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quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A Hermenêutica de Joaquim Severino Croatto e sua Interface com a Teoria Hermenêutica de Paul Ricoeur


Paul Ricoeur (1913-2005)

(CROATTO, J. S. Hermenêutica bíblica. São Paulo: Edições Paulinas, 1986).




1. Coatto parte da perspectiva de que a Bíblia não é um depósito fechado que já “disse” tudo, mas de um texto que “diz” no presente, mas que fala como “texto”, não como palavra difusa e existencial que somente tem o sentido genérico de provocar uma decisão pessoal.

2. A tensão entre um texto fixado em um horizonte cultural que já não é o do leitor, e ser uma palavra viva que pode mover a história, somente se resolve por meio de uma leitura frutífera. Nisto se enuncia o problema da hermenêutica bíblica. A obra, Êxodo: uma hermenêutica da libertação (1981, Paulinas) expressa tal perspectiva hermenêutica. Ali, por meio da reinterpretação, atualiza-se o sentido de um acontecimento convertido em matriz querigmática.

3. Para Croatto, quanto mais renovadora a vida cristã, consequentemente a teologia, tanto mais implicitamente se exercita a hermenêutica, que sofre resistência pelas práticas e hermenêuticas tradicionais, principalmente em contextos de dominação cultural, econômica, política e religiosa.

4. O projeto hermenêutico do autor, tanto de textos como de acontecimentos, abrange três aspectos para a compreensão hermenêutica: (1) o lugar privilegiado da hermenêutica é a interpretação dos textos; (2) o intérprete condiciona sua leitura por uma espécie de pré-compreensão, que surge do seu próprio contexto vital; (3) o ato hermenêutico faz crescer o sentido do texto que se interpreta.

5. A partir da teoria hermenêutica de Paul Ricoeur – de que a hermenêutica é “a teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação de textos” – Croatto entende que texto e acontecimento (ou práxis), já se condicionam mutuamente desde o ponto de vista hermenêutico. Assim, a leitura da Bíblia está circunscrita por dois momentos existenciais, ou dois pólos históricos: a leitura da Bíblia a partir de uma prática de fé, e de uma Bíblia que remete para as grandes ações salvíficas de Deus. O texto, assim, está no meio, entre esses dois horizontes de interpretação.

6. O pensamento hermenêutico de Croatto faz referência à hermenêutica ricoeuriana, principalmente quando entende que a hermenêutica bíblica não é distinta da filosófica, sociológica, literária. Há apenas uma hermenêutica geral, da qual existem muitas expressões regionais”, afirma o autor citando Ricoeur.

7. Entende o autor que um dos métodos para se ter acesso ao texto bíblico é o da hermenêutica. Contudo, reconhece que tanto a noção hermenêutica de Bultmann, Fuchs e seus continuadores (pré-compreensão existencial, demitização; interpretação existencial e a linguagem como processo hermenêutico [“acontecimento da linguagem”]) não é suficiente. Para compreender a hermenêutica em toda riqueza é necessário fazer um desvio pelas ciências da linguagem. Assim descreve:

“Uma vez que a hermenêutica tem a ver com a interpretação de textos – ou de acontecimentos codificados na linguagem –, é mister situá-la sobre o fundamento da semiótica, a ciência dos signos, cuja expressão mais compreensiva é a linguagem em seu sentido restrito. Outra coincidência reside no fato de que tanto a hermenêutica como a semiótica preconizam a leitura como produção (e não repetição) de sentido. À primeira vista estamos diante de um paradoxo: A hermenêutica parece estar ligada à diacronia, ao devir do sentido, à semântica ou transformação do sentido das palavras ou dos textos, ao passo que a semiótica concede um lugar privilegiado à sincronia, à simultaneidade, às leis estruturais que dirigem a realização da linguagem. Falamos, porém, de “desvio, não de fusão nem de identificação. São enfoques diametralmente opostos, porém, não contraditórios, mas sim, convergentes. Ao regressar da semiótica à hermenêutica, esta última se evidenciará solidamente fundamentada. Empreendemos, pois, um longo caminho, ao final do qual a hermenêutica bíblica se mostrará melhor iluminada.” (CROATTO, 1986, p.16).

