DÁ INSTRUÇÃO AO SÁBIO, E ELE SE FARÁ MAIS SÁBIO AINDA; ENSINA AO JUSTO, E ELE CRESCERÁ EM PRUDÊNCIA. NÃO REPREENDAS O ESCARNECEDOR, PARA QUE TE NÃO ABORREÇA; REPREENDE O SÁBIO, E ELE TE AMARÁ. (Pv 9.8,9)

terça-feira, 5 de julho de 2016

A Identidade da Igreja na Modernidade Líquida


Introdução

Os cristãos pentecostais brasileiros, com raras exceções, refletem profunda e adequadamente a respeito da identidade da Igreja. Exceto pelo conhecimento propedêutico da eclesiologia de matriz estrangeira e pela evangelização motivada pela urgência escatológica, pouco, em um século de história, se tem avançado em relação ao tema. A eclesiologia pentecostal no Brasil é implícita, focada na experiência e indutiva. Não parte de um processo de reflexão teológica que leva à práxis, muito menos do reconhecimento de sua identidade e natureza, mas do exercício individual dos carismas, enquanto mordomia que o indivíduo convertido e batizado no Espírito realiza.

Todavia, não farei uma análise diacrônica da identidade da Igreja. julgamos ter cumprido esse desiderato em nossa obra Igreja Identidade & Símbolos, a qual remetemos o leitor. Nossa proposta é analisar de modo sincrônico a identidade e natureza da igreja, sem, no entanto, nos determos sistematicamente nas várias características identitárias das igrejas da atualidade. Buscamos, pelo contrário, uma resposta sociológica e somente depois teológica, a fim de proporcionar ao ledor uma visão mais ampla da problemática. Para tanto, discutiremos algumas questões relacionadas às identidades na modernidade de Baugman, Giddens e Castells, com uma interface em outros teóricos da modernidade, como Touraine, Hall (entre outros) e sem nos esquecer de Weber e Durkheim. E a seguir, trataremos das leituras teológicas a respeito do tema, segundo Brunner, Pannenberg, Barth, Moltmann.

Nosso objetivo não é exaurir o assunto, mas fornecer ao leitor uma análise sintética de algumas, não todas, discussões concernentes à identidade da Igreja.

As Cidades Invisíveis e a identidade da igreja

No criativo e ficto diálogo elaborado por Ítalo Calvino em As Cidades Invisíveis, Marco Pólo diz ao grande Kublai Khan:

Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles.1

Permita-me o leitor à seguinte paráfrase, supondo que esse diálogo tenha ocorrido entre um missionário e um líder tribal, que resiste a cultura cristã para manter a identidade de sua tribo:

Você sabe melhor do que ninguém, sábio líder, que jamais se deve confundir Jesus e o Cristianismo com o discurso das igrejas que os representam. Contudo, existe uma ligação entre eles.

De acordo com o personagem Marco Pólo, a única forma de representar adequadamente a cidade Olívia é descrevendo, através do discurso, a prosperidade da cidade que, embora rica, com “suas almofadas franjadas nos parapeitos dos bífores”, está envolta “por uma fuligem e gordura que gruda nas paredes das casas” 2Assim também a Igreja. Não há como descrever adequadamente a sua identidade se não falarmos de sua riqueza e impoluta beleza e também da fuligem e gordura incrustada em sua estrutura. A estética e opulência da città fazem parte de seu estado e criação originais, mas a tisne e nediez foram acrescentados depois. Tal qual Olívia, “na aglomeração das ruas”, onde os guinchos manobravam comprimindo os pedestres contra os muros, as igrejas pululam nos guetos e ruelas dos grandes centros disputando espaços e atenção dos transeuntes, comprimindo-os.

