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terça-feira, 21 de agosto de 2012

Os Múltiplos Olhares do Educador



“Aprendi que um homem só tem o direito de olhar outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se”. Este apotegma atribuído ao escritor colombiano Gabriel Garcia Marques traduz adequadamente o propósito de nosso tema: Os vários olhares do educador Cristão.

Olhar além dos estereótipos

O valor e a importância do olhar estão impressos na ciência, na arte, na indústria de entretenimento entre outros. Nossa sociedade tornou-se menos auditiva e mais midiática e visual. Somos atraídos pelas cores, pelo colorido das propagandas, das roupas, das imagens. Porém, não aprendemos a ver, a olhar com profundidade. Escapa de nossas vistas o discernimento do olhar.

Olhamos, mas não vemos. Vemos, entretanto, não discernimos. Olhamos, mas procuramos os estereótipos sociais; fitamos os olhos à procura do traço retilíneo e nos espantamos ao encontrar o curvilíneo. Mas a vida e seus atores não seguem as arestas retilíneas da rotinização do cotidiano, mas as curvas e desvios do viver. Não segue a marcha militar, mas o borboletear da infância, da vida. Somos, portanto, desafiados como professores a olhar além do “lugar comum”, dos “clichês”, dos “chavões”. A ver além das máscaras da subjetividade de nossos alunos.

Olhar além das máscaras teatrais

Na Grécia clássica, os atores do teatro grego usavam uma máscara a cada apresentação. Além de esconder o rosto, o artefato representava o personagem que seria tipificado. As máscaras eram estáticas, de feições imóveis, pois indicavam o destino final do personagem. Essas máscaras eram chamadas de persona, e deste termo originou-se a palavra personalidade, para indicar o “elemento estável da conduta da pessoa”.

Quando os atores colocavam a persona, deixavam de ser quem eram para assumir o seu papel entre os saltimbancos. É para além dessa compleição social que o educador é desafiado a olhar. Ele é instado a ver um pouco além da máscara e do personagem que o aluno representa no grande palco teatral, chamado sala de aula. Alguns alunos usam a máscara da tragédia, do narciso, do mito, do herói, do cômico. Infelizmente, os professores conhecem apenas os papéis do alunato na escola, e deixam escapar aos olhos à verdadeira persona que eles assumem na vida. Todavia, qual o conceito de olhar que subjaz o presente tema?

Olhar com profundidade

Na presente abordagem, pouco adianta o sentido etimológico adoculare, muito menos a sintaxe ou morfologia do termo. A linguagem e seus jogos semânticos são capazes de atribuir às palavras sentidos diferentes daqueles que se concebem por meio de suas raízes; nisto, talvez, concordasse Wittgenstein.

Olhar, nesta acepção, não diz respeito ao olhar enquanto função ocular. Olhar é ver em profundidade. É apreender critica e analiticamente uma situação em sua dimensão totalizante. É ver além do invólucro subjetivo das aparências fugidias. É diferençar e mediar através da observação dos fatos, dos objetos, dos sujeitos, da subjetividade.

Trata-se de uma visão que ultrapassa a exterioridade e a perspectiva plástico-pictural, para usar uma expressão de Bahktin. A propósito, Bakhtin afirmara que a visão exterior ou plástico-pictural, “refere-se à percepção das fronteiras exteriores que configuram o homem”.[1] É uma visão associada ao aspecto físico, transitório, circunstancial, metamórfico. Porém essa forma de “ver a outrem” se reduz na subjetividade do professor que, desatento, julga pela aparência fugaz, em constante mutação. Bakhtin assevera que
Apenas o outro pode, de maneira convincente, no plano estético (e ético), fazer-me viver o finito humano, sua materialidade empírica delimitada. Num mundo que me é exterior, o outro se oferece por inteiro à minha visão, enquanto elemento constitutivo deste mundo. A cada instante, vivo distintamente todas as fronteiras do outro, posso captá-lo por inteiro com a visão e o tato; vejo o traçado que lhe delimita a cabeça, o corpo contra o fundo do mundo exterior; no mundo exterior, o outro se mostra por inteiro à minha frente e minha visão pode esgotá-lo enquanto objeto entre os outros objetos, sem que nada venha ultrapassar o limite de sua configuração, venha romper sua unidade plástico-pictural, visível e tangível.[2]

Contudo, essa visão exteriorizada é reducionista, cega e incapaz de ir além do invólucro material que tanto “aproxima” como afasta o indivíduo do outro. Com este olhar, o professor apenas toca o aluno enquanto sujeito tátil, “objeto entre os outros objetos”, mas jamais lhe atinge a alma, o ser integral – emoção, vontade e intelecto. O docente que assim vê não é capaz de enxergar, uma vez que não fora educado a olhar além do invólucro da subjetividade.