8. Deste ponto é evidente o processo hermenêutico seguinte, que se realiza na autonomia do texto:

a) O desaparecimento do emissor (autor) original. O autor morre no próprio ato de codificar sua mensagem. A inscrição do sentido em um relato ou texto é um ato criativo. O autor desaparece como entidade que fala, e a quem se pode perguntar pelo sentido daquilo que diz. O autor é um pressuposto linguístico. O narrador é o próprio texto.

b) O desaparecimento do primeiro interlocutor, destinatário (narratário). Há uma troca dos destinatários da mensagem, que pretende ter uma significação permanente ao longo de gerações e séculos. O surgimento de um novo receptor da mensagem, situado em um novo horizonte de compreensão, distancia ainda mais o texto de seu marco original e do contato com seu autor. “Quando alguém fala, transmite uma mensagem (linguagem locucional), fá-lo, contudo, com força ou intensidade determinadas (linguagem inlocucional expressada pela entonação, gestos, etc.) e com um efeito que faz parte da mensagem (linguagem perlocucional).” (CROATTO, 1986, p.20). – [abordagem de natureza ricoeuriana).

c) Desaparecimento do horizonte do primeiro discurso, seja porque o contexto cultural ou histórico não é o mesmo, seja porque os destinatários atuais que recebem a mensagem têm um outro “mundo” de interesses, preocupações, cultura, etc.

Nisto se realiza a passagem da semiótica para a hermenêutica com suas três distanciações, que marca o “fechamento” do sentido: uma distanciação lógica (“não é temporal e nem espacial”, afirma o autor), e a segunda, consequente àquela: o discurso se cristaliza em um “texto” transmitido, produtor de sentido. Substitui-se assim, o horizonte finito do autor pela infinitude textual. O relato se abre novamente a uma polissemia, que não somente é potencial como ao nível da língua, mas potenciada por aquela rede de significado que é a obra. Deste modo, uma terceira distanciação hermenêutica se produz entre o texto/escritura e sua releitura.

9. Quanto maior a distância em relação ao autor, tanto maior dimensão adquire a releitura de um texto. Inversamente, quanto maior é a riqueza semântica de um relato, mas distante está o autor da mente do intérprete. Nisto, maior significação tem o texto pelo que diz do que por aquele que o diz. Como já assinala J. Greimas, que a “pluralidade de leituras sugeridas pela prática semiótica não se deve ao fato de que um texto seja ambíguo, mas sim que é suscetível de dizer muitas coisas ao mesmo tempo” (apud CROATTO, 1986, p.23).

10. O desaparecimento do autor de um texto, o deslocamento dos destinatários, a troca do contexto de vida que engendra a pergunta sobre a mensagem, significam uma distanciação em relação à primeira produção de sentido, a do ato do discurso.

11. O desaparecimento do autor de um texto, o deslocamento dos destinatários, a troca do contexto de vida que engendra a pergunta sobre a mensagem, significam uma distanciação em relação à primeira produção de sentido, a do ato do discurso.

12. Quanto maior é a distância, maiores são as perspectivas de releitura do texto. Quando maior é a distância, mais fecunda pode ser a exploração da reserva-de-sentido do texto. O exegeta está imerso em uma tradição, em um contexto-histórico e, portanto, é sujeito de determinadas práticas sociais. Tudo isso condiciona sua leitura da Bíblia como “releitura”.

13.  Croatto relaciona práxis e interpretação. Segundo ele, o ponto de partida de um texto é alguma forma de experiência: uma prática, um fato significativo, uma cosmovisão, um estado de opressão, um processo de libertação, uma vivência de graça e salvação, entre outros. Isto é chamado de “acontecimento”. Toda ação humana – individual, comunitária, nacional – é uma forma de acontecimento.

14. Da infinita rede de práticas humanas, de experiência sócio-históricas, surgem algumas práticas, por uma razão ou outra, especialmente significativas, que são logo recolhidas em uma palavra. Dois fenômenos hermenêuticos que se operam: Por um lado, a palavra que surge do acontecimento para narrá-lo ou celebrá-lo está efetuando uma seleção, privilegiando uma experiência e deixando na sombra muitas coisas. Por outro lado, esta palavra está interpretando este acontecimento no próprio ato de narrá-lo. Toda leitura dos fatos se faz a partir de um determinado lugar e, portanto, com uma determinada perspectiva.