Todavia, a identidade da cidade Olívia não está em seus suntuosos palácios de filigranas almofadas, mas nos personagens que nela vivem. A identidade da metrópole não se confunde com suas magníficas construções. São os sujeitos, com o que são e produzem, que lhe dá sentido. Para melhor descrever a cidade, Marco Pólo afirma que seria necessário usar a metáfora da fuligem, dos chiados de rodas, dos movimentos repetidos, dos sacarmos. A mentira, diz o veneziano, não está no discurso, mas nas coisas. A chave-hermenêutica está na relação entre o discurso e os fatos, entre a realidade e as imagens verbais.

Conceito de Identidade

Conceituar o termo identidade a partir de seu étimo latino, idem, “o mesmo”, não é uma tarefa hercúlea; entretanto, descrever os variegados usos do vocábulo nas ciências sociais semelha-se ao desafio de revelar o enigma da esfinge. Tal qual a solução de Édipo, a resposta se encontra no próprio homem, uma vez que somente ele dá sentido social à linguagem e às coisas. Esses significados sempre são vistos a partir da perspectiva da sociedade em que o homem está inserido ou que nela se move.

A identidade e atributos que caracterizavam o homem no início da modernidade não são mais os mesmos na sociedade contemporânea. Para Hall existe hoje uma “crise de identidade”, como parte de um processo de mudança que desloca as estruturas e processos da sociedade e abalam os quadros de referência que outorgavam aos indivíduos “uma ancoragem estável no mundo social”. Segundo o autor

As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado3.

Essa mudança estrutural ocorrida já no final do século XX é responsável pela fragmentação e transformações culturais de classes, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que até então dava ao sujeito um sentimento de integração e pertencimento, que não existem mais. O indivíduo, afirma Hall, está deslocado, descentrado “tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmo”4, o que constitui uma crise de identidade. Essa identidade em processo de construção/desconstrução é fragmentada e contraditória, pois resulta das transformações nas instituições religiosas, sociais e familiares as quais o indivíduo pertence. Assim, a crise de identidade do sujeito é provocada pela crise institucional5. Observe, por exemplo, uma instituição religiosa que diferentemente dos tempos de outrora, não consegue, por muitas variáveis, manter os valores e tradições espirituais e culturais que a sustentaram e que por eles fora identificada desde a sua fundação. O fiel vive entre dois mundos completamente antagônicos: o que procura manter os traços retilíneos da tradição original e o da renovação, que considera os costumes e tradições antigas retrógados e incapazes de falar ao homem moderno. Nesse vácuo está o crente e sua crise de pertencimento na modernidade líquida.


Notas

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Da História à Palavra: A Teologia da Revelação em Paul Ricoeur


No atual contexto de inculturação da fé cristã, Paul Ricœur (1913 – 2005) não fornece apenas uma epistemologia para a hermenêutica teológica, mas também exemplifica esse saber por meio dos textos teológicos que escreveu[1]. A perda do sentido do símbolo e da sensibilidade do homem moderno para interpretá-lo constitui para o hermeneuta de Valence um problema que ameaça a compreensão da Escritura e a possibilidade de o sujeito ler sua própria realidade a partir dela. Porquanto para Ricœur não há compreensão que o homem faça de si mesmo que não seja mediatizada por meio de signos, símbolos e textos. A hermenêutica do si depende da linguagem usada para traduzir a experiência humana (signos), as expressões de sentido plurívoco (símbolos) e a mediação pela escrita e literatura, que se liberta dos limites do diálogo vis-à-vis e se torna texto do discurso.

          Paul Ricœur não escreveu qualquer tratado exclusivo de hermenêutica bíblica ou teológica, mas tratou exaustivamente do tema em diversos artigos publicados em revistas acadêmicas; alguns, escritos especificamente para os periódicos e, outros, colhidos de suas conferências. Além de ser profícuo no tema, desenvolveu um temário teológico rico e variegado: Deus, revelação, testemunho, kerygma, esperança, fé, profecia, demitização, criação, soteriologia[2], Reino de Deus, entre outros. Manteve também um diálogo construtivo com a teologia de R. Bultmann, J. Moltmann, A. Schweitzer, C. H. Dodd e escreveu diversos sermões e interpretações de perícopes bíblicas. Atualmente o Brasil dispõe de uma bibliografia vasta e diversa do literato, mas ainda resta muito a ser traduzido[3].