Atenta ao olhar desagregador e reducionista do professor, Madalena Freira Welfort afirmara que “não fomos educados para olhar pensando o mundo, a realidade, nós mesmos. Nosso olhar cristalizado nos estereótipos produziu em nós paralisia, fatalismo, cegueira”.[3]

De acordo com a educadora é imprescindível que o professor eduque o seu próprio olhar; que deixe de ser míope e condicionado. Isto somente é possível se o próprio abandonar o “olhar cristalizado”, condicionado por uma cultura que desaprendeu a olhar com alteridade, compaixão e amor, no entanto, aprendeu a ver o próximo como seu concorrente, rival. Esses estereótipos são formados culturalmente nas salas dos professores, nas reuniões docentes, nos corredores escolares, quando emitimos acriticamente nossas opiniões reducionistas a respeito de nossos alunos, rotulando-os com os estereótipos de uma sociedade excludente e competitiva.

Olhar “um-com-o-outro”

O olhar espacial do mestre, que configura o outro como mero recorte da realidade que o cerca, produz uma visão distorcida. Às vezes, encerra o sujeito no determinismo histórico e no fatalismo teleológico; como afirmara Bakhtin, nas “fronteiras exteriores que configuram o homem”.[4] Todavia é preciso romper com a teia dos condicionamentos culturais; pôr-se em movimento oposto à paralisia que se recusa à alteridade; abrir-se ao colóquio dialético-dialógico.

O pensamento arguto de Heidegger a respeito do “ser-um-com-o-outro” (Miteinandersein) complementa a presente asserção. Para o filósofo, o professor pode estar junto aos seus alunos no auditório[5] ou na sala de aula e mesmo assim não estar “um-com-o-outro”. O espaço escolar torna-se, portanto, uma teia de vivências em que cada ator, embora presente, se aparta do outro por motivos vários. Heidegger chama isto de “um não-ser-uns-com-os-outros privativo”.[6] O sujeito fechado em seu próprio casulo, divide com outro um recorte do espaço, mas privativa seu ambiente.

Estar um-com-o-outro não é apenas habitar em, mas conviver com. Apesar de o professor e o aluno ocuparem funções distintas na sala de aula, têm por intuito o mesmo: o ensino-aprendizagem, e, segundo Heidegger, “o intuito voltado para o mesmo pertence à essência do ser-aí”[7](Dasein). O ser-aí é o ente que se explícita historicamente a partir das relações que experimenta com o mundo. É através dessa relação-abertura com o mundo que o sujeito encontra a si mesmo. Ser-aí, como traduz Casanova, é “ser-em-uma-amplitude-aberta; ser-clareira”.[8]

Olhar o sujeito cognoscente

Por conseguinte, o professor não pode fechar-se à experiência que emana das responsabilidades de sua existência e profissão, mas, parafraseando Bakhtin, “vivenciar-se através de sua singularidade que se distingue fundamentalmente das formas do outro através das quais vivencia a todos os outros sem exceção”.[9]

Ser professor é assumir um compromisso com a transformação do outro, da sociedade, da igreja, do mundo. O professor é uma parte do todo que forma o professorado, entretanto, a individualidade não pode ser reduzida à totalidade. O professor, para usar uma expressão de Hannah Arendt, deve fugir da condição de bucha de consenso e gado cognitivo. [10]

O educador precisa assumir suas responsabilidades, não apenas educacionais, mas sociais; ser crítico; ver-se singular no mundo, sem contudo, particularizar-se a ponto de ignorar as injustiças, e de se afastar do outro. Ele não deve prescindir da afetividade, mas estabelecer uma relação amistosa e pessoal com o alunato, tendo aos seus olhos sua história e subjetividade, assim como a história e a subjetividade de seus alunos.

O encontro dessas duas histórias e subjetividades distintas, mesmo que se conflitem, é de responsabilidade do educador colocar-se como protagonista principal desse processo, participando efetiva e afetivamente da construção de si e do outro. Segundo Paulo Freire

o clima de respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes, generosas, em que a autoridade docente e as liberdades dos alunos se assumem eticamente, autentica o caráter formador do espaço pedagógico. [11]

O homem sente-se pessoa não apenas pelo que é, mas também quando vê o seu reflexo no outro que lhe é semelhante. Alteridade, humildade, política, justiça e práxis devem nortear a formação do educador cristão. Logo, não é admissível ao múnus docente a tirania, a síndrome da normalidade e o desinteresse do professor pelo ser humano.

Portanto, o olhar ultrapassa as raias da mera visão e abarca o sujeito cognoscente – o ser cônscio de suas capacidades e limites. Olhar faz parte da imaginação, da fantasia, da reflexão pretérita do que fomos, da consciência presente do que somos, e da utopia futura do que devemos ser. No mundo unificado do conhecimento, assegura Bakhtin, “não posso colocar-me enquanto eu-para-mim em oposição a todos os homens do passado, do presente e do futuro concebidos como outros para mim”.[12] Isto exige uma reeducação do olhar que não se restringe à estética, mas amplia-se com a ética. Uma “aprendizagem de desaprender” à moda de Fernando Pessoa:

O essencial é saber ver,

Saber vem sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos alma vestida!)
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
(Obra poética, p.217).

