DÁ INSTRUÇÃO AO SÁBIO, E ELE SE FARÁ MAIS SÁBIO AINDA; ENSINA AO JUSTO, E ELE CRESCERÁ EM PRUDÊNCIA. NÃO REPREENDAS O ESCARNECEDOR, PARA QUE TE NÃO ABORREÇA; REPREENDE O SÁBIO, E ELE TE AMARÁ. (Pv 9.8,9)

terça-feira, 5 de julho de 2016

A Identidade da Igreja na Modernidade Líquida


Introdução

Os cristãos pentecostais brasileiros, com raras exceções, refletem profunda e adequadamente a respeito da identidade da Igreja. Exceto pelo conhecimento propedêutico da eclesiologia de matriz estrangeira e pela evangelização motivada pela urgência escatológica, pouco, em um século de história, se tem avançado em relação ao tema. A eclesiologia pentecostal no Brasil é implícita, focada na experiência e indutiva. Não parte de um processo de reflexão teológica que leva à práxis, muito menos do reconhecimento de sua identidade e natureza, mas do exercício individual dos carismas, enquanto mordomia que o indivíduo convertido e batizado no Espírito realiza.

Todavia, não farei uma análise diacrônica da identidade da Igreja. julgamos ter cumprido esse desiderato em nossa obra Igreja Identidade & Símbolos, a qual remetemos o leitor. Nossa proposta é analisar de modo sincrônico a identidade e natureza da igreja, sem, no entanto, nos determos sistematicamente nas várias características identitárias das igrejas da atualidade. Buscamos, pelo contrário, uma resposta sociológica e somente depois teológica, a fim de proporcionar ao ledor uma visão mais ampla da problemática. Para tanto, discutiremos algumas questões relacionadas às identidades na modernidade de Baugman, Giddens e Castells, com uma interface em outros teóricos da modernidade, como Touraine, Hall (entre outros) e sem nos esquecer de Weber e Durkheim. E a seguir, trataremos das leituras teológicas a respeito do tema, segundo Brunner, Pannenberg, Barth, Moltmann.

Nosso objetivo não é exaurir o assunto, mas fornecer ao leitor uma análise sintética de algumas, não todas, discussões concernentes à identidade da Igreja.

As Cidades Invisíveis e a identidade da igreja

No criativo e ficto diálogo elaborado por Ítalo Calvino em As Cidades Invisíveis, Marco Pólo diz ao grande Kublai Khan:

Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles.1

Permita-me o leitor à seguinte paráfrase, supondo que esse diálogo tenha ocorrido entre um missionário e um líder tribal, que resiste a cultura cristã para manter a identidade de sua tribo:

Você sabe melhor do que ninguém, sábio líder, que jamais se deve confundir Jesus e o Cristianismo com o discurso das igrejas que os representam. Contudo, existe uma ligação entre eles.

De acordo com o personagem Marco Pólo, a única forma de representar adequadamente a cidade Olívia é descrevendo, através do discurso, a prosperidade da cidade que, embora rica, com “suas almofadas franjadas nos parapeitos dos bífores”, está envolta “por uma fuligem e gordura que gruda nas paredes das casas” 2Assim também a Igreja. Não há como descrever adequadamente a sua identidade se não falarmos de sua riqueza e impoluta beleza e também da fuligem e gordura incrustada em sua estrutura. A estética e opulência da città fazem parte de seu estado e criação originais, mas a tisne e nediez foram acrescentados depois. Tal qual Olívia, “na aglomeração das ruas”, onde os guinchos manobravam comprimindo os pedestres contra os muros, as igrejas pululam nos guetos e ruelas dos grandes centros disputando espaços e atenção dos transeuntes, comprimindo-os.

Todavia, a identidade da cidade Olívia não está em seus suntuosos palácios de filigranas almofadas, mas nos personagens que nela vivem. A identidade da metrópole não se confunde com suas magníficas construções. São os sujeitos, com o que são e produzem, que lhe dá sentido. Para melhor descrever a cidade, Marco Pólo afirma que seria necessário usar a metáfora da fuligem, dos chiados de rodas, dos movimentos repetidos, dos sacarmos. A mentira, diz o veneziano, não está no discurso, mas nas coisas. A chave-hermenêutica está na relação entre o discurso e os fatos, entre a realidade e as imagens verbais.