          Contudo, a recepção da teoria hermenêutica de Ricœur gira em torno do enlace e do divórcio. Neste último estão as correntes fundamentalistas que não reconhecem a contribuição efetiva da teoria do autor pelo fato de estarem presas ao hiperliteralismo[4], enquanto no primeiro encontram-se teólogos mais abertos ao diálogo ricœuriano, principalmente após o Vaticano II. É possível, portanto, desenvolver uma hermenêutica teológica a partir da teoria de Ricœur que contribua significativamente à reelaboração e interpretação das doutrinas fundamentais da teologia protestante e católica? O projeto em pauta procura um diálogo-dialético[5] entre a hermenêutica textual e teológica de Ricœur e a teologia fundamental a partir da hermenêutica da ideia da revelação. Cônscio de que a hermenêutica de si, do testemunho e do texto constituem excelentes metodologias para a reflexão e projeto teológico de matiz pentecostal, uma vez que o movimento se fundamenta na experiência do indivíduo, no testemunho e na Escritura.

  Por conseguinte, a escolha do título procede de uma expressão de Ricœur, colhida de uma de suas conferências teológicas: “A marca de Deus está na história antes de estar na palavra”[6]. À vista da frase-síntese, articulou-se o tema: Da História à Palavra: A Teologia da Revelação em Paul Ricœur.

          Embora tal premissa rompa com a ontoteologia grega e desvele a Deus na história como o actante último[7], no qual a fé de Israel e da Igreja primeva se combinam e fundamentam-se mutuamente, conforme os vários gêneros narrativos da Escritura, torna-se necessário algumas explicações fundamentais.

          Inicialmente, Ricœur entende uma estreita relação entre narração e história. A força da narração não é apresentar Deus como uma ideia, um ideal, princípio universal ou figura espacial do cosmo, mas como uma figura histórica, que age historicamente. Deus é o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. Ele é o Atuante da grande gesta de libertação, sendo Ele mesmo solidário dos acontecimentos fundadores nos quais a comunidade de interpretação se reconhece enraizada, instaurada e instituída. Deste modo, na medida em que o gênero narrativo é primeiro, a marca de Deus está na história antes
de estar na palavra. 

A palavra, portanto, é segunda, na medida que confessa o traço fundamental de Deus no acontecimento[8], seja na escolha de Abraão, seja no Êxodo (et passim) para os israelitas, ou na Ressurreição de Cristo para a comunidade primitiva. Tais acontecimentos não se limitam a transmitir uma tradição, mas marcam uma época, tecem uma história. Afirma Ricœur


Esses acontecimentos formaram uma época porque têm o caráter duplo de erigir a comunidade e de livrá-la de um grande perigo, o qual pode ter, aliás, natureza bem diferente. Falar aqui de revelação é qualificar esses acontecimentos em sua transcendência em relação ao curso ordinário da história. Toda a fé de Israel e da Igreja primitiva se combina aqui na confissão do caráter transcendente desses acontecimentos nucleares, instauradores, instituintes.[9]

          Não é a narração como acontecimento que fala por si mesmo, mas o acontecimento da narração como é apresentada pelo narrador a uma comunidade de fé. É, deste modo, uma narração confessante que não se distingue da coisa e dos acontecimentos contados na história. O narrador torna-se ele mesmo profeta por meio de quem o Espírito também fala. E muito embora os gêneros profético e narrativo sejam distintos, eles se assemelham à medida que a profecia, à sua maneira, também é narração.