Olhar formando competências

A aprendizagem do desaprender é o que pretendemos em relação ao olhar do professor. Para que isto aconteça é necessário que o educador abandone as amarras lazarentas de seus condicionamentos histórico-sociais; que deixe para trás, depositado no túmulo, seu olhar reducionista e condicionante. Talvez, somente assim sejamos capazes de mudar o nosso olhar concernente ao múnus docente, a fim de que, como afirma Perrenoud, desenvolvamos a competência de “conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação”. [13]

O desenvolvimento desta competência é o resultado da capacidade didático-pedagógica do professor ao proporcionar aos educandos diversas situações que lhes favoreçam a aprendizagem. Todavia a distância entre o real e o ideal mais uma vez faz-se presente, como uma constatação insofismável. E o olhar diferenciado do professor é deveras importante. Perrenoud alerta que uma “situação de aprendizagem ótima”, “aos olhos de muitos professores em exercício ainda parece uma utopia” (p.55). Isto porque, segundo o autor, seria preciso encarregar-se de cada aluno pessoalmente, o que não é possível e nem desejável (p.56). O meio-termo para essa problemática segundo o educador francês é
organizar diferentemente o trabalho em aula, acabar com a estruturação em níveis anuais, ampliar e criar novos espaços-tempos de formação, jogar, em uma escala maior, com os reagrupamentos, as tarefas, os dispositivos didáticos, as interações, as regulações, o ensino mútuo e as tecnologias da formação.[14]

Essa competência global não se restringe apenas a um dispositivo, ou a métodos e instrumentos específicos, pelo contrário. É necessário o emprego de todos os recursos disponíveis a fim de “organizar as interações e atividades de modo que cada aprendiz vivencie, tão freqüentemente quanto possível, situações fecundas de aprendizagem” (p.57). Para o adequado desenvolvimento desta competência sistêmica são necessárias quatro competências específicas:

  • Administrar a heterogeneidade no âmbito de uma turma;
  • Abrir, ampliar a gestão de classe para um espaço mais vasto;
  • Fornecer apoio integrado, trabalhar com alunos portadores de dificuldades;
  • Desenvolver a cooperação entre os alunos e certas formas simples de ensino mútuo.[15]
Para o atendimento dessas competências, urge um novo olhar do educador a respeito de sua formação, sua práxis, seus alunos, de sua gestão em sala de aula, e de seus relacionamentos com seus pares.
De acordo com Libâneo, para a identidade profissional dos professores e o desenvolvimento de competências são necessários certos requisitos profissionais que tornam alguém um professor ou uma professora. Esse conjunto é denominado profissionalidade.[16] Contudo a profissionalidade, segundo Libâneo, supõe a profissionalização. Esta última refere-se às “condições ideais que venham a garantir o exercício profissional de qualidade” (p.75), tais como: “formação inicial e formação continuada nas quais o professor aprende e desenvolve as competências, habilidades e atitudes profissionais; remuneração compatível com a profissão [...]” (p.75).

De acordo com as duas últimas visões apresentadas, Perrenoud e Libâneo, a ação docente traduz-se em conflitos entre a teoria e a prática, o ideal e o real. Nossa desejo, portanto, é que o professor, através da educação do olhar, saiba mediar essas realidades, para que cumpra efetivamente o seu papel enquanto educador cristão.

Esdras Costa Bentho é teólogo, pedagogo, pesquisador na área de formação de professores, e educação infantil.

www.teologiaegraca.blogspot.com


[1] BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.57.

[2] Id.Ibid., p.57.

[3] WEFFORT, Madalena Freire (et. al.) Educando o olhar da observação. In: WEFFORT, Madalena Freire (et. al.) Observação, registro, reflexão. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1997, p. 10-36.

[4] BAKHTIN, Mikhail, id.ibid.,p.57.

[5] No contexto original desta citação, Heidegger está filosofando com seus alunos em certo auditório a respeito da Verdade e ser: Da essência originária da verdade como desvelamento. Daí a presente aplicação usada pessoalmente pelo filósofo. Ver HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.96.

[6] HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.96.

[7] Id.ibid.,p.96.

[8] Id.Ibid.,p.XVII

[9] BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.58.

[10] ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 16,22.

[11] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001, p.103.

[12] Id.Ibid.,pp.57-8.

[13] PERRENOUD, Philippe. 10 Novas competências para ensinar. Porto Alegre: Editora Artmed, 2000, p.55-65.

[14] Id.Ibid., p.56.

[15] Id.Ibid., p.57.

[16] LIBÂNEO, J.Carlos. Organização e gestão da escola: teoria e prática. 5.ed., rev. amp. Goiânia: MF Livros, 2008, p. 75.

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