Conceito de Identidade

Conceituar o termo identidade a partir de seu étimo latino, idem, “o mesmo”, não é uma tarefa hercúlea; entretanto, descrever os variegados usos do vocábulo nas ciências sociais semelha-se ao desafio de revelar o enigma da esfinge. Tal qual a solução de Édipo, a resposta se encontra no próprio homem, uma vez que somente ele dá sentido social à linguagem e às coisas. Esses significados sempre são vistos a partir da perspectiva da sociedade em que o homem está inserido ou que nela se move.

A identidade e atributos que caracterizavam o homem no início da modernidade não são mais os mesmos na sociedade contemporânea. Para Hall existe hoje uma “crise de identidade”, como parte de um processo de mudança que desloca as estruturas e processos da sociedade e abalam os quadros de referência que outorgavam aos indivíduos “uma ancoragem estável no mundo social”. Segundo o autor

As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado3.

Essa mudança estrutural ocorrida já no final do século XX é responsável pela fragmentação e transformações culturais de classes, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que até então dava ao sujeito um sentimento de integração e pertencimento, que não existem mais. O indivíduo, afirma Hall, está deslocado, descentrado “tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmo”4, o que constitui uma crise de identidade. Essa identidade em processo de construção/desconstrução é fragmentada e contraditória, pois resulta das transformações nas instituições religiosas, sociais e familiares as quais o indivíduo pertence. Assim, a crise de identidade do sujeito é provocada pela crise institucional5. Observe, por exemplo, uma instituição religiosa que diferentemente dos tempos de outrora, não consegue, por muitas variáveis, manter os valores e tradições espirituais e culturais que a sustentaram e que por eles fora identificada desde a sua fundação. O fiel vive entre dois mundos completamente antagônicos: o que procura manter os traços retilíneos da tradição original e o da renovação, que considera os costumes e tradições antigas retrógados e incapazes de falar ao homem moderno. Nesse vácuo está o crente e sua crise de pertencimento na modernidade líquida.


Notas


1. CALVINO, Í. As cidades invisíveis. São Paulo: Publifolha, 2003, p.27   . [Já na conclusão desse trabalho, li o texto de Libanio que, pela impossibilidade de reajustar as notas, coloco aqui. O conceito que procuro descrever na paráfrase dessa citação acha-se em Libanio que diz: “A distinção entre Cristianismo e Igreja permite entender a nova situação. Vimos como Jesus é distinto do Cristianismo, mas o Cristianismo é impensável sem a fé em Jesus e esta só continuou historicamente porque o Cristianismo se tornou realidade social. Assim também as igrejas cristãs são distintas do Cristianismo e de Jesus Cristo. No entanto, existem relações entre essas três realidades”. Ver LIBANIO, J. B. Qual o futuro do cristianismo? São Paulo: Paulus, 2006, p. 21.]
2. Id.Ibid., p.27.
3. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 9 ed., Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2004, p.7.
4. Id. Ibid., p.9.
5. Emprego o termo “sujeito”, ”indivíduo” e “agente” aqui, com o mesmo sentido usado por Touraine. Para ele o indivíduo “é apenas uma unidade particular onde se misturam a vida e o pensamento, a experiência e a consciência”. O Sujeito, grafado por ele com “S”, “é o que exerce controle sobre a vivência para que ele tenha um sentido pessoal, para que o indivíduo se transforme em agente inserido nas relações sociais, transformando-as, mas sem nunca se identificar por completo com um grupo, com uma coletividade”. O agente “não é aquele que age em conformidade com o lugar que ocupa na organização social, mas sim aquele que modifica o meio material, e sobretudo social, no qual está situado, transformando a divisão do trabalho, as formas de decisão, as relações de dominação ou as orientações culturais.” Ver TOURAINE, A. Crítica da modernidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1994, Epistemologia e Sociedade, p. 247. O Sujeito é “tanto uma alma como um corpo e é igualmente um projecto, uma memória das origens”, p. 351. Cabe afirmar que o conceito de sujeito, de acordo com o autor, não se opõe a ideia de sujeito, mas constitui uma interpretação muito particular desta última. Ver p.313.


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