          Afirma o teólogo dominicano francês, C. Geffré, amigo e intérprete de Ricœur, que o fato histórico elaborado não tem a pretensão de ser a descrição do evento tal como se passou, mas o relato é elaborado teologicamente a partir de um ponto de partida histórico, mesmo que este último continue inacessível à arqueologia ou à crítica histórica. Há, portanto, uma distância entre o fato bruto, isto é, o fato histórico, e o fato elaborado, ou seja, o fato histórico interpretado pela comunidade de fé. O fato elaborado é construído teologicamente para a comunidade crente e fundamentado no fato histórico, mesmo que este, como afirmou-se anteriormente, continue nalgumas vezes inacessível à crítica histórica. O fato elaborado reconstrói o fato histórico sem a pretensão de corresponder ipso facto ao evento. Por conseguinte, a Revelação como evento precede a Revelação como palavra[10]. E se os grandes relatos de milagres das Escrituras são de fato verdade de fé (o êxodo realizou-se mediante “sinais e milagres”, Dt 4.34, e “sinais e maravilhas”, Dt 7.19) não são suscetíveis à pesquisa histórica. Não se quer afirmar portanto que se trata de elaboração de linguagem destituída de evento real, ou que o agir de Javé na história está oculta nos eventos e que são evidentes somente aos olhos da fé, mas tão somente que tais relatos milagrosos, a partir de uma perspectiva moderna, são meta-históricos e por isso estão longe do domínio da experiência histórica.[11] Com isto não se quer também dar razão ao projeto hermenêutico do teólogo alemão Rudolf Bultmann (1884-1976) – demitologização –, muito menos ao de Paul Tillich (1886-1965) – desliteralização – pelo contrário. A teologia somente pode ater-se à intenção realista das narrações bíblicas se levar a sério seu testemunho de um agir de Deus nas circunstâncias reais que pessoas experimentaram e que em parte foram moldadas por estas, e se também hoje se perguntar pelo agir de Deus na realidade daquela história, tal como ela se apresenta ao julgamento moderno, ainda que isso não possa acontecer sem juízo crítico a respeito da historicidade de muitos traços particulares de textos bíblicos e de narrativas inteiras – nisto concorda o teólogo alemão Wolfhart Pannenberg (1928-2014) em sua Teologia Sistemática[12].

          Não somos escusados de frisar, no entanto, que o antigo Israel entendia como história o agir de Deus (Js 24.31; Jz 2.7,10; Sl 33; Is 5.12). Era inconcebível para o profeta, o sacerdote, o sábio e outras instituições do Antigo Testamento uma “meta-história” ou “uma história de fundo, que se encontra atrás da verdadeira história”[13]. Como afirma Pannenberg, “para Israel, a própria história dos feitos de Deus é a verdadeira história, que abarca toda atividade humana”. Portanto, a teologia deve insistir na convicção do agir de Deus na história, inclusive no plano da facticidade, não abrindo mão do conceito de história[14]. A Revelação está assim ligada ao fato de que o conhecimento de Deus se dá somente a posteriori, no retrospecto do seu agir na História[15].

