Fruto do dualismo cartesiano [1] e de uma hermenêutica reducionista [2] da Bíblia, os cristãos ainda costumam distinguir e opor os termos ofícios e vocação. O primeiro, usado com mais frequência na educação secular para designar o labor do professor, possui denotações um pouco mais políticas e sociais que o vocábulo que o sucede. O segundo, cujo conceito já fez parte da educação pública, se emprega mais regularmente na educação cristã para descrever um chamamento divino para o exercício da docência no Corpo de Cristo. Enquanto na hermenêutica cristã a palavra vocação indica um chamamento divino, ofício, na concepção política e pedagógica, diz respeito à profissão. O conceito que se tem do vocacionado é de alguém que exerce sua missão de forma apaixonada, romântica e utópica, tendo em vista um fim teleológico, seja ele cristão ou não.
Há de se distinguir, entretano, duas teorias entre as concepções de vocação usadas nas teorias pedagógicas. A primeira é de caráter ambientalista e naturalista, que, tendo o Emílio rousseauniano como fundamento [3], considera, por exemplo, que o simples fato de ser do sexo feminino já habilita naturalmente a mulher, a mãe, para o exercício docente. Como afirma Maria Martins
Por influência positivista, considerava-se a mulher como naturalmente dotada para assistência à infância uma vez que a paciência, a tolerância “só podem partir do coração feminino” e essa tarefa, da educação das crianças nas escolas, por direito e por natureza, devia “ter-lhe sempre pertencido”.[4]
Assim, a vocação natural não é aprendida, mas genética, intrínseca, espontânea; o sujeito deve apenas potencializar suas habilidades naturais. A mulher, na visão dos iluministas, estava habilitada ao exercício docente não pela sua inteligência, que era, segundo eles, inferior a do homem, mas pela superioridade moral. Paulatinamente o magistério primário ficou sob os cuidados e interesses femininos, por julgar-se, inicialmente, que a mulher reunia virtudes morais e desinteresses políticos e revolucionários, submetendo-se, até mesmo, a pagar o aluguel da sala de aula. Afirma Martins
A idéia de professor vocacionado é uma idéia veiculada entre os docentes e que cinde a tarefa pedagógica por um subjetivismo impregnado de um sentido deveras idealista (romântico) segundo o qual nasce-se professor, segundo a qual são requeridas algumas virtudes como tolerância, paciência, paternalismo, e descompromisso social, enfim, uma profissão superestrutural. [5]
A segunda concepção de vocação é de caráter religioso que nasce de uma hermenêutica intuitiva e parcial das Escrituras. De acordo com essa acepção, o vocacionado é alguém chamado especialmente por Deus e por Ele capacitado sobrenaturalmente para o exercício da educação religiosa na igreja. Como hermeneuta cristão, reconheço a validade dessa proposição, de acordo com variegadas perícopes que descrevem o ministério docente aliado ao exercício de um carisma pneumatológico (Rm 12.7; Ef 4.11 et passim). O perigo, no entanto, não está na autenticidade do texto e de sua exegese, mas no elemento ideológico por detrás desse fato.
A história fictícia contada por Howard G. Hendricks ilustra o conceito equivocado a qual nos referimos. Conta o autor, que a senhorita Smith havia se candidatado a um cargo pedagógico, reunindo provas de sua formação secular e acadêmica. Contudo o senhor Brown, na igreja, superintende da Escola Dominical, e na escola secular, professor e gestor, responsável pela entrevista disse-lha:
“ – Sinto muitíssimo, mas não podemos aceitá-la. Notamos que você é recém-formada de uma escola de educação, e exigimos um professor com experiência em sala de aula de, no mínimo, cinco anos. Além disso, você só tem grau de bacharel e preferimos alguém com o mestrado”.
