DÁ INSTRUÇÃO AO SÁBIO, E ELE SE FARÁ MAIS SÁBIO AINDA; ENSINA AO JUSTO, E ELE CRESCERÁ EM PRUDÊNCIA. NÃO REPREENDAS O ESCARNECEDOR, PARA QUE TE NÃO ABORREÇA; REPREENDE O SÁBIO, E ELE TE AMARÁ. (Pv 9.8,9)

domingo, 23 de março de 2008

PRAKSEIS TON APOSTOLON: Uma Leitura



É fato atestado pelos biblicistas do Novo Testamento que o título “Atos dos Apóstolos” atribuído à obra do evangelista Lucas, surgiu provavelmente no final da segunda metade do século II da era cristã, e no século IV já se encontrava no Codex Sinaiticus e Vaticanus.

Praksis

O termo grego Praksis ou Atos, não é usado apenas em sentido próprio (atividade, função, atos), mas literário. Na época em que a epígrafe foi posta no rol das obras sacras, Praksis também era empregado para designar o gênero literário que se ocupava em descrever as ações, os feitos, ou as realizações das grandes cidades e povos. Se assim o for, o título Atos dos Apóstolos não cumpre satisfatoriamente os objetivos do gênero, uma vez que apenas dois apóstolos, Pedro e Paulo, são proeminentes: Pedro nos doze primeiros capítulos e Paulo nos doze últimos, mesmo assim, afirma Cullmann, há “lacunas e deformações” [1] no relato das ações desses apóstolos.

Estrutura Literária

Porém, a estrutura literária parece indicar que um dos objetivos do hagiógrafo é descrever o nascimento e desenvolvimento da Igreja cristã através dos “atos do Espírito Santo” no mundo de então. Conforme asseverou o teólogo franco-alemão, “não são os ‘atos’ desses apóstolos que achamos neste livro, mas antes a história da difusão do Evangelho, de Jerusalém até Roma, pela ação do Espírito Santo”.[2]

O sumário do progresso do Evangelho nas diversas regiões do império estão registrados nas seguintes perícopes: (a) Atos 6.7 – nascimento e fortalecimento da igreja em Jerusalém; (b) 9.31 – a expansão da igreja na Palestina; (c) 16.5 – progresso da igreja na Ásia Menor; (d) 19.20 – a igreja vitoriosa na Europa; e, por fim, (e) 28.31 – expansão e progresso da igreja até o centro do império. Considerando que o livro de Atos dos Apóstolos é obra de autoria do evangelista Lucas, torna-se relevante a constatação de que o vocábulo ekklēsia não é mencionado no evangelho lucano, embora várias vezes em Atos.[3]

Lucas-Atos e a Igreja

Detendo-se no desenvolvimento da narrativa do Evangelho que se propõe, “depois de acurada investigação de tudo desde a sua origem” a dar “uma exposição em ordem” (Lc 1.3 – ARA), chegamos a verossímil afirmação de que Lucas não entrevê, ainda que nas sublinhas da história que se propôs a descrever, qualquer manifestação da Igreja antes do Pentecostes.

Diferente de Mateus em 16.13-20, Lucas, ao que tudo indica, segue a narrativa marcana (8.27-30) e omite o diálogo entre Jesus e Pedro concernente à posição primus interpares do apóstolo, e, consequentemente, o termo ekklēsia (9.18-21).

O Evangelho (24.45) encerra com Jesus abrindo, diēnoiksen,[4] “a mente” (ton noun) dos discípulos para “entenderem as Escrituras” (tou synienai tas graphas), ordenando-lhes que, em seu nome, pregassem (kēryssō) o “arrependimento” (metanoian)[5] para perdão de pecados “a todas as etnias” (eis panta ta ethnē), começando por Jerusalém. Porém, deveriam pacientemente “assentar”, kathidzo, (permanecer [ARA]; ficar [NVI/ARC]) na cidade até que a “promessa do Pai” se cumprisse e todos fossem “revestidos de poder do alto”. (vv.47-49).

Após o comissionamento divino, os discípulos adoram a Jesus e “com grande alegria” (meta kharas megalēs) retornam a Jerusalém (vv.52,53). O Evangelho que fora apresentado a Teófilo com a narração dos eventos que antecederam e sucederam o nascimento de Jesus, adornado por seus ensinos e milagres e dramatizado através da paixão de Cristo, chega ao clímax com a ressurreição e ascensão do Filho de Deus.

Posfácio e Prefácio de Lucas-Atos

Não somos escusados de frisar que o prefácio do livro de Atos dos Apóstolos retoma a via literária que encerra o Evangelho. No prólogo de Atos, o rapsodo sintetiza os propósitos da primeira obra, reafirmando a metodologia empregada em Lucas-Atos (Lc 1.1-4; At 1.1-5), e retoma, após o prefácio, o tema que segue em Atos 1.6,12, e versículos sucessivos.

A perícope é quase um pós-escrito do primeiro Evangelho. O evangelista emprega estilisticamente no versículo 6 a conjunção subordinativa men para interpor um trecho (6-11) subordinado também à narrativa de Lucas 24.44-51. O anúncio da epangelia e dynamis do Espírito, sumariada em Lucas 24.49, é ampliado em Atos 1.4-11. O verseto 12, por meio do advérbio tote, insere também o parágrafo na mesma seqüência do epílogo do Evangelho. Não creio, portanto, que a proposição do teólogo liberal R. Bultmann, embora respeite suas pesquisas e a força de sua argumentação, seja inequívoca quando, em sua Teologia do Novo Testamento, assevera que o “Livro de Atos oferece apenas um quadro incompleto e de colorido lendário da comunidade primitiva”.[6]

Uma leitura do texto bíblico, livre de qualquer premissa, assevera o inverso da teoria bultmanniana. O emprego das palavras autoptai – testemunhas oculares –, hypēretai tou logou – ministros da Palavra –, parēkolouthēkoti anōthen [eu] tenho acompanhado de perto desde o início –, akribōs – exatidão –, katheksēs – seqüência precisa –, contradiz qualquer argumento que atribua um caráter de “colorido lendário” ao livro de Atos.