          Não é correto, portanto, relacionar a perspectiva de história ricœuriana com a de Bultmann, ainda que Ricœur nutrisse uma admiração por este, mas de integrá-la ao conceito pannenbergiano. E, como atesta Manuel Fraijó, o entendimento de história em Pannenberg distingue-se tanto do projeto existencialista de Bultmann quanto do horizonte transcendental de Karl Rhaner (1904-1984)[16]. Portanto, a perspectiva de Revelação e História mantida no texto ricœuriano em apreço reconhece em diálogo-dialético com Pannenberg o caráter arreligioso da Revelação como “texto sempre aberto” a uma nova contextualização. Logo, a pretensão do Cristianismo de oferecer ao mundo a Revelação de Deus é plausível porque é a religião, senão a única, que vê na história o lugar da manifestação de Deus. Sendo assim, como interpreta Juan Camino, na teologia pannenbergiana a Revelação definitiva de Deus em Cristo Jesus não encerra ou conclui o caminho da história reveladora[17], como acontece com algumas supostas revelações que se voltam ao passado em suas representações míticas. Pelo contrário, em seu caráter antecipatório (verdade proléptica) atua como luz de uma história de revelação que se faz abrir adiante, no futuro, como obra do mesmo Deus já manifestado no Filho que haverá de Voltar (parousia). Isto é o que revela a escatologia neotestamentária e a mensagem pascal cristã ao anunciar a realidade definitiva da vida da ressurreição que vence a morte como foi real em Jesus, mas simultaneamente para os cristãos ainda está por vir, designando uma tensão entre o “já” da presença da salvação e o “ainda não” de sua consumação escatológica. O cristão está convicto e seguro de sua ressurreição futura não pelo fato desta ser atestada pela razão histórica mas pelo fato de que Jesus em sua própria ressurreição antecipou e garantiu a fidelidade da promessa divina da ressurreição dos santos. Do mesmo modo a religião de Israel, diferentemente das demais religiões do Antigo Oriente, não encontra o seu Deus apenas nos tempos originários presumivelmente imutáveis, mas também no futuro esperançoso o qual remete para as promessas de Javé e para as experiências de sua fidelidade nos acontecimentos relidos como cumprimento daquelas promessas[18]. Deus não abandona a criatura que aceita sua oferta de Aliança. Assim, o conceito hebreu da história vai se distinguindo paulatinamente do esquema mítico de um tempo originário determinante, abrindo-se para a confiança num futuro certo, mas imprevisível de Deus, na qual resta ao crente a confiança na fidelidade e verdade de Javé[19].