Na igreja, entretanto, a senhorita Smith, agora, irmã Smith, é convidada pelo irmão Brown, superintendente da escola dominical para exercer o cargo de professora. Na entrevista, a irmã Smith rebate o convite dizendo-lhe:
“ – Irmão Brown, sou nova-convertida e, na verdade, não sei muita coisa sobre a Bíblia”. “– Ora, isso não é problema”, responde ele, “ – A melhor maneira de aprender a Bíblia é ensiná-la”. “Mas irmão Brown”, retruca, “eu nunca ensinei aos juniores”. “ – Oh, não deixe que isso a coíba, irmã Smith. Tudo o que exigimos é alguém com coração disposto”, responde.
Conclui Hendricks
O cenário é mais do que um desenho caricatural; é um comentário de nosso baixo nível de discernimento em relação ao ensino cristão. Se você planeja ensinar que 2 + 2 são 4, precisa de cinco anos de experiência pedagógica. Se espera ensinar as crianças a dizer, “eu trouxe”, em vez de, “Eu truce”, provavelmente lhe exijam o mestrado. Mas, para ensinar o currículo da vida cristã, qualquer coisa é boa o bastante para Deus.[6]
O problema não está na vocação ao magistério eclesiástico, ou no dom espiritual, mas na ausência de uma hermenêutica sólida e aplicação eficiente dos resultados da exegese bíblica a respeito dos carismas ministeriais do ensino.
Não exigir do vocacionado qualquer capacitação formal para o exercício da docência evangélica, ou não exigir do ensinante profissional qualquer formação em Teologia e Bíblia para o exercício da docência cristã é reduzir o ministério de ensino à mediocridade.
O primeiro conceito torna o professor leigo, aquele que carece de formação profissional, uma pessoa autorizada a ensinar pelo “dom” que possui. O segundo dispensa a formação bíblica e a vocação ministerial em troca da experiência e capacitação profissional.
Porém, o ideal é que o professor carismático exerça a docência cristã sem excluir a formação técnica, e que o educador profissional desempenhe o munus docendi no magistério eclesiástico sem dispensar a capacitação teológica e pneumatológica.
Continua....
*Esdras Bentho é pedagogo com habilitação em formação de professores, educação infantil, ensino fundamental e gestão escolar. Durante 5 anos foi redator das Lições de Jovens e Adultos da CPAD e participou da elaboração do Novo Currículo de Escola Dominical da CPAD.
Notas
[1] Concepção presente na ciência e na teologia que divorcia a matéria do espírito, alma do corpo, por exemplo. Aqui, significa que alguns cristãos consideram irreconciliáveis a profissão e a vocação, o ofício e o ministério, como se um eliminasse o outro. Ver ROSA, W. O dualismo na teologia cristã: a deformação da antropologia bíblica e suas consequências. São Paulo: Fonte Editorial, 2010. Uma síntese indispensável à leitura procede da pena de Rubio. Cf. RUBIO, A.G. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. 5.ed., São Paulo: Paulus, 2011, p.95-116.
[2] Entende-se aquela forma de interpretação bíblica que subordina a Escritura ao dogma, a verdade ao credo. O texto não é considerado em todas suas implicações, mas reduzido à tradição e aos textos de provas.
[3] ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou Da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.8-10.
[4] MARTINS, M. A. V. O professor como agente político. São Paulo: Edições Loyola [?], Coleção “Educ-Ação”, no.13, p.26.
[5] Ibid., p.28.
[6] GANGEL, K. O.; HENDRICKS, H. G. (eds.) Manual de ensino para o educador cristão: compreendendo a natureza, as bases e o alcance do verdadeiro ensino cristão. Rio de Janeiro: CPAD, 1999, p. 6.
3 comentários:
A paz do Senhor!
Excelente postagem!
Em Cristo,
JP
Gosto muito deste doutor de Dallas, Howard G. Hendricks, já reproduzi muitas vezes este cenário ilustrado em seu livro "Ensinando para transformar vidas".
Abraço ao meu mestre Esdras
Marnix
Pastor Apaz do Senhor me ajude com essa texto:
1 Samuel 28 – Saul se comunicou com o espírito de Samuel?
pois fui ensinado que isso seria impossível, mas hoje estudo o texto... ficou difícil defender isso.
Deus te abençoe.
Em Cristo Irmão Samuel
E-mail: guitarrista.samuel@gmail.com
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