio, que provou diversas reações de conservadores e progressistas. No último, trata do Evento Conciliar, apresentando as (1) expectativas positivas de João XXIII e o (2) embate ideológico e institucional, nas quais se confrontaram duas teologias: a dogmatista e a hermenêutica. Por fim, o autor propõe a “intencionalidade fundamental do concílio, o diálogo com a Reforma e com a modernidade num espírito ecumênico e de atualização” (p.30). Conclui o rapsodo, afirmando que após o Concílio Vaticano II, “a Igreja Católica fez uma entrada na modernidade e assumiu uma face próxima do homem e mulher de hoje” (p.34).

 Texto original disponível em:
Acesso em: 10 mar.2012.
 Esdras C. Bentho 

TEOLOGIA & GRAÇA: TEOLOGANDO COM VOCÊ!



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