Continua.......


[1] Ricœur não se considerava um exegeta e muito menos um teólogo, mas tratou de temas ligados à teologia adaptando-os à sua competência como filósofo da linguagem, como será visto no desenvolvimento da pesquisa. Ver Ricœur, P. A hermenêutica bíblica. São Paulo: Loyola, 2006, p. 133. É difícil elaborar uma taxionomia dos escritos teológicos do autor, o que torna subjetiva qualquer espécie de classificação em graus de importância.
[2] A literatura cristã brasileira foi recentemente privilegiada pela tradução de um artigo ainda não publicado em francês (2012), cujo título, Mitos da Salvação e da razão, apresenta uma importante contribuição ricœuriana à soteriologia. Ricœur, P. Escritos e conferências 2: hermenêutica. São Paulo: Loyola, 2011. A obra traz na orelha do livro uma apresentação assinada pela Doutora Maria Clara Lucchetti Bingemer, PUC-Rio. Outra obra importante foi organizada e traduzida por Walter Salles e Fernando Nascimento por ocasião do Congresso Latino-Americano sobre a obra de Paul Ricœur, realizado em novembro de 2011 na PUC-Rio. Ver Nascimento, F.; Salles, W. Paul Ricœur: ética, identidade e reconhecimento. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2013. A obra traz os textos de alguns insignes intérpretes de Ricœur, entre eles Gilbert Vincent, Johan Michel, Jeanne-Marie Gagnebin, David Pellauer.
[3] Todavia, alguns textos ainda inéditos de Ricœur no Brasil foram traduzidos pela Universidade de Coimbra e podem ser acessados e obtidos por meio do site da instituição: http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/paul_ricoeur. Para outros escritos ainda inéditos no Brasil, ver www.fondsricoeur.fr.
[4] Neologismo criado a partir do prefixo “hiper” (posição superior, excesso), com o sufixo “ismo”, que denota “sistema ou doutrina”, acrescidos ao adjetivo “literal”. A interpretação fundamentalista absolutiza o sentido literal da Bíblia sendo, não raras vezes, acusado de bibliolatria. O teólogo batista Bernard Ramm afirma que os teólogos fundamentalistas são considerados “literalistas cabeça-dura” em suas interpretações da Escritura. Cf. Ramm, B. Protestant Biblical Interpretation. 3.ed., rev. Grand Rapids: Baker, 1970, p. 122, 146.
[5] Por “diálogo-dialético” entende-se a intrínseca relação que há entre a lógica argumentativa (dialética) com o dialogismo (arte do diálogo). A trajetória epistemológica de Ricœur apresenta-o como um teórico dialético-dialógico, sempre ocupado ouvindo, sempre atarefado argumentando. Ricœur chama essa característica dialógica de “tonalidade irénica”. Ver Ricœur, P. Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Porto: Rés-Editora, 1989, p. 17, 18.
[6] Ricœur, P. Escritos e conferências 2: hermenêutica. São Paulo: Loyola, 2011, p. 154. Ver ainda do mesmo autor: Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 191.
[7] Ou seja, um dos personagens significados pela própria narrativa e intervindo entre outros actantes dos feitos. Ver Ricœur, P. Escritos e conferências 2: hermenêutica. São Paulo: Loyola, 2011, p. 152. “[...] tudo o que dissemos atrás sobre as relações entre, por exemplo, a forma da narração e a significação de Javé como o grande actante da gesta [...] constitui a única introdução possível àquilo que chamamos mundo bíblico” [...]. Ver Ricœur, P. Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Porto: Rés-Editora, 1989, p. 132; Escritos e conferências 2: hermenêutica. São Paulo: Loyola, 2011, p. 152.
[8] Ricœur, P. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 191.
[9] Ricœur, P. Escritos e conferências 2: hermenêutica. São Paulo: Loyola, 2011, p. 152.
[10] Ver Geffré, C. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 105-107.
[11] Id. Ibid., p.103.
[12] Pannenberg, W. Teologia Sistemática. São Paulo: Academia Crista; Paulus, 2009, Volume 1, p. 315 [319], in passim.
[13] Id. Ibid., p. 318.
[14] Id., p. 318, 320.
[15] Id., p. 336.
[16] Fraijó, M. El sentido de la história: introducción al pensamiento de W. Pannenberg. Madri: Ediciones Cristiandad, 1986, p. 206.
[17] Camino, J. A. Martínez. Recibir la Libertad: dos propuestas de fundamentacion de la teologia en la modernnidad – Pannenberg y E. Jüngel. Madri: Universidad Pontificia Comillas de Madri, 1992, p. 54.
[18] Id., p. 202.
[19] Além da influência da teologia pannenbergiana, o hermeneuta francês encontra na teoria history making events, do filósofo judeu Emil Ludwig Fackenheim (1916-2003), fundamentos para sua hermenêutica teológica, todavia, não trataremos aqui.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016