É inadmissível que Lucas tenha falseado a história da igreja cristã primitiva, ou que os cristãos do primeiro século foram adeptos da historiografia áulica, semelhante à falta de comedimento dos historiadores antigos e palacianos que atribuíam discursos e feitos extraordinários não verdadeiros aos biografados. O historiador Lucas, entretanto, investigou os fatos, entrevistou as testemunhas oculares e acompanhou os muitos episódios que narrou: “Como nos transmitiram desde o começo as testemunhas oculares e aqueles que se tornaram ministros da Palavra, pareceu-me bem, tendo acompanhado de perto todos os acontecimentos com exatidão desde o início, em precisa e ordenada seqüência, escrever a ti, excelentíssimo Teófilo.” (Lc 1. 2, 3; cf. At 16.10-17; 20.5-15; 21.1-8; 27.1; 28.16).

Análise estilística

Adaptação e revisão. Não é apenas plausível como também necessário que se registre o fato de o literato ter revisado, editado e adaptado os discursos e os fatos que se propôs a narrar. O cálamo do autor pulsa semelhante às impressões e ao impacto que a história exerce sobre ele. Lucas não se detêm como os impressionistas, mas análogo aos realistas, evita o exagero, as minudências, as ocorrências dramaticamente irrelevantes a fim de não empobrecer o tonus da ação.

A obra é intensa e densa. Os fatos desenvolvem-se com muita rapidez e as ações do Espírito, através dos apóstolos, assinalam o ritmo e a freqüência com que novos eventos são acrescentados à narrativa. Todavia, a densidade da obra compacta os eventos assinalados e à vagareza com que se costuma ilustrar a história cede espaço à força da linguagem e à síntese dos fatos.

Primeiros quarenta anos. Outro elemento que contribui favoravelmente à nossa proposição é o fato de o historiógrafo pontuar os primeiros quarenta anos do Cristianismo com os nomes e alguns fatos episódicos da história secular. Diferente dos outros três evangelistas, Lucas traça um breve paralelo com o governo de certos imperadores romanos: César Augusto (Lc 2.1), Tibério César (Lc 3.1), Cláudio César (At 11.28; 18.2), e Nero, o César de Atos 16.11,21. Há de se acrescentar em Lucas 1.5 o rei da Judéia, Herodes, o Grande, ainda em 2.2, Cirênio, governador da Síra. Encerro as proposições acima, socorrendo-me nas palavras do erudito F.F.Bruce que, a respeito da verve historiográfica de Lucas afirmou: “O escritor que dessa forma relaciona a própria narrativa com o contexto mais amplo da história secular se expõe a sérias dificuldades, se não é bastante cuidadoso; oferece ao leitor crítico tantas oportunidades para testar-lhe a exatidão. Lucas enfrenta esse risco e sai-se muito bem.”[7]


[1] CULLMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento. 10.ed.rev., São Leopoldo: Editora Sinodal, p.38.

[2] Id.Ibid., p.37.

[3] Até mesmo Ernest Renan em sua obra Lês Apotres confirma a autoria lucana de Lucas-Atos: “Um assunto fora de dúvida é o fato de que os Atos tiveram o mesmo autor do terceiro Evangelho. Não precisamos provar esta proposta, a qual nunca foi seriamente contestada”. Ver Histoire dês origines du Christianisme. Libre Deuxième: Lês Apotrês. Paris: Calmann-Lévy, Éditeurs, [s.d.], p. x.

[4] Literalmente diēnoiksen quer dizer “abrir bem”.

[5] Literalmente “mudança de mente”.

[6] BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004, p.73.

[7] BRUCE, F.F. Merece confiança o Novo Testamento? São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1965, p. 107.

Créditos das iconografias: Luis Tristán : http://pintura.aut.org/BU04?Autnum=11.617&EmpNum=15069

O Espírito Santo retratado como uma pomba no vitral que fica atrás da Cátedra da Basílica de São Pedro, Roma. Fonte: Wikipédia.


3 comentários:

daladier.blogspot.com disse...

É um prazer comentar este assunto. Como frisado, o grande mérito de Lucas é registrar que pessoas foram mortas professando sua fé num Jesus ressuscitado. Se fosse por pagamento ou gozo de algum prazer seria lógico, mas enfrentar a morte por um fantasma, é díficil conceber!?
Eram ao menos quinhentas testemunhas, não esqueçamos...

Esdras Costa Bentho disse...

Kharis kai eirene

Prezado Daladier, muito obrigado por sua participação. Agradeço mesmo! Sempre que escrevo um artigo teológico de cunho acadêmico no Teologia & Graça, são poucos os colaboradores que participam. Tenho administrado o blog como um espaço para os seminaristas. Sua participação honra o Teologia & Graça.
Um abraço

Anônimo disse...

Parabens muito bom seu Post!!!!Fik c paz d cristo!!!
Abs!
Faculdade Teológica

TEOLOGIA & GRAÇA: TEOLOGANDO COM VOCÊ!



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