15. Deste modo, tem-se uma relação de sentido. Neste nível, um fato é compreendido como expressão de sentido de outro, que, por sua vez, vai se configurando como fato fundante. Por exemplo, a passagem do Jordão é interpretada pela tradição israelita à luz da passagem do mar na saída do Egito. Ninguém, contudo, pode afirmar que aquela é efeito desta. É importante, por isso, diferenciar entre causalidade e sentido.

16. Um acontecimento pode produzir sentido e manifestar-se em outro fato distinto daquele. É visto assim como gerador em relação aos outros. Ao ser retomado na palavra como fato significativo, este manifesta um “mais-de-sentido” que não era visível no momento de sua própria realização. Neste ponto é que a leitura “historicista” dos textos bíblicos é empobrecedora. Afirma:

Querer ler os fatos como se tivessem acontecido na forma em que estão contados é roubar-lhes é roubar-lhes a distância hermenêutica que novamente os fez ser significativos. A redação atual dos relatos bíblicos tem a vantagem hermenêutica de estar muito distante dos acontecimentos. Essa distância os enriqueceu e carregou de sentido. Por isso encaramos novamente o papel hermenêutico da “distanciação”, o qual não deve ser reduzido somente aos textos. Tem lugar também na compreensão dos fatos históricos. (CROATTO, 1986, p.37).

17. Assim, se um fato original amplia sua significação através das leituras que nele se fazem à distância, incorporando nele novos fatos, (como a passagem do Jordão é retroprojetada para a passagem do mar no Egito), verifica-se também o processo inverso. Aquela leitura enriquecedora, por sua vez, recarrega de sentidos os acontecimentos ou as práticas a partir das quais se opera. O êxodo difunde sua significação sobre a posse da terra. O símbolo da passagem das águas funciona nas duas direções e une os acontecimentos da libertação e da posse da terra.

18. Tais asseverações hermenêuticas trazem consequências para a teologia da inspiração das Sagradas Escrituras no contexto tradicional, onde o autor é tão valorizado quanto o texto. Uma vez que a doutrina da inspiração afirma que Deus inspira os autores para escrever os livros que formarão o cânon bíblico e a referida presença de Deus é a garantia da inerrância, a ênfase nos autores dos textos torna-se ultrapassada, pois não considera que o autor morre na produção do texto. Uma pessoa lê um texto e não o seu autor. Para Croatto, resumir a inspiração bíblica nos hagiógrafos é uma forma de “historicismo” (para Ricoeur uma “interpretação psicologizante do Espírito Santo) e, por mais que se suponha o contrário, deixa o texto desprotegido desse véu sagrado. Afirma que “que validade tem, então, a releitura desses têxtis que recolhem uma reserva-de-sentido não prevista pelo autor?” (CROATTO, 1986, p.43).

19. Para Croatto, a doutrina da inspiração tradicional parece deficiente em outro aspecto: provoca um curto-circuito entre “Deus-que fala/hagiógrafo/texto”. Deus inspira o hagiógrafo para que escreva o texto. O caminho de chegado do texto canônico é o Deus que atua na história. O Deus que fala (= a palavra de Deus) é a leitura, a partir da ótica da fé, do Deus da história salvífica.

20. De qualquer forma, se a inspiração, como símbolo, tem relação com a verdade dos textos bíblicos, não se deveria centrá-la sobre os autores, mas nos próprios textos. Para Croatto, a inspiração se entende melhor como fenômeno textual. Se o texto é inspirado, toda releitura da Bíblia adquire um sentido de alguma forma inspirado, mesmo naquilo que tem de “reserva” e ultrapassa a intensão de seu autor.