O TRABALHO NA PERSPECTIVA CRISTÃ





I- O TRABALHO (EC 2.17-24; 6.7)
 

1. Civilização industrial e o trabalho (Jr 22.3,13; Am 8.4-6; Tg 5.4). Na civilização industrial, o homem está a serviço do sistema de produção e distribuição. O trabalho nessa perspectiva é uma atividade racional que se propõe a produzir bens para o consumo, satisfação das necessidades e felicidade do indivíduo, e progresso da civilização. Nesse aspecto, é valorizada a pessoa que trabalha e a que tem capacidade de consumir os bens produzidos. O ter vem à frente do ser. As instituições da sociedade industrial preparam e modelam o homem para fazer dele um “trabalhador”. O interesse não está no homem, em sua completa humanização, mas em sua capacidade de produzir e consumir cada vez mais. O indivíduo é preparado para ser “trabalhador”, “consumidor” em vez de um ser pleno, realizado e consciente. A exclusão social de um sem-número de pessoas, a situação desumanizante de milhões de trabalhadores nos países de Terceiro Mundo, as injustiças sociais e trabalhistas que lhes são cometidas, e o sucateamento das reservas naturais atestam a crueldade e desumanização da qual os trabalhadores e o mundo são vítimas.

2. Perspectivas bíblica e humana (Gn 2.4-15, 19; 1.28). O conceito bíblico do trabalho é muito distinto dos povos mesopotâmicos, e mais tarde também dos gregos. Na epopeia de Atra-Hasis, por exemplo, o trabalho é um castigo imposto aos homens para que os deuses inferiores sejam libertos dos sofrimentos advindos das atividades extenuantes.  Entre os gregos, Hesíodo afirmava que no paraíso os seres humanos deviam viver, assim como os deuses, livres de trabalho e labuta, pois a própria natureza proveria o necessário para a subsistência do homem. Todavia, na ótica bíblica, o trabalho realizado pelo homem reflete o exemplo do próprio Deus (Gn 2.1-3; Jo 5.17) e a efetivação do mandato dele (Gn 2.15). No hebraico, o termo usado para descrever a “obra” ou o “trabalho” de Deus (mela’khto) em Gênesis 2.2 é o mesmo para falar do “serviço” ou “trabalho” de José (Gn 39.11). O homem trabalha no paraíso com um propósito específico: “lavrar e o guardar” (Gn 2.5,15). O trabalho, portanto, é um meio de o ser humano desenvolver sua criatividade, potencialidade, transformar o mundo em cultura (“lavrar e guardar”) e realizar-se como humano, na plena efetivação da imagem de Deus no homem (Gn 1.26-28). Não é um modo de exploração dessas competências, mas do pleno aperfeiçoamento delas. Mediante o trabalho, o homem administra responsavelmente o mundo criado por Deus. O trabalho, contudo, deixa de ser lúdico para se transformar em peso quando o homem afasta-se do caminho proposto pelo Senhor (Gn 3.19). Primeiramente, a Bíblia afirma a responsabilidade do homem em cuidar do jardim (Gn 2.15), e somente depois, após o pecado e expulso do Éden, do extenuante trabalho do “suor do rosto” (Gn 3.17-19). Assim, não é o trabalho que é amaldiçoado, mas a terra: “Maldita é a terra por causa de ti” (Gn 3.17). Junto ao trabalho, Deus estabeleceu o descanso (Gn 2.2; Hb 4.4; Êx 23.12; Ec 5.12) e o direito de usufruir do fruto de suas mãos (Ec 3.13; 9.7-10). Afirmou certa vez Jó que “o homem nasce para o trabalho” (5.7).

3. O trabalho em o Novo Testamento (Ef 6.5-9). Jesus valorizou o trabalho, sendo ele próprio um carpinteiro (Mt 13.55; Mc 6.3). O Deus encarnado assumiu a cultura e o trabalho como expressões de dignidade humana e empregou diversas profissões de seu tempo como símbolos do Reino de Deus (Mt 13). Seus apóstolos também eram trabalhadores (Mt 4.18-20; 9.9; 1Co 4.12) e ressaltaram a dignidade do trabalho (Rm 4.4; 1Co 9.6; 1Tm 5.18; 2Tm 2.6), porquanto todo trabalho, sem exceção, tem a mesma dignidade. Contudo, combateram aqueles que deixavam de trabalhar por causa da iminente Vinda de Cristo (1Ts 4.11; 2Ts 3.10-12), e os que faziam do evangelho uma fonte de lucro, evitando assim, o trabalho braçal (1Tm 6.5). Ambos se eximiram de suas responsabilidades materiais esperando com isso agradar a Deus, seja ao esperar o seu retorno iminente, seja dedicando-se à pregação itinerante. Paulo, no entanto, repreende-os aberta e severamente (1Ts 4.11; 2Ts 3.10).


II- ambiente de trabalho (Gl 5.22)

1. Ambiente de trabalho saudável. É no ambiente de trabalho que se realiza boa parte das atividades profissionais. Independente de qual seja a profissão e o lugar de trabalho, a pessoa passa mais tempo com os demais profissionais do que com a própria família. Isto é suficiente para que cada profissional se dedique a cultivar um ambiente de trabalho saudável, onde seja possível a valorização do indivíduo, o respeito às diferenças, e a solidariedade. A má qualidade no ambiente de trabalho é responsável por muitos problemas: exclusão, isolamento, individualismo, estresse, frustrações, falta de entusiasmo, desmotivações e improdutividade. Coisas que afetam a saúde psicofísica da pessoa. É responsabilidade de todos cultivar um ambiente de trabalho saudável!

