"Será possível a exegese livre de premissas?"
“Resulta que uma compreensão, uma interpretação, sempre está orientada por um enfoque... Isto, porém, inclui que ela nunca está isenta de premissas, mas precisamente, ela está dirigida por uma compreensão prévia do assunto, consoante a qual ela pergunta ao texto" (O problema da Hermenêutica, 1950, p.206).
1. A exegese livre de preconceito.
Proposição fundamental: A rejeição do método da alegorese.
Bultmann distingue entre alegoria e alegorese. Alegoria consiste no próprio gênero literário que pergunta pelo sentido tencionado pelo texto; enquanto alegorese é uma forma de eisegese. Cita como exemplo de alegorese a interpretação de Fílon sobre uma idéia estóica, o uso de Dt 25.4 por Paulo em 1 Co 9.9, e o texto de Gn 14.14 em que os 318 servos de Abraão são interpretados como profecia da cruz de Cristo na epístola Barnabé (9.7s) . Isto posto, a interpretação alegórica, segundo Bultmann, só é válida quando é exigida pelo próprio texto. A alegorese, por outro lado,
"é uma forma crassa e infiel de abordar o texto; eisegese...” Está claro nestes casos que "o exegeta não ouve o que o texto diz, e sim fá-lo dizer aquilo que ele, o exegeta, já sabe de antemão.”
Segundo Bultmann, tanto um quanto o outro, somente pode ser demonstrado pela pesquisa histórica. Bultmann concluiu seu argumento afirmando que:
“Toda exegese que é dirigida por preconceitos dogmáticos não ouve o que o texto está dizendo, mas fá-lo dizer o que ela quer ouvir”.
3. A Exegese pode ser livre de preconceitos, mas jamais será livre de premissas
Para Bultmann, o fato de a exegese não ser livre de premissas não tem caráter fundamental, uma vez que o exegeta “está determinado por sua individualidade, isto é, por suas tendências e hábitos específicos, por seus dons e pontos fracos”.Assim, a investigação do exegeta é ampliada ou ínfima a partir de “seus dons” e “seus pontos fracos”. Neste sentido, o “exegeta elimina sua individualidade para educar um ouvir de interesse puramente objetivo.”
1. Bultmann perfila que o método histórico deve ser aplicado utilizando a exegese gramatical: “um texto deve ser interpretado segundo as regras da gramática...”, e, segundo o autor, levando os matizes estilísticos dos textos “... à exigência de que a exegese histórica observe o estilo individual do texto”. Estas duas regras desembocam na observação sincrônica e diacrônica da linguagem:
“a observação de que cada texto fala na linguagem de sua época e de sua esfera histórica... o exegeta precisa conhecer o condicionamento histórico da língua daquela época da qual provém o texto a ser explicado.”
2. Bultmann, a partir desse raciocínio, problematiza a respeito dos idiomatismos hebraicos e sua influência sobre o grego neotestamentário: “Onde e até que ponto o grego neotestamentário está determinado pela linguagem semítica?” Bultmann pressupõe então, que, o estudo das literaturas apocalípticas, rabínicas, dos textos de Qumran e da historiologia da religião semita são conditio sine qua non para uma compreensão satisfatória. Cita, de modo sintético, uma abordagem diacrônica do termo grego pneuma.
3. O método histórico para Bultmann, implica na premissa de que a história é uma unidade no sentido de uma contextura integrada de efeitos e por isso mesmo “.. a concatenação de curso histórico não pode ser quebrada pela intervenção de poderes sobrenaturais do além, significa portanto, que não pode haver ‘milagres’ nesse sentido”.
5. Bultmann considera o exercício de interpretar o texto historicamente como uma necessidade, já que se trata de uma língua estrangeira, costumes anacrônicos e cosmovisão estranha ao exegeta. Traduzir, segundo Bultmann, “significa tornar compreensível, e pressupõe compreensão.” Essa compreensão da história pressupõe a “compreensão das forças atuantes a concatenarem os fenômenos individuais.” Essa força para Bultmann são aspectos “sociolingüísticos” tais como os problemas sociais, necessidades econômicas, paixões, idéias e ideais humanos que transparecem no texto a ser interpretado. Neste sentido, dificilmente, apesar de completo esforço, se chegará a uma visão uniforme pois “no caso de cada historiador individual sempre preponderá determinado enfoque ou perspectiva.” O conceito bultmanniano é que cada exegeta esteja consciente de que seu enfoque é unilateral ao inquirir o fenômeno a partir de determinada perspectiva. Assim, “a compreensão histórica é necessária a compreensão do objeto" (das sachliche Verständnis). Em suma: a compreensão histórica irá pressupor compreensão do objeto em pauta na história e das pessoas que agem na história.
6. Desta forma a exegese sempre pressupõe certa compreensão dos objetos pelo intérprete, que se manifesta direta ou indiretamente nos textos. Isto é o que Bultmann chama de contexto vivencial ou “Lebenszusammenhang” no qual se encontra o intérprete. O quadro histórico só é falsificado, segundo Bultmann, quando o exegeta “considerasse sua compreensão prévia uma compreensão definitiva”, pois o evento histórico (geschichtlich) só poderá ser reconhecido no futuro: “o evento histórico faz parte do futuro.”
Continua...
(Este texto foi apresentado em 30/07/98 ao Dr. Estevan F. Kirschner, no curso de Hermenêutica Avançada, oferecido pelo CETEOL, em São Bento do Sul, Santa Catarina)