21. A conclusão parece óbvia: Se toda leitura é produção de sentido e se faz a partir de um determinado lugar ou contexto, então resulta que o verdadeiramente relevante não é o “ATRÁS” histórico de um texto – o qual por certo NÃO SE PODE NEGAR –, mas o seu “ADIANTE”: o que ele sugere como mensagem pertinente para a vida daquele que o recebe ou busca. Como texto polissêmico que é, a sua leitura é sempre exploradora. O texto desprende para diante um “mundo” de possibilidade, que o leitor pode sintonizar com o seu próprio mundo. A Bíblia é um texto aberto.
______________

CROATTO, J. S. Hermenêutica bíblica. São Paulo: Edições Paulinas, 1986.
RICOEUR, P. Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Porto: Rés-Editora, 1989.

SUGESTÕES DE PERGUNTAS DE ACORDO COM O MODELO DE QUESTÕES DO ENADE
QUESTÃO 1
Tomando sempre por guia as categorias da hermenêutica geral, abordarei agora, a categoria a que chamei a “a coisa do texto” ou o “mundo do texto”. Posso dizer que é a categoria central, tanto para a hermenêutica filosófica como para a hermenêutica bíblica. Todas as outras categorias se articulam nela: a objetivação pela estrutura, a distanciação pela escrita são apenas as condições preliminares para que o texto diga alguma coisa que seja a “coisa” do texto; à quarta categoria – a compreensão de si – dissemos como é que ela se apoia no mundo do texto para chegar à linguagem. A “coisa” do texto, eis o objeto da hermenêutica. Ora a coisa do texto é o mundo que ele explana diante de si.
RICOEUR, P. Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Porto: Rés-Editora, 1989, p. 131. 

De acordo com o texto,
A. a análise ignora o estado da linguagem ainda como discurso, não considerando os estágios sucessivos de relações com a fala, a escrita, obras de discurso e projeção do mundo.

B. a compreensão de si desempenha um papel independente do texto, na qual o horizonte do intérprete ignora por completo o mundo da obra.

C. na hermenêutica a noção de texto tem um papel condutor, na qual o mundo da obra é o centro de gravidade da questão hermenêutica.

D. compreender um texto é entender a mente de seu autor e de como ele interpreta o mundo que o cerca.

E. maior importância tem o que diz do que o que foi dito.

QUESTÃO 2.

Uma vez que a hermenêutica tem a ver com a interpretação de textos – ou de acontecimentos codificados na linguagem –, é mister situá-la sobre o fundamento da semiótica, a ciência dos signos, cuja expressão mais compreensiva é a linguagem em seu sentido restrito. Outra coincidência reside no fato de que tanto a hermenêutica como a semiótica preconizam a leitura como produção (e não repetição) de sentido. À primeira vista estamos diante de um paradoxo: A hermenêutica parece estar ligada à diacronia, ao devir do sentido, à semântica ou transformação do sentido das palavras ou dos textos, ao passo que a semiótica concede um lugar privilegiado à sincronia, à simultaneidade, às leis estruturais que dirigem a realização da linguagem.
CROATTO, , J. S. Hermenêutica bíblica. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p.16.

De acordo com o texto

A. semiótica e hermenêutica são enfoques opostos mas convergentes.

B. semiótica e hermenêutica são enfoques que se contradizem mutuamente.

C. a hermenêutica supera a semiótica por estabelecer o sentido exato do texto.

D. a semiótica supera a hermenêutica pela diversidade de sentido.

E. com ambas disciplinas o sentido de um texto não é possível.

QUESTÃO 3

O desaparecimento do autor de um texto, o deslocamento dos destinatários, a troca do contexto de vida que engendra a pergunta sobre a mensagem, significam uma distanciação em relação à primeira produção de sentido, a do ato do discurso.
Considerando o enfoque hermenêutico do texto e sua importância para a pastoral, analise as afirmações abaixo:

I. Um acontecimento pode produzir sentido e manifestar-se em outro fato distinto daquele. Ao ser retomado na palavra como fato significativo, este manifesta um “mais-de-sentido” não visível no momento de sua própria realização.

II. O desaparecimento do autor impossibilita a interpretação de um texto.

III. Quanto maior é a distância, maiores são as perspectivas de releitura do texto.

IV. A distância, o desaparecimento do autor e o deslocamento do destinatário marcam a hermenêutica bíblica clássica.

É correto apenas o que se afirma em:

(A) I.
(B) II.
(C) I e III
(D) II e IV

TEOLOGIA & GRAÇA: TEOLOGANDO COM VOCÊ!



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