2. Construindo ambientes saudáveis (Rm 12.18; Mc 9.50; 1Pe 3.11). Infelizmente, a construção de um ambiente de trabalho saudável não depende exclusivamente de você. É responsabilidade de todos! Ele é construído na relação cotidiana dos profissionais e não poucas vezes esbarram nos valores e interesses do outro, que são diferentes dos seus (Mt 5–7) e, às vezes, da própria empresa. Todavia é necessário desenvolver uma relação de confiança, respeito, cooperação, cordialidade, imparcialidade e solidariedade, sempre respeitando a dignidade alheia e as diferenças (Rm 12.17-21; Pv 25.9-10).

3. Lidando com os conflitos (Pv 15.1,18; Ec 4.4). Os conflitos fazem parte das relações humanas e da vida em sociedade. Ele surge todas as vezes que os interesses, opiniões e tendências de alguém do grupo são incompatíveis com os do outro. É preciso que haja maturidade, paciência, compreensão e rapidez das partes para resolver os conflitos, uma vez que eles provocam rusgas nos relacionamentos e geram sentimentos negativos e prejudiciais, tanto para o profissional quanto para a organização (Pv. 3.29; 27.9; Mt 5.22-25; Ef 4.26). As diferenças estarão sempre presentes em qualquer ambiente de trabalho, os desacordos também. Não são necessariamente as diferenças e os desacordos que afetam a harmonia no trabalho, mas como o profissional lida nessas e com essas situações. A postura, o tom de voz, o modo de falar e de se comportar devem refletir segurança e maturidade quando tais situações surgirem. Os conflitos existem e podem contribuir para a resolução de problemas e maturidade afetiva dos profissionais.


III- OS superiores NO TRABALHO (Ef 6.5-9)

1. Relacionamento equilibrado. No trabalho, principalmente quando se está iniciando a carreira, o profissional ou aprendiz precisa lidar com alguns superiores: diretor, chefe, gerente, encarregado, outros. De modo geral, cria-se no ambiente de trabalho tanto uma relação profissional quanto de amizade, sendo necessário distinguir a ambas. Seja, portanto, diligente (Pv 22.29), humilde (Pv 25.6-7) de comunicação precisa (Pv 25.11), e trabalhando com satisfação (Ef 6.7). Não seja bajulador, puxa-saco, mas saiba elogiar os colegas e chefes sem exagerar (Pv 15.23). O bajulador é o profissional que elogia exageradamente aos superiores para obter algum benefício pessoal no ambiente de trabalho. Essa atitude pode prejudicar a imagem profissional entre os colegas, mesmo que funcione com certos chefes vaidosos. O bajulador procura manipular o outro e suas decisões com elogios. Todavia, o elogio sincero demonstra a vontade do profissional de estabelecer laços de confiança e reciprocidade (Sl 12.2; Pv 10.31; 12.6,18).

2. Obediência aos princípios divinos. A Bíblia ensina o cristão à obediência de coração aos superiores (Rm 13.7), como se estivesse submetendo-se ao próprio Cristo (Ef 6.5,7), porque esta é a vontade de Deus (Ef 6.6). Dificilmente alguém crescerá em sua profissão tomando atitude de insubordinação aos seus líderes. Estes, no entanto, devem liderar sem ameaças ou revanchismo, sabendo que Deus não faz acepção de pessoas (Ef 6.8-9).

3. Relacionamento com chefe incompetente. Essa é uma realidade em muitas profissões e empresas, lamentavelmente. O incompetente é inseguro, desconfiado, imaturo e invejoso e, às vezes, de difícil relacionamento. O que fazer? Procure trabalhar em parceria com ele; não o desonre; não comente as falhas dele com outros; suporte resignado os agravos. O chefe incompetente pode desestabilizar a equipe, colocar um contra o outro, abafar os talentos dos profissionais e ser responsável pelo mal ambiente de trabalho.


Conclusão
O relacionamento do cristão no trabalho deve ser impulsionado por uma atitude de temor e obediência aos princípios da Palavra de Deus e de respeito e cooperação com os colegas de profissão.

TEOLOGIA & GRAÇA: TEOLOGANDO COM VOCÊ!



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